TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE

ECONOMIA E REINO DE DEUS

(Alguns pensamentos para a conferência geral de 2000)

Wim van Paassen (NE)

Prefácio

O XX Capítulo geral tomou uma decisão relevante ao escolher o tema da próxima conferência geral. Não se trata de um mero assunto acadêmico. A experiência conta muito neste tipo de assunto. A intenção do Capítulo era de “chegar a escolhas apostólicas e a consequências lógicas da dimensão social do carisma dehoniano”.

Mesmo com este objetivo pragmático a questão é pesada e exigente. De certo modo esta conferência vai começar quando as comunidades resolverem se engajar em projetos comunitários sociais. É bom ter algum material em mãos para não ficar repetindo bordões. Este é o sentido desta modesta contribuição ao assunto.

Além do mais, tenciono mostrar como este tema faz parte da missão dehoniana no passado e no presente.

Nossa Congregação pode se considerar chamada a ser uma entidade ao serviço do Reino de Deus. O assunto da conferência é, portanto, dehoniano. A conferência geral de Brusque já tinha abordado a dimensão social da reparação. Não se tratava de coisa absolutamente nova. A Regra de Vida já atribuía uma percepção mais concreta da reparação, já insinuada por P. Dehon que pretendia construir “o Reino do Coração de Jesus nas almas e na sociedade”.

A característica específica de nossa congregação de oblatos, como inicialmente foi chamada, está no ecce venio e no ecce ancilla de Jesus e de Maria, em sua oblação e entrega a Deus pelo bem do povo (Const. 6). O ecce venio está vinculado ao reino de Deus que é mencionado em nossa Regra de Vida (4; 10; 11; 13; 29; 37; 38; 41; 48; 60), enquanto esta perspectiva é chamada de “desejosos da intimidade do Senhor” (Const. 28). P. Dehon deixou à sua congregação algumas orientações apostólicas: a adoração eucarística, o ministério junto aos pobres e humildes, a formação do clero e as missões (Const. 30-31). Desta forma, nós colaboramos na construção do Reino de Deus, recapitulando as pessoas e coisas em Cristo (Const. 20). Seu ecce venio o situa na perspectiva do Reino. O lado aberto é o sinal visível (Const. 21). P. Dehon nos leva explicitamente às Escrituras.

I. Jesus e o Reino de Deus

O anúncio do Reino de Deus é um eixo da bíblia de modo a caracterizar o início do tempo de salvação. “A Lei e os Profetas prevaleciam até João. A partir de então o evangelho de Reino de Deus é anunciado. João dizia: “O tempo se completou e o Reino de Deus está próximo; convertei-vos e crede no evangelho” (Mc 1, 15). É o eco do ecce venio, quando ele entrou no mundo em sua oblação ao Pai.

A chegada do Reino é esperada e sinalizada. “Ele ensinou nas sinagogas, pregou o evangelho do Reino de Deus e curou os doentes de toda espécie” (Mt 4, 23). Suas palavras messiânicas ecoam na sinagoga: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar a boa nova aos pobres. Enviou-me para proclamar aos cativos a libertação e, aos cegos, a recuperação da vista, para despedir os oprimidos em liberdade, para proclamar um ano de acolhimento da parte do Senhor” (Lc 4, 18-19).

“E ele lhes disse: tenho que anunciar o Reino de Deus em outras cidades, pois para isto é que fui enviado”. Os mendigos também são convocados ao Reino, grandes multidões o seguem. Até um escriba está próximo do Reino por que sabe qual é o maior dos mandamentos.

Ele reza e ensina rezar: “Venha a nós o vosso Reino”. Os sinais se multiplicam. O Reino começa pequeno como uma semente de mostarda, e cresce enquanto o agricultor dorme.

O seu Reino não é deste mundo. É um dom e pede a conversão através de boas obras, descritas nas bem-aventuranças. O reino de Deus não deve ser procurado longe. Ele está no meio de nós. Jesus participa da intimidade e proximidade do Pai porque ele é revelado às crianças, tira o peso dos que labutam, dos que aprendem dele, manso e humilde de coração.

As obras de misericórdia são sinais do Reino de Deus. Jesus está presente nos humildes, nos doentes, nos prisioneiros. A colaboração dos discípulos acontece de forma limitada. Jesus acusa aqueles que se declaram religiosos mas não praticam as exigências do amor e da justiça.

Sobre a rocha de Pedro Ele constrói sua Igreja, que não haverá de ruir. Ao grupo de apóstolos é dado conhecer os mistérios do Reino. Durante a última ceia ele situa o Reino como lembrança de sua morte e Ressurreição. Ele estará conosco como Senhor ressuscitado, que nos envia a todos os povos.

O tema da conferência geral requer uma reflexão bíblica mais profunda que esta. P. Dehon acentuava a oração de Jesus: venha a nós o vosso reino. É uma invocação que alude à justiça, à misericórdia, às atividades sociais, porque, assim, seguimos o Senhor em seu ecce venio em favor do Pai e dos irmãos.

II Significado do empenho pelo Reino de Deus

A escolha deste tema para a conferência acabou sendo uma coincidência. Certamente não se tinha pensado no jubileu e em suas propostas para o ano 2000. Em todo o caso, esta é uma motivação a mais. Antes de mais nada quero lembrar a teologia da história, ou seja o sentido do empenho humano na cultural, na economia, na ciência, e sua influência no advento do Reino de Deus.

Isto provoca tensões. De uma parte nós proclamamos a soberania de Deus na salvação, de outra, enfatizamos a ação humana pela justiça.

Como crentes, batalhamos pelo advento do Reino de Deus, sempre na convicção de que a vontade de Deus não pode ser alterada pela nossa atuação. Não temos, entretanto, razão alguma para nos omitirmos. Marx, Lenin e outros acusaram os cristãos de levar o povo a aceitar sua miséria pregando o Reino de Deus. Aquela coisa de ópio do povo. Cientistas e trabalhadores deixaram a Igreja porque seu esforço pelo bem estar parecia não compatibilizar com a visão tradicional do Reino de Deus.

Para viver e aprofundar nossa espiritualidade do ecce venio é preciso que tenhamos uma visão equilibrada da relação entre a oblação ao Reino de Deus, que nos foi dada, e a oblação de nosso testemunho cristão através de nossa atuação no mundo de modo a podermos respirar mais livremente. Os teólogos acentuam a questão de modo diversificado. (O. Cullman; J. Daniélou; Y. Congar; G. Thils; S. Lyonnet; C. Teilhard de Chardin; H. Cox).

A. Aqueles que se detêm no caráter escatológico do Reino acentuam a fraqueza humana. Para estes há um contraste entre o Reino de Deus e a capacidade humana. O Reino é absolutamente transcendente: nem a Igreja, nem o mundo podem fazê-lo emergir. Eles apresentam uma visão um tanto pessimista da civilização presente, da tecnologia e das mudanças sociais e culturais. O trabalho humano acaba em morte e destruição. A irrupção do Reino na Parusia acontecerá sobre os escombros da história. A semente divina e o joio humano crescem juntos mas este último será queimado. Neste conjunto de idéias a Nova Era soa como um novo modernismo. O empenho humano sequer deve ser mencionado na preparação do Reino de Deus.

B. Outros põem a ênfase no mistério da encarnação de Cristo e sua consequências para a criação. Eles pedem uma definição nova para o papel da Igreja no mundo, somando a atividade humana com a escatologia do reino. Não deve haver um abismo entre o reino e o mundo.

A graça da Encarnação é maior do que o pecado. Pela conversão e pelo batismo, pela eucaristia e pela ressurreição do Senhor somos purificados e elevados. Seu espírito se manifesta nas pessoas e na sociedade. A fé em Deus e no mundo são reconciliáveis. Existe uma convergência em direção do Reino de Deus. Não pode haver lugar para o pessimismo, nem para uma separação entre sacro e profano para aqueles que solidariamente trabalham na construção do Reino e na reprodução dos frutos do espírito.

C. De acordo com teólogos como Congar, uma síntese é possível entre o chamado vôo monástico e o engajamento esperançoso. A realidade criada é ambivalente. O Reino de Deus não é resultado do esforço humano e do progresso. Devemos estar abertos aos dons de Deus. O homem coopera com o Reino, criando condições favoráveis a este. A intervenção de Deus é gratuita a exemplo de um professor que resolve uma operação difícil na aritmética. O aluno atento será capaz de contribuir para a solução.

Na vida dos cristãos o sacrifício e a cruz têm seu sentido para superar a ambivalência da realidade e do labor humanos. Na relação entre a criação e o Reino de Deus existe uma coesão bem como uma descontinuidade, a descontinuidade do pecado, que leva à cruz e a descontinuidade da Ressurreição, que conduz à plenitude.

Adão foi chamado a cultivar o Jardim do Eden mas desobedeceu. No seguimento do segundo Adão pode-se reparar o jardim destruído. Quando o trabalho humano contribui para melhorar a obra criada se está construindo o Reino de Deus.

O Vaticano II declara: “..os cristãos, a caminho da cidade eterna, devem procurar as coisas do alto; isto, todavia, não diminui mas encarece seu dever de trabalhar junto com os outros na construção de um mundo mais humano” (GS 57).

Há mais de cem anos o jovem o padre Leão Dehon bradava em seus sermões contra os abusos dos empregadores e enfatizava o lado social da fé cristã, os direitos dos trabalhadores e a unidade das nações. Para ele a paz social era um sinal do Reino de Jesus Cristo.

Nossas Constituições reproduzem a experiência do Fundador nas palavras: “…por uma união íntima com o Coração de Cristo e pela instauração de seu Reino nas almas e na sociedade” (4). Espiritualidade e diaconia são os lados de uma mesma medalha. O Reino é descrito como um “…esforço humano que não pode chegar à plenitude do Reino, sem purificar-se e transformar-se constantemente pela cruz e ressurreição de Cristo” (29).

Assim, nossa Regra de Vida sublinha o equilíbrio do pensamento teológico sobre o sentido do trabalho humano em relação ao Reino. A oblação dehoniana é uma encarnação e escatologia ao mesmo tempo.

A seguinte afirmação é mais que clara: “A exemplo do Fundador, em sintonia com os sinais dos tempos, e em comunhão com a vida da Igreja, queremos contribuir para instaurar o Reino da justiça e da caridade cristã no mundo” (Const. 32). A luta intensa de nossos contemporâneos para se libertarem de tudo o que fere a dignidade humana e ameaça a realização dos mais profundos anseios: verdade, justiça, amor, liberdade, estão vinculados à chegada do Reino (36-37). Na condição de religiosos somos solidários com todos estes, participando na construção da cidade terrestre e do Corpo de Cristo. Devemos ser um sinal claro do Reino de Deus e de sua justiça. Ao mesmo tempo, nossa vida comunitária e a profissão dos conselhos evangélicos anunciam a chegada do reino de Deus (60).

Com estas considerações parece legítimo considerar como viável todo empenho pela economia em relação à economia do Reino de Deus.

III. Economia

O reino da economia consta da agenda da congregação de P. Dehon. Nosso Fundador conhecia o assunto e dele falou muito, sobretudo entre 1893 e 1903. Isto confere ainda maior seriedade à nossa tarefa. Quero acrescentar algo a mais ao que já foi escrito em número anterior (Dehoniana 3/98).

Desde o colapso do comunismo o mundo passou a se haver com a economia de mercado. Um de seus pais é Adam Smith que, em 1776, escreveu o livro “A riqueza das nações”. A idéia central está na convicção de que cada cidadão é guiado por uma mão invisível e assim ele contribui para um objetivo que ele não visa, ou seja, o desenvolvimento econômico da sociedade.

Esta tese otimista conduz ao triunfo da ideologia de um mercado ilimitado. Esta considera que o interesse geral é a soma do desejo dos indivíduos de consumir numa economia de mercado completamente livre, na qual o forte compete com o fraco.

João Paulo II lega um patrimônio de ética social que merece nosso interesse. (Laborem exercens, Centesimus annnus, Solicitudo rei socialis). “Preguem minhas encíclicas”, dizia Leão XIII a P. Dehon.

A Igreja alça sua voz forte pela boca do Papa e dos bispos contra os extremos do capitalismo que aumenta a brecha entre ricos e pobres. Se cada um pensar apenas em seu interesse pessoal o interesse comum não será servido. A iniciativa privada e o egoísmo econômico apresentam estruturas de pecado que tem suas raízes no pecado pessoal (Solicitudo…36). Se o interesse pessoal preponderar, o mercado torna-se alvo de idolatria (ibidem, 40). Então ele não globaliza o desenvolvimento mas faz aumentar a miséria, a depredação do ambiente e a marginalização de milhões.

Em nome da justiça social deveria fazer-se uma séria investigação das conseqüências do mecanismo de mercado para efetuar as devidas correções. É evidente que o sistema atual de comércio livre carece de mudanças urgentes e drásticas.

A centralização exagerada do controle da economia de consumo leva países à falência, à ineficiência e ao desperdício. A Igreja reconhece que a boa administração do mercado pode gerar o desenvolvimento com o consequente bem estar da população.

Uma condição necessária para tanto é que a responsabilidade pessoal seja reconhecida, a ação do mercado seja regulamentada, controlada por um sistema democrático, no qual as autoridades possam mediar os desequilíbrio entre a economia de mercado e o bem estar geral. Códigos éticos deveriam nortear as grandes empresas que escondem em manobras jurídicas a concentração de poder e escapam do qualquer controle.

Seguindo P. Dehon, nós haveremos de orar e trabalhar, no espírito do ecce venio por uma civilização de amor, na qual os pobres, os cegos, os cativos, os oprimidos sejam promovidos e colaboradores na construção do reino. Este tipo de apostolado tem um efeito condicionador para o Reino de Deus que nos foi entregue.

IV. O que devemos fazer?

É um tanto arriscado adiantar propostas antes de se debater o assunto na conferência. Mais ainda, considerando que o projeto “Nós, Congregação…’ deixou ao aspectos concretos para serem decididos localmente, o que pode variar de lugar para lugar. Trata-se de buscar novas formas de presença e atuação do testemunho do evangelho.

1. Nosso pensamento sobre a economia e o Reino de Deus deve inspirar-se na Sagrada Escritura, na Regra de vida, na doutrina social da igreja e na experiência de tantos confrades da Congregação.

2. Deve-se considerar a possibilidade de organizar reuniões com confrades de mais longe, celebrações litúrgicas, introduzir uma troca de idéias sobre o assunto. O governo geral e os governos provinciais podem promover encontros de formação de modo que se saiba do que se está falando ao tratar de neo-liberalismo, abismo entre ricos e pobres, marginalização, trabalho infantil, poluição ambiental, dívida externa.

3. Subsídios de oração e reflexão sobre este tema poderiam ser de ajuda.

4. Atingimos nós os pobres e marginalizados com nosso modo de falar, nossa catequese, nossa liturgia, nossos boletins paroquiais? Em nossas paróquias, decanatos e dioceses é possível fazer um levantamento da situação social na qual fiquem claras as necessidades e as linhas de uma ação pastoral social para suprir tais necessidades?

5. O estudo, o planejamento, as opções são importantes. Mais importante ainda continua sendo a fidelidade no seguimento de Cristo, testemunhando os sinais do Reino de Deus. A troca de experiência pode ser bastante útil.

6. Podemos discutir o contexto no qual se pode viver os três votos. Quais são as conotações positivas e negativas da vivência do poder, da posse e da sexualidade em nossos círculos? (Const. 40-59).

Quais são as implicações da profissão dos conselhos evangélicos para a nossa comunidade e nosso apostolado?

a. Pobreza: De um ponto de vista econômico vivemos num sistema liberal capitalista. O desequilíbrio Norte-Sul atinge a Congregação. São nossos orçamentos discutidos em comunidade?

b. Obediência: A atual relação de poder é determinada grandemente pela economia, controlada por políticos inspirados numa ideologia. O exercício do poder é geralmente associado à exploração, arbitrariedade e danos ao ambiente. Os marginalizados têm alguma chance de poder em nossa pastoral?

c. Celibato: Pode nosso testemunho ter alguma influência numa sociedade na qual preponderam o dinheiro e o utilitarismo? Onde os valores como a dedicação, o serviço, a alegria e a amizade correm o risco de serem esquecidos? A violência é geralmente acompanhada por distúrbios sexuais. Podem os religiosos e os casados tem algum significado recíproco neste campo?

Finalmente, um ditado chinês: se você não pode fazer o que deseja, você deve desejar o que pode!