TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE

A RECONCILIAÇÃO COMO MISSÃO

Carlos Alberto da Costa Silva (CU)

Aproximando-se o ano 2000, o tema da Reconciliação aparece como essencial, não só para a celebração desse evento jubilar, mas também para mostrar a necessidade de um compromisso de nossa parte. Dada por Deus, em Cristo, acolhida por nós, ela nos reconcilia com Deus, os irmãos, com nós próprios e nos impõe uma tarefa pessoal de apostolado - diakonia - ministério.

1. O significado do termo e seu âmbito

O termo “Reconciliação” indica “a restauração de boas relações entre inimigos”, “reatamento de amizade” (Dicionário Aurélio), “restabelecimento de uma normal relação afetiva, religiosa, jurídica, temporariamente deteriorada” (Dicionário Devoto). Para que isso aconteça, urge a eliminação do que causou a inimizade. Supõe uma relação amical anterior, que foi rompida, agora acontece seu restabelecimento.

Nas relações entre Deus e o homem, isso se conseguia, nas várias religiões, pela “expiação dos pecados”, feita entre os judeus na festa do Kippur (Lv 23,27), pela oferta dos holocaustos, vítimas de expiação. Para a tradição cristã, isso acontecerá no sacrifício definitivo de expiação, a morte de Jesus na cruz (Hb 10,11-18).

Paulo, por sua vez, em o Novo Testamento, mostra a Reconciliação como a mudança de uma relação negativa em positiva, que acontece já agora, e que será real, só no fim dos tempos, como ‘apokatastase’.

2. Reconciliação na tradição do Antigo Testamento

No Antigo Testamento encontramos a problemática da Reconciliação predominantemente na perspectiva teológica das relações Deus - homem; sobre as relações entre as pessoas, pouco é dito. Somente, o Sirácide (Eclo 22,22a) diz: “Se abrires a boca contra teu amigo, não temas, porque existe uma Reconciliação”.

Aparentemente estamos diante de um texto aberto à fraternidade e ao perdão; entretanto, a segunda parte do versículo (22b) restringe a perspectiva: “exceto em caso de ultraje, arrogância, revelação de segredo, golpe de traição…”.

Além disso, no Antigo Testamento, não encontramos uma Reconciliação entre inimigos, mas só a possibilidade de uma aliança, às mais das vezes por interesses políticos ou pessoais. Assim o povo de Israel nunca se reconciliará com os samaritanos, os opressores egípcios ou babilônios. O máximo a que se chegará é a aceitação do outro como diferente, expresso no mandamento do Levítico: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”(19,18b), mas mesmo assim, teríamos de alargar o significado de ‘próximo’, incluindo o estrangeiro, pois o versículo anterior do Levítico (19,18a) condicionara e limitara o significado de próximo a ‘concidadão’, “não te vingarás, nem guardarás rancor contra os filhos do teu povo”.

De fato, encontramos no Antigo Testamento gestos de reconciliação: José com seus irmãos (Gn 45), Absalão e Davi (2 Sm 14,33), mas “a idéia bíblica de Reconciliação é essencialmente teológica enquanto diz respeito às relações entre Deus e o homem”,1 pois o que se evidencia são o homem - como pessoa - e o povo - como coletividade que se afastam de Deus por causa do pecado pessoal ou coletivo. Pecado contra o Deus criador (pecado de Adão) e pecado contra o Deus da Aliança, pela não observância da Lei e, sobretudo, pela idolatria.

Esse pecado do povo é pintado pelos profetas com tintas fortes: “…não agias como uma prostituta, pois que desprezavas o pagamento”, mas como “mulher adúltera (que) acolhe estranhos em lugar do marido”. (Ez 16,31-32).

Neste contexto acontece a Reconciliação. Deus perdoa o pecado dos indivíduos aceitando os sacrifícios expiatórios (Lv 1-7; 16) e tem misericórdia de seu povo: “Por um pouco de tempo te abandonei, mas agora com grande compaixão torno a recolher-te” (Is 54,7).

Exige dele, porém, um retorno (shub), uma conversão. Essa conversão significa precisamente a acolhida da Reconciliação oferecida por Deus. Restaura-se a relação inicial: “Eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus em fidelidade e justiça”(Zc 8,8).

Podemos dizer, então, que no Antigo Testamento a Reconciliação domina todo o contexto das relações entre Javé e seu povo. De fato, se Javé é um Deus que reage diante do pecado dos homens com sua ira, Ele é ainda mais um Deus misericordioso, “Perdoaste a iniquidade do teu povo, encobriste todo seu pecado; reprimiste todo teu furor, refreaste o ardor da tua ira” (Sl 85,3-4) e 2 Mac. 7,33: “e se agora, …o Deus vivo está momentaneamente irritado contra nós, Ele novamente se reconciliará com os seus servos”.2

A evolução da compreensão de Reconciliação acontecerá em o Novo Testamento, sobretudo na reflexão paulina: de Reconciliação somente entre Deus e sua criatura, para Reconciliação dos homens entre si e com a própria criação.

3. Reconciliação na tradição paulina

Paulo, em sua teologia, é devedor de sua formação farisaica, mas soube dar um passo adiante na compreensão do tema da Reconciliação, sob o influxo de sua cultura helenista. Para além das relações Deus - criatura, ele entrevê o homem e a criação - cosmos e seu trabalho apostólico teve uma finalidade precisa, anunciar a Reconciliação, “Nós, portanto, doravante não mais conhecemos a ninguém segundo a carne; ...se alguém está em Cristo é uma nova criatura... mas tudo isso vem de Deus que nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos deu o ministério da Reconciliação. Efetivamente, Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo, ...e depondo em nossos lábios as palavras de Reconciliação. Somos, portanto, embaixadores ao serviço de Cristo, ...nós vos suplicamos ... reconciliai-vos com Deus” (2 Cor. 5,16-20).

* “tudo isso vem de Deus que nos reconciliou consigo…”

O vocabulário da Reconciliação é quase exclusivo de Paulo, só Mateus (5,24) usa um termo semelhante lembrando a necessidade de se reconciliar com o irmão antes de fazer a oferta.

É bom lembrar que a Reconciliação para Paulo é um dom gratuito, pois “embora sendo como toda Reconciliação um fato recíproco, não é porém, e não pode ser o encontro de duas vontades e de duas iniciativas equivalentes, mas é sobretudo uma iniciativa de Deus, o qual reafirma com esta a sua superioridade em relação ao homem”.3

A Reconciliação é, pois, o efeito transformador da ação de Deus no homem, e não fruto de nossos sofrimentos ou orações. É iniciativa absolutamente gratuita de Deus, que nos amou primeiro (cf. I Jo 4,19).

* “…por meio de Cristo…”

Esse versículo mostra que “a verdadeira novidade, agora, é vista não mais no arrependimento do pecador e na sua volta à observância da Lei, mas no dom gratuito de uma condição de justiça que é ligado ao dado histórico da morte de Cristo e ao elemento pessoal da fé no crucificado”.4 A morte de Cristo na cruz torna-se então o modo como a Reconciliação acontece, por ser expressão maior do amor de Deus que nos dá seu filho.

A Reconciliação é vinculada à morte e ressurreição de uma pessoa concreta, Jesus Cristo, com quem o homem estabelece uma relação pessoal de confiança e fé. Jesus Cristo é a causa pessoal de nossa Reconciliação.

* “e nos deu o ministério da Reconciliação… somos, portanto, embaixadores ao serviço de Cristo”

“A missão do apóstolo consiste, precisamente, no encorajar esta resposta humana, em provocá-la; ela se chama “ministério da Reconciliação”5 e sua pregação é “a palavra de Reconciliação” (2 Cor. 5,19). Pregando que Deus reconciliou o mundo consigo, São Paulo espera que os homens se reconciliem com Deus. Há aqui, em termos de Reconciliação, uma definição de apostolado”6 e pode-se deduzir, com exatidão, qual foi o apostolado que empenhou Paulo durante toda sua vida.

A aplicação aos homens dos efeitos da redenção, realizada exclusivamente por Cristo, será possível só com a adesão do homem, que a acolhe na e pela fé. Realmente diante da Reconciliação o homem tem um papel ativo, enquanto a ‘diakonia tés katallagés’ (= ministério da Reconciliação) lhe dá a capacidade de se reconciliar com Deus e o direito de anunciá-la.

Em Rm. 5,10s, a Reconciliação é apresentada como passiva, por ser ação exclusiva de Deus em nós, porém, é igualmente claro que Deus não impõe a sua iniciativa, mas insiste, por seus mensageiros, para que o homem a aceite (2 Cor. 5,20: “vo-lo suplicamos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus”), respeitando então de modo absoluto a nossa personalidade ativa e livre.7 “A ação divina quis suscitar uma resposta humana. Sem essa resposta, a Reconciliação realizada não obteria um resultado concreto no indivíduo”.8 Trata-se de aceitar uma Reconciliação realizada e não mais unicamente como Promessa.

A aceitação deste anúncio apostólico terá como resultado um efeito ontológico e não só psicológico ou moral pois ao mesmo tempo restabelecerá a paz entre o homem e Deus (Rm. 5,1; Ef. 2,18), entre os homens (Ef. 2,14-16) e em todo o universo (Cl. 1,20); em suma, justificará o homem, pois “justificação e Reconciliação são sinônimos”,9 fará dele uma criatura nova ( 2 Cor. 5,18) com o amor de Deus no coração (Rm. 5,5). Essa revelação do amor supremo de Deus transformará nosso modo de ser, ora caminhamos segundo o Espírito (Rm. 8,4). A Reconciliação supera nosso egocentrismo pecaminoso e nos une a Deus fazendo-nos viver para Cristo.10

4. Reconciliação com o cosmos, com os homens e consigo

Em 2 Cor. 5,19s, Paulo fala da “Reconciliação do mundo” não como oposto a nós mas como totalidade dos homens e como totalidade do criado (cf. também Cl. 1,10). É sempre Deus que toma a iniciativa e reconcilia o homem e o cosmos através do sofrimento (cruz - sangue) de Cristo. Na carta aos Efésios afirma: “Ele é a nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro de separação e suprimido em sua carne a inimizade - a Lei dos mandamentos expressa em preceitos - a fim de criar em si mesmo um só Homem Novo, estabelecendo a paz, e de reconciliar a ambos com Deus em um só corpo, por meio da cruz, na qual ele matou a inimizade” (2,15-16).

É claro que o texto paulino se refere em primeiro lugar a judeus e pagãos, mas o que é dito deles vale para todos os homens de todos os tempos e culturas. De inimigos se tornam concidadãos, surge a possibilidade de uma amizade nova, na paz restabelecida.

A Reconciliação dos povos é possível em Cristo, pela sua cruz, mas para que a Reconciliação chegue a todo eles, é necessário a pregação até os confins da terra (Mt. 28,19; Mc. 16,15; Lc. 24,47), é preciso que se aceite o “shalom Javé” não só como uma possibilidade, mas como realidade a ser construída. Ao hebraico ‘asha shalôm’, corresponde o ‘eirénopoiésas’ de Colossenses (1,20), fazer a paz, estabelecer concórdia e paz, que o italiano diz muito bem com ‘rappacificare’, isto é, restabelecer a paz outrora existente. Realidade nova e difícil de ser conseguida, porque inclui o perdão.

Tendo sido reconciliados os homens, o universo também o é, pois “o universo é associado à sorte das pessoas humanas, a matéria entra nesta esfera pessoal”.11 Desse modo a ‘diakonia tés katallagés’ (= ministério da Reconciliação) terá fim quando tiver chegado a todos os homens, e por estes a todo o universo material. “A finalidade transcendente do mundo para Deus passa pelo homem. O mundo recebe do homem o seu fim… a criação é ordenada à relação do homem com Deus e nela se integra… a criação tende a participar da espiritualidade do homem, e realizá-la”.12 Afinal de contas, Cristo é o ponto ômega não só dos homens, mas de toda a criação.

Por último, mas não menos importante, convém lembrar que a Reconciliação com Deus “leva necessariamente à Reconciliação do homem consigo mesmo, isto é, reconstrói em si a imagem de Deus”,13 não mais pela observância de uma Lei, mas pela fé no Cristo morto na cruz e ressuscitado. Retorna-se à situação de justiça anterior ao pecado, à amizade com Deus, perdida. Há um novo nascimento, agora do alto, pela força do Espírito (cf. Jo 3,5). A Reconciliação restaura no homem a harmonia original.

Essa nova atitude do homem inclui um itinerário místico, pois estando em paz com Deus, se está consigo mesmo; o homem deixa de ser um alienado, entra no projeto de Deus e se realiza como pessoa. Aceitando a vontade de Deus, encontra a paz interior, como Cristo, no Getsêmani, depois de ter dito: “faça-se a tua vontade…” (Mt 26,42).

Conclusão

Tudo isso significa que a redenção operada por Cristo, embora sendo completa, não dispensa ninguém duma participação no ministério que recebemos em razão da nossa fé batismal. Somos um povo sacerdotal (1 Pd. 2,5.9) e como tal temos uma missão a cumprir.

A missão da Igreja não é outra, que continuar aquela de Cristo (2 Cor. 5,18s; Jo. 20,21), e poderemos falar de um mundo dos homens totalmente reconciliado “só como antecipação da atuação definitiva daquilo que está virtualmente presente no plano divino e no fundamento da Reconciliação, ou seja, no sacrifício de Cristo”.14

Paulo atuou em favor da Igreja (Cl 1,20), na medida em que realizou sua missão de “ministro da Reconciliação”. Agora é nossa vez. Pelo apostolado (batismal ou ministerial) daremos aos homens a possibilidade de aceitação pessoal da Reconciliação realizada por Deus através da morte e ressurreição do Cristo e oferecida a nós.

NOTAS

1. Penna R., Riconciliazione, in “Dizionario di Teologia della Pace”, Bologna, EDB, p. 763.

2. cf. também 2 Mac. 1,5; 8,29.

3. Buechsel F., Katallaso; GLNT. Brescia 1965, vol.I, col. 694.

4. Penna R., idem, p. 764.

5. Prefiro falar de “ministro” e não de “servidor da Reconciliação”, como faz nossa ‘Regra de Vida’, nº 7, no original françês, pois “servidor” evidencia ‘Reconciliação’ em detrimento da pessoa que anuncia; o termo “ministro”, por sua vez, é dinâmico, valoriza e destaca mais a pessoa que tem uma missão a cumprir, anunciar, ser ‘embaixador de Cristo’. A fonte é Cristo, eu, como cristão, sou o ‘ministro’, a Reconciliação é o objetivo a ser anunciado e alcançado.

6. Galot J., La Rédemption Mystère d’Alliance, Paris/Bruges 1965, p. 53.

7. cf. Buechsel F., art. cit., col. 686-687; Galot J., op. cit., p. 52.

8. Galot J., op. cit., p. 53.

9. cf. Lyonnet S., La Historia de la Salvacion en la Carta a los Romanos, Salamanca 1967, p. 163 e nota 26; p. 164 e nota 28.

10. cf. Buechsel F., art. cit., col. 685-686.

11. Galot J., op. cit., p. 56.

12. Alfaro J., Teologia del Progresso Umano, Assisi 1969, p. 42-43.

13. Borriello L., Riconciliazione con se stessi, in “Dizionario di Teologia della Pace”, EDB, p. 765.

14. Buechsel F., art. cit., col. 689 e nota 41.