HISTÓRIA E MEMÓRIA

OS CRISTÃOS NA ÍNDIA DE S. TOMÉ ATÉ 1577

Javier López Andoño (HI)

Em continuação ao artigo “S. Francisco Xavier em Cochin”, publicado em Dehoniana 1996/3, neste novo artigo o autor descreve a surpresa dos portugueses quando encontraram indianos que se declaravam “cristãos de S. Tomé”, e expõe brevemente as vicissitudes do cristianismo na Índia desde a Idade Média até o sínodo de Diamper de 1599.

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No século XVI, Portugal, sob o impulso de seus navegadores, disseminou, em toda a costa da Índia, colônias portuguesas, que se mantinham na periferia, sem quase penetrar no interior.

Como os espanhóis, os portugueses levavam sempre consigo clérigos. Assim, Vasco da Gama em 1498, Cabral em 1500, Albuquerque em 1503, vão acompanhados de operários evangélicos. Chegam também franciscanos, mais tarde dominicanos. “Todavia, sua atividade se limitava ao trabalho com os portugueses” (Llorca).

Encontro inesperado

Os clérigos, assim como os portugueses em geral, criam ter chegado a terras onde todos os seus habitantes eram infiéis, desconhecendo a religião cristã. Pouco a pouco e com grande surpresa, e superando as dificuldades da língua, foram descobrindo a existência de cristãos, que se diziam descendentes dos convertidos pelo apóstolo São Tomé e que se autodenominavam cristãos de São Tomé. Os portugueses encontraram-se, assim, com uma comunidade cristã que se dizia remontar ao tempo dos Apóstolos. Não se preocuparam muito de saber se esses cristãos pertenciam à Igreja Católica e se estavam unidos com Roma. Para cuidar desses cristãos havia uma Hierarquia composta de um Metropolita e três bispos, que haviam chegado uns anos antes, procedentes da Mesopotâmia. Tinham a seu encargo cerca de 30.000 famílias dispersas em 20 povoados no sul da Índia, no interior, na cadeia de montanhas dos Ghats ocidentais que habitualmente chamavam a Serra.

Os cristãos de São Tomé, chegavam a Cochin, trazendo em barcos sua preciosa mercadoria de pimenta e outros produtos, através de um labirinto de lagunas e rios do interior. Vestiam roupas indianas, rezavam em sírio como língua litúrgica e eram descendentes dos cristãos batizados por São Tomé e dos comerciantes sírios que haviam chegado depois e haviam se casado com mulheres indianas.

Atualmente

Creio que, hoje, em geral e entre nós, tanto mais que o estudo da História da Igreja já está longe, experimentamos uma surpresa semelhante a dos descobridores portugueses, quando, na origem da missão que nossa Congregação abriu na Índia e mais ainda depois de ter conversado com alguns de nossos religiosos que já estiveram no país, entendemos como esses cristãos de São Tomé têm uma grande importância dentro da Igreja Católica ali estabelecida e, mais concretamente, no Estado de Kerala, onde foi aberta a nossa missão, e sentimos quanto é necessário o conhecimento de suas características próprias e as mútuas relações entre católicos de ritos distintos.

A Conferência episcopal católica da Índia compõe-se atualmente de 108 bispos de rito latino, 25 de rito sírio-malabar e 5 de rito sírio-malankar. São mais de 140 bispos e 3 cardeais, todos, menos 7, nascidos na Índia. Os fiéis católicos somam 14 milhões; desses, três milhões e meio são de rito sírio-malabar, trezentos e vinte mil de rito sírio-malankar e dez milhões cento e oitenta mil de rito latino; apenas 2,43% dos habitantes da Índia são católicos, 82,64% são hindus, 11,36% os muçulmanos, 1,96% os siks e o resto é formado de budistas, jainistas e outros.

È de notar que, pela primeira vez na história, o presidente da Conferência dos bispos católicos é um bispo de rito sírio-malabarês, D. José Powathil, arcebispo de Changgannacheri, em Kerala, e o cardeal Antonio Padiyasa é o arcebispo maior da Igreja sírio-malabar.

Esteve São Tomé realmente na Índia?

Tanto a surpresa dos primeiros clérigos portugueses como também a nossa nos leva a remontar ao passado, a buscar e investigar as fontes. Evangelizou São Tomé as regiões meridionais do sub-continente índico? Há muito tempo existe na região malabárica uma cristandade atribuída à evangelização de tempos primitivos, que alguns autores fazem remontar a São Tomé. Parece que já nos primeiros anos do cristianismo, e certamente antes do fim do século II, os cristãos da Índia mantinham relações com a Igreja de Edessa; pode-se deduzir isso pela descoberta, nessa mesma cidade, da obra intitulada: “Acta Judae-Thomae” e de um Evangelho aramaico ou siríaco encontrado em terra indiana por São Panteno. Até o ano de 450, a cristandade da Índia estava unida à Igreja da Pérsia-Mesopotâmia.

Porém, de todo este período, até o século V, faltam documentos que permitam seguir seu desenvolvimento. O que dizer desta antiquíssima tradição? Os autores, tanto indianos como estrangeiros, não estão de acordo; suas obras, publicadas em inglês, na maioria são a favor, mas não faltam pareceres negativos.

A partir do século V já existe documentação que fala das relações dos cristãos de São Tomé com a Igreja de Babilônia, o que permite supor que a Igreja cristã de Malabar tinha abraçado a fé nestoriana e que foram missionários nestorianos que introduziram ali o cristianismo, como em outras regiões da Ásia, infiltrado da heresia nestoriana.

Nestorianismo

Nestório, Patriarca de Constantinopla, deu origem à heresia que traz o seu nome, ao ver dificuldades para admitir que em Cristo exista a natureza humana e a natureza divina na pessoa divina, como fora definido em Nicéia.

O nestorianismo desapareceu quase completamente, mas por obra de alguns teólogos, os cristãos da Pérsia começaram a ser influenciados pela doutrina nestoriana ou quase-nestoriana, de tal modo que, pelo fim do século V, a Igreja da Pérsia professava o nestorianismo.

A respeito da Igreja nestoriana, Roma nunca pronunciou alguma excomunhão.

A Igreja asiática

Essa Igreja poderia ter-se chamado “a Igreja asiática”, no sentido moderno da palavra. Foi uma Igreja missionária que se empenhou para implantar-se no maciço montanhoso da Ásia Central. Já no século V, os cristãos da Mesopotâmia, perseguidos e maltratados, foram deslocados até as regiões orientais. Quando no século VII subiu a maré avassaladora dos árabes, os molestados foram os persas de raça. Na primeira parte do século VII, a parte mais oriental da China já recebeu mensageiros cristãos da Igreja da Pérsia, conforme atesta o monólito de Singan-Fu, erigido em 781, que relata a evangelização do país. Já pelo fim do século VIII e princípios do IX, toda a Ásia Central era cristã por obra dos monges e comerciantes nestorianos, que conseguiam a conversão de povos e tribos, com seus reizinhos à frente, sob a direção e o pontificado do célebre Católicos Timóteo I.

Mas a expansão máxima deu-se pelos anos 1283-1317. O Católico Jahballaha, de estirpe mongólica e em boas relações com a cristandade ocidental, consagra 75 bispos e renova as missões da China. Foi quando a Igreja chegou a ter 50 milhões de fiéis organizados em 30 províncias eclesiásticas. João Paulo II, em seu discurso de 6.1.96 aos bispos do Sínodo sírio-malabar, dizia: “A tradição síria oriental distingue-se pela tutela da fé cristã... bem como através do seu ardor missionário, que levou a Boa Nova da salvação em Jesus Cristo a toda a vossa Índia, e até à longínqua China”. Mas a desintegração entrou nessa Igreja de modo fulminante. Morto Jahballaha, só nos restam notícias sobre o cristianismo nestoriano dos séculos XIV e XV. As convulsões políticas, sobretudo no tempo de Tamerlán, quase arruinaram “a Igreja asiática”. No século XVI, tinha-se de olhar para o sul da Índia (Malabar) para encontrar grupos importantes (cf. G. de Vries, Oriente cristão). É esta a origem do cristianismo na região meridional da Índia?

Baixa Idade Média

Posteriormente, no decorrer da baixa Idade Média, os cristãos de São Tomé receberam a visita de João de Montecorvino em sua viagem à China, de dominicanos que dirigiram uma diocese em Quilon, de franciscanos como Nicolau de Conti que visitaria a Índia em várias ocasiões, de 1415 a 1438.

E, periodicamente, vinham bispos da Síria ou da Pérsia para atender os cristãos de S. Tomé. Seus últimos contatos com os nestorianos de Babilônia parecem ser da segunda metade do século XV, quando lhes foram enviados três bispos e um metropolitano; um dos bispos chegou a falar com São Francisco Xavier. Depois, como veremos, o tráfico e as comunicações entre a Índia e o Próximo Oriente foram cortados.

Os portugueses nas Índias Orientais

A era dos descobrimentos ou do encontro entre Oriente e Ocidente, traz consigo uma situação delicada, a convivência entre cristãos que têm hierarquia e liturgia distintas, línguas diferentes, e que não se conhecem mutuamente.

A história terá, ao longo destes últimos anos, uma série de vaivéns, de aproximação e de afastamento, de cisma e de união. João Paulo II, em seu discurso aos bispos do Sínodo da Igreja sírio-malabar, afirmava: “Quando outros cristãos do Ocidente chegaram às vossas terras, lhes destes generosa hospitalidade. Para vós, eles representavam uma nova abertura à universalidade da Igreja. Todavia, contemporaneamente, uma falta de compreensão de vosso patrimônio cultural e religioso causou muito sofrimento e infligiu uma ferida que só parcialmente foi sanada, e que hoje necessita ainda de um alto grau de santidade e sabedoria, da parte dos Pastores da Igreja, particularmente responsáveis pela edificação da paz e da fraternidade entre todos os seguidores de Cristo”.

Dos três bispos, por eles chamados Abunas, que haviam chegado na segunda metade do século XV ao Malabar, Mar Jacob se encarregou dos cristãos da região de Cranganor. Aqui ele terminou uma cópia do saltério siríaco e depois outra do Novo Testamento. A partir de Cranganor visitou seus cristãos disseminados pelo interior do país. Mar Jacob, de caráter pacífico, sempre considerou como irmãos na fé os portugueses, apesar da diversidade de seu rito latino e se mostrou agradecido por sua proteção contra a perseguição de mouros e gentios. Com prazer recebia instruções de seus amigos latinos, os dominicanos e franciscanos, e suprimiu muitos abusos entre seus cristãos (Schurhammer). Em carta ao rei João III de Portugal, à qual nos referiremos, São Francisco Xavier afirmava que “Mar Jacob trabalhou muito com os cristãos de São Tomé e é muito obediente aos costumes da santa madre Igreja de Roma”. O bispo junto com os seus se unira à Igreja católica.

Os cristãos de São Tomé, para fugir das vexações dos muçulmanos, recorrem a Vasco da Gama em 1503 pedindo sua proteção. Não chegavam a entender que isto iria repercutir na marcha de sua Igreja. Os portugueses que queriam ter o controle das comunicações com o Oriente cortaram a navegação entre a Índia e o Egito e o resto do Golfo Pérsico. Com isso cortavam também a relação dos cristãos malabares com suas metrópoles da Síria. E assim não se diz nada da chegada de Bispos ou Abunas na primeira metade do século XVI.

Divergências

Schurhammer reuniu muitos textos que mostram com que falta de tato e com que supremacia os clérigos portugueses pretendiam impor aos cristãos de São Tomé sua liturgia, sua língua, sua hierarquia. Partiam de princípios jurídicos e estavam muito longe de pensar com espírito ecumênico. Teriam que passar ainda muitos séculos. Se os conquistadores portugueses podiam impor suas leis a um país monopolizado, os eclesiásticos se baseavam na Bula de Calisto III com a qual criava o Padroado e concedia ao Grão Prior da Milícia de Cristo a jurisdição na África e nas regiões meridionais da Ásia. Daí, sobre os cristãos de São Tomé disputavam sua jurisdição o patriarca nestoriano e o arcebispo de Goa. O patriarca cuidava de prover as sedes episcopais com pessoas de sua obediência, enquanto os franciscanos portugueses queriam um bispo latino para Angamale. Chegou-se a empregar manobras políticas escandalosas que tornaram a situação caótica.

Encontramos registrada uma queixa descrevendo a situação: “Ao inspecionar os documentos e trabalhos dos séculos XVI e XVII fica-se grandemente surpreendido vendo até que ponto os cristãos de São Tomé foram vítimas de conflitos entre franciscanos e jesuítas, entre jesuítas e carmelitas, entre a diocese de Cochin e a de Angamale, entre a jurisdição do Padroado e a Congregação de Propaganda Fide”. E pelo fim do século XVI os cristãos sírio-malabares haviam emigrado de Cranganor para outros povoados. Raiz da questão: “Porque os religiosos de São Francisco como outros clérigos do rito latino, que eles tinham educado, procediam de tal forma contra os armênios (sírios), que nenhum Bispo ou Kassanar (sacerdote) podia celebrar Missa senão em lugares fora de Cranganor e ainda secretamente, pois se lhes proibiu dizê-la com pão fermentado segundo o uso dos gregos; e não permitiam aos Kassanares casados celebrar, e forçaram os cristãos a começar o jejum de quaresma somente na quarta-feira de cinzas e a comer pescado nesse dia, pois eles não o comem na quaresma... e porque esses clérigos proibiram obstinadamente algumas coisas que não tinham nenhum significado para a salvação das almas, e quiseram mudar seus costumes, através de muitas moléstias que experimentaram da parte de alguns, até de religiosos que não entendiam absolutamente nada daquilo que não era rito latino, e todo o resto consideravam heresia ou superstição e os forçaram a comer pescado na quaresma e a beber vinho, contra seu próprio rito, ainda que seu jejum correspondia aos sagrados cânones e aos jejuns da Igreja primitiva”.

São Francisco Xavier e os cristãos de São Tomé

Em troca, é admirável a conduta seguida por São Francisco Xavier com os cristãos de São Tomé. Seu primeiro contato com eles teve lugar já na ilha de Socotora, antes de chegar a Goa. Escreve aos seus colegas de Roma (Doc. 15): “Chegamos a uma grande ilha que se chama Socotora. O povo dessa ilha é cristão, na opinião deles, e como tais eles se consideram. Apreciam muito o ter nomes cristãos. É uma honra para eles dizer-se cristãos. Cada lugar tem seu caciz; ele é como clérigo entre nós. Os cacizes conhecem muitas orações de coro, não entendem as orações que rezam por não ser em sua língua, creio que são em caldeu. Dizem que são cristãos feitos por São Tomé nestas paragens. Na oração que rezam dizem algumas vezes aleluia, aleluia; pronunciam o aleluia quase como nós. O Governador não quis que eu ficasse nessa ilha para evitar o risco de ser levado pelos turcos”.

Já na Índia, chama nossa atenção o fato que em sua carta apenas faz referência aos cristãos sírio-malabarês apesar de estar perto deles. É que em Pesqueira como em Malabar, Xavier se havia dedicado aos pescadores pobres que residiam na estreita orla marítima, enquanto que os cristãos de São Tomé, mercadores de pimenta, viviam no interior; afora as diferenças sociais por razão de castas. Contudo era inevitável o encontro de uns e outros, ao longo da Costa e nas peregrinações ao túmulo do Apóstolo. Xavier, porém, não se refere à diferença de liturgia, hierarquia ou língua. Não era sua missão; a sua missão era a conversão dos infiéis.

Há, porém, um detalhe muito significativo. Na carta aos seus colegas de Roma, em que descreve sua forma de catequizar na Pescaria, escreve: “Dizemos todos juntos, Santa Maria, Mãe de Jesus Cristo, alcançai-nos graça de vosso Filho Jesus Cristo”. Intui-se aqui sua preocupação em não dizer Mãe de Deus, o que poderia ofender os ouvidos dos nestorianos ou dos ex-nestorianos recentemente convertidos.

Xavier, desde que chegou na Índia, percebeu a grande devoção a São Tomé e incluiu seu nome na oração do Confiteor. “Há um lugar, escreve, onde dizem os gentios da terra achar-se o corpo de São Tomé. Existe uma igreja nuito devota e todos acham que está ali o corpo do glorioso Apóstolo”. Xavier a visitava e se retirava ali para rezar à noite. E de São Tomé partiu para a missão de Malaca.

Outros dados. “A cinco léguas destas cidades de Cochin há um colégio muito bonito feito por um Padre da ordem de São Francisco, chamado Frei Vicente. Há cem alunos naturais da terra que estão na fortaleza do rei (Cranganor). Frei Vicente me pediu que solicitasse um sacerdote da Companhia para que lesse a gramática e pregasse à gente daquela fortaleza. Nos arredores vivem muitos cristãos do tempo de São Tomé, em mais de 60 lugares, e os alunos daquele Colégio são filhos dos primeiros cristãos” (Doc. 71).

E agora vem o mais interessante. Xavier, que teve contatos apenas com os cristãos de São Tomé, na volta de Málaca e das ilhas Molucas, escreve ao rei João III para que se interesse vivamente em favor de Mar Jacobo. “Um bispo de Armênia, de nome Jacobo Abuna, há quarenta e cinco anos serve a Deus e a V.A. nestas partes, homem idoso, virtuoso e santo; e simultaneamente desajudado por V. A. e quase por todos da Índia. Aqui é ajudado somente pelos Padres de São Francisco e se não fossem eles já o bom e santo velho estaria descansado com Deus". Transparece aqui uma soledade e um abandono do bispo dos cristãos de São Tomé. E então intervém São Francisco Xavier. Sua diplomacia é muito pessoal. Escreve assim ao rei: “Deve-lhe V. A escrever recomendando-lhe muito que se encarregue de recomendá-lo a Deus, pois, mais necessidade tem V.A. de ser ajudado pelo bispo com orações, que o bispo tem necessidade do favor temporal de V.A.”.

Brilharam mais em São Francisco Xavier o amor e a caridade do que a jurisprudência eclesiástica.

(Traduzido do espanhol por E. Mallmann -BM)