TEOLOGIA PASTORAL

FELIZES OS ÚLTIMOS PORQUE TERÃO UM FUTURO

Giuliana Martirani
Professora de Geografia política e econômica

A primogenitura de Caim ou a síndrome do sucesso

A forma atual de capitalismo tardio ou de capitalismo selvagem que permite o enriquecimento rápido do Norte e o empobrecimento do Sul corre o risco de se tornar o tendão de Aquiles de todos os países que se lançaram na globalização do mercado livre. O Ocidente industrializado não aceita nenhuma intervenção e prega a desregulamentação pura. Deseja-se um capitalismo sem regras que privilegie a competitividade, ou seja, a lei do mais forte, do primeiro, a “primogenitura de Caim”. O desenvolvimento da era pós-industrial apresenta-se fundamentado num sistema sempre mais liberal e na livre circulação de dinheiro, sempre mais móvel e indiferente aos problemas e ao desemprego.

Este tipo de desenvolvimento é chamado de progresso e de modernidade ao qual são sacrificados os povos mais fracos que caminham em direção a um futuro improvável.

O dinheiro é a mercadoria mais poluída e menos transparente. O montante de dinheiro sujo, envolvido na corrupção e nas organizações criminosas chega a 3 trilhões de dólares, enquanto Ford, Exxon e GM juntas movimentam 330 bilhões.

Compreende-se assim que aqueles que combatem pelos direitos humanos, denunciem este modelo de desenvolvimento capitalista. O problema da ética na economia volta a ser discutido. O mundo da ecologia reclama um desenvolvimento sustentável e outros propõem um desenvolvimento não violento. O verdadeiro desenvolvimento está centrado na pessoa humana e não na economia, no primado do projeto político e no bem comum e não nas finanças.

Um desenvolvimento na medida do homem é não violento e instaura um pensamento e uma práxis da in-nocentia humana e cósmica. Esta in-nocentia é sobretudo um fato cultural e uma herança educacional.

É por isso que nos anos 80 e 90 emergem novas correntes pedagógicas enfatizando a paz, a não violência, a pluralidade cultural, o meio ambiente. In-nocentia significa superar o complexo de primogenitura de Caim que reivindica ser o primeiro, uma primogenitura que gera orgulho e o desejo de submeter a natureza e os outros.

Em direção de um futuro sustentável e humano

Alguns questionamentos tornam-se necessários. Deve-se perguntar, antes de tudo, se num mundo tão afetado pelo desemprego, o trabalho não possa ser concebido de maneira diversa de um mercado. Se, num mundo tão marcado pela ilegalidade, a economia não possa buscar valores éticos, se, num mundo tão marcado por problemas ambientais e sociais, a orientação unilateral da economia e da política de crescimento, com tantos custos sociais, possa ser alterada.

Descobrimos que é possível um desenvolvimento com progresso humano verdadeiro, aquele que agrada a Deus e dá vida a todos os homens se discutirmos nosso modo de conceber e organizar a economia. É possível um desenvolvimento humano e solidário se buscarmos uma economia de justiça, de reciprocidade, um terceiro caminho entre o liberalismo desenfreado e o controlo do Estado que favorece a corrupção e o descaso.

As idéias centrais (Instituto de Wupertal, Futuro sustentável, EMI, 1997) são estas:

1. Uma medida justa para o tempo e o espaço; a proposta de espaços comuns.

2. Um programa verde para o mercado.

3. Passagem do sistema de produção linear ao cíclico.

4. Viver bem ao invés de ter muito.

5. Infra-estruturas inteligentes.

6. Recuperação do campo e da agricultura.

7. A cidade como ambiente de vida.

8. A justiça internacional.

9. A vizinhança global.

Justiça social, sustentabilidade econômica e equilíbrio social, tanto no interior das nações como em nível mundial, são os contextos nos quais a transição ao terceiro milênio é proposta pelos setores não-lucrativos.

A vida cristã, religiosa ou leiga, torna-se fermento na massa, sal e luz da terra quando e transforma em projetos políticos concretos que acionam novas práticas econômicas e introduzem uma nova Páscoa, uma passagem da morte para a vida; quando a cultura, a educação e a ciência se tornam agricultura, saúde, indústria, comércio, transportes, finanças. Surge um estilo alternativo de vida.

O trabalho

Pode o trabalho ser organizado de modo diverso do mercado? Pode a economia ser guiada por valores éticos? A orientação unilateral da economia e da política do crescimento, da aceleração e da globalização, com seus custos ambientais e sociais pode ser modificada? Nossa civilização pode voltar a ter um futuro?

Sim, se colocarmos em discussão nosso modo de conceber a economia. Sim, se colocarmos as bases do futuro na sustentabilidade ecológica de todas as atividades humanas, na justiça das relações Norte-Sul, em novos estilos de vida. Sim, se entrarmos no terceiro milênio com uma economia de justiça.

O terceiro setor, o setor das empresas não lucrativas, aquelas que não são nem públicas e também não se regem pelas regras da economia de mercado, já deram, neste final de século, indicações do sentido de uma economia popular, de reciprocidade e de justiça. Na Itália, as empresas não lucrativas produzem bens no valor de 25 trilhões de liras (U$ 15 bilhões), mas não os distribuem aos sócios ou aos titulares do capital mas os investem nas próprias empresas, que são mais de 52 mil, com 428 mil dependentes, 273 mil voluntários e 16 mil objetores do consciência.

Trata-se de uma economia popular, existente em outros países, em forte expansão na Alemanha, onde o emprego nestas empresas chega a 3,7% da população ativa, na França (4,2%), na Inglaterra (4%), no Japão (2,5%), nos USA (6,8%). Na Itália a população empregada é de apenas 1,8%. Entre 1980 e 1990 cresceu na Itália de 33% a prestação de serviços sociais, taxa superior aos demais países, como USA (26), Japão (25), França (19,4), Alemanha (17,7), Inglaterra (18,8).

Educar para a civilização da ternura

O atual desenvolvimento racional-mercantil, formulado sob uma ótica meramente economicista da vida e sob uma cultura e educação caracterizadas pelo iluminismo e racionalismo, sustentado por uma religião cultual e legalista e por uma ética não solidária mas no desafio, no sucesso e em ser o primeiro. O resultado é um individualismo exasperado que se caracteriza por uma modalidade de trabalho pouco criativo e pouco comunitário, simbolizado pela linha de montagem.

A humanidade pode perder os complexos de orgulho, de superioridade, de submissão da natureza e de domínio dos povos recuperando os grandes valores da tradições religiosas e re-interpretando os conceitos de tempo, silêncio, trabalho, autolimitação (G. Martirani, La civiltà della tenerezza, Ed. Paoline, 1998).

A revisão de conceitos como tempo, silêncio, autolimitação e trabalho devem levar a produzir uma cultura e uma educação que gerem vida e não morte, porque “dois são os caminhos -lembra a Didaqué- um conduz à vida, outro à morte”.

Somente por uma nova interpretação da cultura podemos recuperar o direito ao futuro. O desenvolvimento na justiça e na paz requer novos conceitos de tempo e espaço, espaço acumulado (o passado) e tempo de duração (futuro), nas atuais programações por que “ a terra nos foi dada por empréstimos e aos nossos filhos”. Isto permitirá passar do valor de troca, no qual a prioridade cabe ao patrimônio monetário, que tem pouco tempo de acumulação, ao valor de utilização de K. Kadden, para o qual têm a prioridade os patrimônios naturais, biológicos e culturais que são muito mais antigos e duradouros.

Uma nova interpretação cultural e pedagógica do conceito do silêncio conduz à escuta do outro e à descoberta da própria identidade e das diferenças do outro, a começar daqueles que são outros por excelência como a mulher e a mãe terra, perdendo o complexo de superioridade e de domínio e abrindo-se à celebração de um Pentecostes planetário fundado na unidade da diversidade. Isto significa fazer silêncio com nossa cultura e estudar as outras culturas. Significa olhar as culturas orais, colher nelas as sementes do Criador. Significa por-se à escuta da cultura feminina nos modos como esta se expressa. Significa escutar a mãe natureza para aprender a gerir a própria casa, passar de uma economia na qual nós fixamos os nomoi a uma economia do oicos restabelecendo aquele diálogo que Francisco simbolizou ao chamar de irmãos e irmãs os elementos da natureza.

É necessária uma nova interpretação da cultura e da pedagogia do conceito de autolimitação e de pobreza evangélica, que nos torna todos, igualmente, filhos de Deus e não mais patrões e servos, exploradores e explorados. Uma autolimitação que leve ao uso controlado dos sentidos que são os instrumentos para libertar ou escravizar os recursos da terra transformando-os em “coisa usada e atirada fora”, ou tratá-las como são, criaturas de Deus, ou, como diria Francisco, irmãos e irmãs. Uma autolimitação que nos leve a questionar sobre “ver tudo, ouvir tudo, adorar tudo, degustar tudo, tocar tudo”, numa espécie de festa sem controle. Uma autolimitação que nos leve a refletir sobre a busca do dinheiro, a trabalhar só por ele

Uma nova interpretação da pedagogia e do conceito de trabalho que nos torna co-criadores. Por ele, podemos servir a vida e não a morte, abandonando aquela esquizofrenia que caracteriza a atividade humana tanto quando estamos a serviço do dinheiro ou de Deus.

É urgente restituir a esperança no futuro aos jovens oferecendo-lhes uma civilização mais humana, uma terra onde corra leite e mel, uma verdadeira civilização da ternura que substitua a violência. É urgente restituir aos filhos do Norte e do Sul da mundo uma civilização da ternura, fundada nos valores válidos a todos os povos, raças, religiões, e culturas: a universalidade de considerar os outros como si mesmos; a eternidade ou seja, considerar as consequências a longo prazo e os benefícios a curto: unidade que significa partilha com outros valores autênticos; honestidade, que é a atualização dos valores do modo como são expressos: liberdade, como participação nas decisões e objetivos sobre a própria vida e a dos outros (G. Martirani, La civiltà della tenerezza, Ed. Paoline, 1998).