HISTÓRIA E MEMÓRIA

O QUE ACONTECERÁ NO ANO 2000?

(Os dehonianos na Irlanda)

Andrew Ryder (BH)

Falando a uma seleta platéia que tinha se reunido para ouvir as palavras de seu mestre, no início do século, Sigmund Freud disse que a única coisa que podia afirmar sobre o século que estava começando era que todos eles iriam morrer antes que terminasse.

Enquanto esperamos a aurora do século XXI não podemos nem ter certeza de que morreremos nele. Os avanços científicos destas últimas décadas, a engenharia genética e as experiências em curso impedem que se façam muitos prognósticos.

O ano 2000

“O fim do mundo que conhecemos” é o título de um artigo na revista Time falando do ano 2000. De acordo com uma pesquisa de opinião, feita nos Estados Unidos pela revista, dez por cento dos americanos acreditam que o mundo vai acabar na passagem do século. Um quarto dos que viajam de avião decidiram não estar voando naquela hora. As moedas de ouro seriam, para certos economistas, o único investimento confiável em face das mudanças previstas para o início da década. No Colorado (USA) uma comissão especial já se pôs a trabalhar para traçar um plano de ação diante dos problemas que o bug do milênio vai trazer. Alguns cientistas acreditam que se o bug do milênio não for neutralizado, ele pode afetar mais do que nossos telefones e máquinas de lavar.

Sempre presumindo que haveremos de sobreviver à passagem do milênio, teremos, certamente, muito que observar e admirar em janeiro de 2000. Uma coisa é certa: o ano novo não será somente uma mudança de números. O profundo impacto psicológico será igual a uma pessoa caminhando à beira de um rio. À medida que caminha, acompanha o fluxo do rio que escorre de muito longe. Mudando o curso, afasta-se do rio e descortina uma paisagem completamente nova.

Um jornalista escreveu em jornais britânicos: “O ano de 2000 será chamado de `O Ano no qual´...’ .. As grandes empresas, Igrejas, autoridades sanitárias e governos estabeleceram alvos tendo por base o calendário fatídico. Este aniversário será um marco de mudanças sociais, políticas e econômicas. Da mesma forma que a primeira guerra mundial provocou o voto feminino, a segunda, as Nações Unidas, o novo milênio acelerará a União Européia. Pode-se prognosticar mais? A única coisa quase que se pode prever é de que será uma experiência incômoda.” (D. Thompson, Sunday Times, 24.01.99).

A Irlanda se prepara para o ano 2000

A incerteza não afeta somente os cientistas. Todos os aspectos da vida social se deparam com o que pode acontecer.

Todos os países, principalmente os do ocidente, estão entrando num período de incertezas e transição que inviabilizam qualquer previsão de como seremos nos próximos cinqüenta e até vinte anos. Em tal situação a questão da inculturação da fé cristã não é restrita às terras distantes nas quais se está levando a fé agora. Os lugares com uma história milenar de tradição cristã apresentam desafios igualmente grandes. Voltando à Irlanda, após uma ausência de 14 anos, senti-me como se tudo estivesse começando de novo. O Mercado Comum Europeu tinha renovado o entusiasmo dos eleitores irlandeses. Bilhões de libras estavam sendo investidos nos negócios e na infra-estrutura do país. O que era antes chamado a Terra dos Santos e dos Estudantes tornou-se a Terra do Tigre Céltico. O boom econômico dos anos noventa maravilhou a mundo e a Irlanda é um novo modelo do progresso capitalista. O país desfruta de uma das mais altas médias de êxito escolar e uma pesquisa feita ha três anos situou a Irlanda em segundo lugar no mundo, atrás apenas de Singapura, em condições favoráveis à educação. Isto atraiu investimentos, principalmente de software americano, que hoje é um dos países líderes em exportação de software.

Com a prosperidade outros fatores menos positivos apareceram também. A criminalidade vem aumentando junto com o tráfico de drogas e o desemprego. É comum os casais se separarem. Estes elementos são devidos, segundo os sociólogos, ao fato de as classes pobres não estarem se beneficiando da prosperidade do país.

Para mim, um dehoniano, voltando ao país depois de 14 anos a maior mudança é a queda da Igreja Católica do pedestal no qual ela reinou durante séculos. A crescente secularização fez com que o controle que a Igreja mantinha sobre as vidas, as mentes e os corações do povo, fosse enfraquecendo. Quando eu era garoto os bispos irlandeses conseguiam vetar propostas do governo. Em 1948 o projeto Mãe e Filho, proposto pelos socialistas foi literalmente massacrado pelos bispos que julgavam que o projeto não obedecia à ética da família católica. Foi uma vitória de Pirro. Deixou um ressentimento muito forte contra o poder da Igreja e sua contínua interferência no trabalho do Estado. Muitos políticos decidiram que haveriam de fazer de tudo para que nunca mais os bispos fossem capazes de minar sua atuação política de forma tão evidente. Outro momento decisivo foi em 1968. A encíclica Humanae Vitae foi submetida a uma crítica feroz. A televisão e a mídia se encarregaram de promover a independência de opinião do povo contra as pressões, especialmente da Igreja católica. Embora a participação dominical nas missas não tenha diminuído muito, a dúvida ficou semeada em muitas cabeças.

O crescimento econômico, com suas crises, prosseguiu durante duas décadas ao passo que a freqüência às missas ia diminuindo. Tudo isto atingiu um clímax nos anos noventa. A eleição de uma mulher para a presidência da República foi um sinal claro de uma nova ordem no país. Em sua primeira declaração ela fez um apelo que ecoou durante os seis anos de seu mandato. Ela conclamou as mulheres da Irlanda a comandar o barco ao invés de balançar o berço. Não poderia ter sido mais clara.

O tiro de misericórdia no poder dominador da Igreja foi dado pelos escândalos do clero. O caso mais famoso foi o do bispo Casey, até então um Pastor muito respeitado. Ele era conhecido por seu envolvimento na defesa dos direitos humanos na América Latina. Entre outras atitudes tinha estado presente aos funerais de D. Romero. Casey admitiu ter um filho, já crescido, e partiu para os Estados Unidos. Na esteira deste caso, outras acusações começaram a surgir e alguns acabaram nos tribunais. As notícias de abusos de religiosos contra crianças e eles sendo levados à cadeia algemados passaram a correr o país.

As pessoas que por muito tempo tinham abafado sua indignação contra a Igreja podiam agora dar vazão aos seus sentimentos. Ficava difícil para um clérigo andar pelas ruas de Dublin em trajes clericais. Bispos chegaram a aconselhar seu clero a circular sem o tradicional colarinho clerical.

É desnecessário dizer que tudo isto afugentou os jovens das igrejas. As vocações declinaram bastante. Quando João Paulo II visitou a Irlanda em 1979 ele foi festejado por todos, idosos e jovens. Depois de vinte anos, a visita do Papa lembra mais um glorioso ocaso que uma aurora animadora.

Os dehonianos da Irlanda

Chegamos à Irlanda em 1978, um ano antes da visita do Papa. Já então as frases de protesto enchiam muros e as vocações declinavam. Tivemos a sorte de nos estabelecer logo e achar um lugar para casa de formação. Logo depois assumimos uma paróquia. Integrei o grupo que começou a casa de formação e agora sou pároco.

O fim do século nos enseja ocasião para refletir sobre onde vamos. É, contudo, difícil responder em função da situação tanto do país quanto da Igreja.

Em todo caso estamos fazendo um projeto para o novo milênio na paróquia. Este projeto segue a clássica dobradinha dehoniana da espiritualidade e do social. O plano é adaptar a igreja existente criando um espaço especial para a adoração. Numa nova capelinha, perto da porta haverá adoração durante todo o dia. Vamos constituir grupos de adoradores de modo a assegurar o funcionamento da adoração. O povo da paróquia terá a oportunidade de ornamentar a capela e esperamos criar um espaço atraente que deverá estar pronto no fim de 1999.

A outra parte do projeto é mais complexa e ambiciosa. Pretendemos doar um pedaço do terreno nos fundos da Igreja para as autoridades para que ali seja construído um abrigo para idosos e deficientes. Há uma série de obstáculos para que isto seja realizado. O problema de habitação é um dos mais sérios em Dublin no momento e achamos esta idéia muito apropriada para celebrar o Jubileu.

Conclusão

“Não sabemos para onde vamos. Sabemos apenas que a história nos trouxe até este ponto e como isto aconteceu. Uma coisa é clara: se partirmos para o terceiro milênio na mesma base, o fracasso é certo. O preço do fracasso é a alternativa da escuridão” (Age of extremes, 585).

Concluo citando Eric Hobsbawn. Este historiador britânico olha para o terceiro milênio com a incerteza que nos espera e com uma advertência para adaptar-nos e aceitar o futuro. Se isto vale para a sociedade civil, vale mais ainda para a Igreja: ir ao encontro do Ano do Senhor de coração pronto e aberto.