DOSSIÊ CENTRAL

RELIGIOSOS E LEIGOS NA IGREJA

RELIGIOSOS E LEIGOS: PARTILHA DO CARISMA

Antonio Ascenzo

O tema parece ser novo. Estamos no fim de um milênio, durante o qual muito pouco houve na Igreja que não tenha partido de um monge. De repente o tema “Religiosos e leigos” emerge e até a Igreja se apressa em tomar posição.(1) É uma novidade que exige conversão e a pequena conjunção “e” colocada entre as duas palavras implica aspectos ainda inexplorados.

Uma conjunção que indica uma relação paritética entre Religiosos e Leigos, porque ambos christifideles, membros do mesmo Corpo, chamados e consagrados para a mesma comunhão e missão e que, porém, une duas entidades diversas, fazendo-as interagir, respeitarem-se, ajudarem-se e colaborarem no exercício da missão comum.

Considerações teológicas sobre o relacionamento entre religiosos e leigos

A alma deste dinamismo é uma clara visão de Igreja - a eclesiologia de comunhão do Vaticano II - da qual não podemos prescindir na abordagem do tema.

A visão conciliar da Igreja

É sabido que os participantes do Concílio viveram sua mais profunda experiência de Igreja na redação da Lumen Gentium. Percebia-se cada vez mais a inspiração do Espírito. A Lumen Gentium deve ser vista não apenas como um documento mas como uma experiência eclesial. “A lição da Lumen Gentium, diz Gino Moro, é que o maior gesto de magistério brotou do maior gesto de discipulado. A Igreja existe enquanto acontece, enquanto permitimos que ela, sendo de Deus, venha a nós e ali permaneça.”.(2)

Quanto ao mais, somos Igreja na proporção da intensidade da comunhão e não da clareza da declaração “de caritate Ecclesia” (da caridade nasce a Igreja).

a) A fundação trinitária e mistérica - Antes do Concílio a Igreja estava clericalizada, quase papalizada. A figura de Cristo, fundador da Igreja através de um ato jurídico-teológico, se viabilizava e praticamente se esgotava no poder de “sumo sacerdote”, dos bispos e padres. A relevância do Espírito era mínima e se concentrava no filão das revelações místicas, privadas e femininas, e nas devoções populares.

Hoje, com alegria vemos a ênfase dada à Trindade (cf. LG 2-2 e AG 2-4). Emerge um perfil das três Pessoas divinas dando origem a uma escola de oração e de espiritualidade. A novidade não está na renovação teológica mas no fato que esta inspiração quer exercer seu influxo na visibilidade, ou seja, no modelo histórico da Igreja. Pretende-se que a riqueza trinitária seja o espelho a partir do qual se estrutura a comunhão da Igreja.

b) A visão comunitária - Sob o conceito jurídico (sociedade perfeita) e o programa da Contra-reforma a Igreja acabou acentuando o poder hierárquico e docente, gerando a desigualdade. Clero e religiosos estavam por cima, os leigos em baixo, mestres e discípulos, capazes e incapazes, espirituais e mundanos.

A recuperação da origem trinitária e mistérica, num contexto marcado por revoluções sociais e o fim das exceções, permitiu o surgimento de uma nova consciência: na Igreja, antes da diversidade, há a fundamental igualdade de todo os fiéis.

Trata-se de uma mudança radical. Alguns teólogos afirmam ter havido uma revolução copernicana no capítulo sobre o Povo de Deus. A superação da lógica elitista acontece somente na conversão para a lógica da comunhão.

Comunhão significa relações humanas regeneradas no mistério de Deus; deste mistério elas nascem, este mistério refletem e a ele tendem. Trata-se de uma “socialização divina” que nada tem a ver com as reivindicações subjetivas, com o desejo de autonomia, com o afrouxamento dos vínculos e dos compromissos. “Comunhão” é uma palavra relativamente nova na nossa cultura, de modo que tanto a reflexão (a teologia), a experiência interior (a espiritualidade) e a atividade (pastoral) estão dando os primeiros passos neste sentido.

Dentro deste contexto mistérico, trinitário e de comunhão é que se situam os leigos como sujeitos eclesiais a pleno título. Escondidos durante séculos sob o manto protetor do padre e do monge, vistos como um terceiro estado, sem cidadania eclesial verdadeira e própria, eles renascem e recuperam a dignidade.(3) É um dos fatos mais relevantes e sérios com consequências para o terceiro milênio.

c) A visão ecumênica - Dentro da visão de comunhão ganha corpo a tendência em pensar na dolorosa crise da unidade da Igreja após as duas grandes feridas dos dois primeiros milênios. Depois da fase polêmica de confrontações, as Igrejas estão se batizando nas próprias feridas e esperanças, no seu pensar e no seu orar, no grande mar da Trindade e da plenitude de Cristo, que nenhuma confissão esgota sozinha. Trata-se de caminhar juntos em Cristo, em direção do Pai, sob a ação do Espírito, de caminhar para uma diversidade reconciliada.(4)

d) A visão missionária - O Concílio vive uma mudança radical de atitudes e de ótica para com o mundo que não está mais sob a custódia protetora da hierarquia. A categoria de superioridade cede lugar à da pastoral. Esta torna-se uma palavra-chave para entender e atuar a conversão que o Espírito efetuou nos padres conciliares e depois em toda a Igreja.

Nasce a Igreja do diálogo, do olhar contemplativo sobre as vicissitudes do mundo, uma Igreja missionária diante da qual abre-se o espaço do homem moderno e da época pós-cristã, uma nova terra de missão.(5)

Depois dos Sínodos sobre os leigos, sobre os presbíteros e o sobre os religiosos

A partir da eclesiologia da comunhão do Vaticano II surge, em toda a sua importância teológica, sacramental e histórica, o Povo de Deus em seu conjunto; tudo é mistério, todos são sacramento, todos são chamados à santidade e à missão, em modos diversos e complementares, conforme os carismas e os estados de vida.

Com a publicação de Vita Consecrata completa-se o tríptico através do qual o magistério da Igreja quis examinar e aprofundar esta eclesiologia de comunhão. O Papa afirma: este sínodo (o de 1994 sobre a vida consagrada), vindo depois dos sínodos dedicados aos leigos e aos presbíteros, completa o estudo da peculiaridade que caracteriza os estados de vida desejados por Jesus Cristo para a sua Igreja.(6)

Deparamo-nos com a tomada de consciência de uma Igreja que, indo além dos limites da “sociedade cristã”, sente que deve se relacionar com o mundo, com as culturas, com as outras religiões, não mais sob o signo da superioridade, mas sob signos mais bíblicos como o da comunhão (koinonia), do testemunho (martyria) e do serviço (diaconia). Isto requer que em seu interior todos sejam capazes de santidade, de cumprir tarefas e papéis específicos.

Depois de rever os papéis do monge e do padre, que dominaram por séculos, o Espírito nos faz rever a figura do leigo. Esta é uma tendência nova e traz em seu bojo algumas dificuldades práticas.

Religiosos-leigos: uma aproximação incômoda mas promissora

O Papa, na abertura da Christifideles, ressalta como o caminho pós-conciliar dos leigos foi eivado de dificuldades e perigos e cita dois:

- a tentação de dedicar um interesse tão forte aos serviços eclesiais de modo a comprometer seu desempenho em sua tarefa específica e sua responsabilidade no mundo profissional, social, econômico, cultural e religioso;

- a tentação de legitimar a indevida separação entre fé e vida, entre acolhida do Evangelho e a ação mais concreta nas diversas realidades temporais e terrenas.(7)

O Papa não ignora que os pastores se encontrem diante de um desafio claro: apontar a estrada concreta para que a bela teoria do laicado possa tornar-se uma autêntica práxis eclesial.

Na verdade, as duas tradicionais figuras, a do padre e do religioso, não estavam preparadas diante da emergência desta terceira figura, o leigo. Somos nós, ministros e religiosos, os primeiros responsáveis pelo interesse de certos leigos por tarefas intraeclesiais, que o Papa lamenta e que leva muitos leigos comprometidos ao abandono de suas específicas responsabilidade no mundo. Tampouco é de se esperar que os leigos, em poucos anos, delineiem uma espiritualidade adaptada a seu estado, ao seu novo papel e às expectativas que se formaram ao seu redor. Isto deve-se também à pobreza das sínteses precedentes, difundidas e assimiladas pela maioria, e que podemos resumir assim:

- pobreza de leigos na Igreja

- pobreza de mundo na espiritualidade

- pobreza de historicidade na vida religiosa.

É necessário também, uma visão mais ampla dos leigos, sem inveja nem temores. A Christifideles Laici parte da contemplação “desta hora magnífica e dramática, na iminência do terceiro milênio” para valorizar “a escuta da parte dos fiéis leigos, do apelo de Cristo a trabalhar em sua vinha, a tomar parte ativa, consciente e responsável na missão da Igreja”. O documento se preocupa também em localizar e aprofundar o que há de específico e típico em sua vocação: “Em virtude da comum dignidade batismal o fiel leigo é co-responsável, junto com os ministros ordenados e com os religiosos, pela missão da Igreja.(8) A comum dignidade batismal assume no fiel leigo uma modalidade que o distingue, sem separá-lo, do presbítero e do religioso. O Concílio Vaticano II indicou esta modalidade na índole secular”.(9)

Esta modalidade, segundo o Papa, deve ser aprofundada teologicamente à luz do projeto salvífico de Deus e do mistério da Igreja. Lembremo-nos, porém, que toda a Igreja tem uma dimensão secular (cf. discurso de Paulo VI, aos membros dos institutos seculares, 2.2.72) e que de fato “a Igreja vive no mundo, mesmo que não seja do mundo”. João Paulo II faz duas explicitações: o mundo é o lugar no qual é feito o apelo de Deus. Não pode ser considerado apenas como uma circunstância ambiental mas como uma realidade destinada a encontrar em Jesus Cristo seu significado pleno. Por isso, os leigos não devem abandonar a posição que têm no mundo porque o ser e o agir nele são, para os leigos, uma realidade sociológica e antropológica e igualmente um lugar teológico e eclesial.(10)

O mundo é o lugar no qual os leigos vivem sua vocação à santidade e onde de fato se santificam, numa santidade que “está intimamente ligada com a missão” e que, portanto, contribui “para a edificação da Igreja” e para o “crescimento do Reino de Deus na História”.(11)

O papel específico dos leigos pode ser resumido nestes pontos:

- procurar o reino de Deus em meio às coisas temporais,

- responder ao chamamento de Deus para a santificação do mundo,

- tornar Cristo visível no mundo através do testemunho,

- iluminar e orientar a realidade em direção de Cristo.

Em face a este papel, tão específico, qual é a atitude dos leigos, dos ministros ordenados e dos religiosos? Não faria mal nenhum cada um rever a contribuição que pode dar para o crescimento de todas as vocações na Igreja.

O Papa aponta uma pista: “Na Igreja-comunhão os estados de vida estão estreitamente intimamente unidos entre si. Cada um deles deve ser uma modalidade pela qual se vive a dignidade cristã e a universal vocação à santidade na perfeição do amor”. São modos ao mesmo tempo diversos e complementares de forma que cada um tem sua fisionomia inconfundível e está a serviço dos outros. Desta forma, o estado laical tem sua especificidade na índole secular e cumpre um serviço eclesial de testemunho e chama a atenção dos sacerdotes e religiosos para a realidade das coisas temporais no desígnio salvífico de Deus.

Por sua vez, o sacerdócio ministerial representa uma garantia permanente de presença sacramental, nos diversos tempos e lugares, de Cristo redentor.

O estado religioso testemunha a índole escatológica da Igreja, ou seja, sua caminhada para o Reino de Deus que é prefigurado pelos votos.

Todos os estados de vida, tanto em seu conjunto como cada um em si mesmo, estão a serviço da Igreja, são modos diversos que se unificam profundamente no “mistério-comunhão” da Igreja e se articulam dinamicamente em função da missão.(12)

Além de uma indicação, vemos nestas palavras um desafio para nós, religiosos, que temos nos leigos e em sua inserção na realidade mundana uma situação que não podemos ignorar nem olhar de cima, mas uma ocasião de diálogo. Os votos dizem respeito às condições do mundo: os bens econômicos, os afetos e a política; os bens do ter, do amor e do poder.

Encontraremos um caminho comum a trilhar na meditação sobre o ser e o agir de leigos e religiosos dentro da Igreja.

Exigências de formação e de conversão para nós, religiosos

Revisão da vocação e do papel da vida religiosa na Igreja e no mundo

1. Quando, no Capítulo geral de 1992, abordamos pela primeira vez, em modo direto, o tema da promoção das vocações dos leigos o primeiro objetivo que se estabeleceu para a Congregação foi o da “formação específica dos orionitas sobre:

- a Igreja e sua missão enquanto povo de Deus;

- a vocação e o papel eclesial específico dos leigos;

- o reconhecimento e a valorização do carisma e do papel espiritual e ministerial da mulher na família, na sociedade e na Igreja;

- a vocação-missão dos religiosos em relação à do clero e dos leigos dentro da Igreja em vista de uma partilha comunitária da vida da Igreja”.(13)

Os outros objetivos, formação doa leigos, a vida consagrada leiga-secular, as estruturas de animação, abertura para os leigos, unidade da Família Orionita, surgiram depois não porque menos importantes, mas porque entendia-se que na base de novas relações com os leigos devia-se rever a vocação dos religiosos ou se haveria de criar mal-entendidos perigosos.

Como ignorar a situação espiritual, cultural e psicológica de muitos religiosos que de boa fé, e não por maldade, vêem

- na abertura ao mundo o risco de um retorno ao mundo;

- na participação dos leigos o risco de deixar escapar nossas obras de nossas mãos;

- na revisão do próprio papel a abdicação de um estilo de presença que marcaram gerações e da substância de sua identidade e missão?

Para os religiosos que fizeram do trabalho apostólico o núcleo de sua vida religiosa e, com generosidade ímpar, visaram unicamente ao bem a ser feito, não é fácil entender e aceitar:

- que a missão de uma Congregação de vida apostólica vai além das obras;

- que Congregação e obras não são a mesma coisa;

- que missão e obras não se identificam;

- que o carisma do fundador possa frutificar fora das obras.

Afrontar tais desafios que desorientam muitos religiosos e podem criar um sentido de desânimo nas comunidades, implica, evidentemente, em processos de formação permanente, capazes de envolver - num clima de criatividade e de esperança, sem acomodamento - pessoas adultas e ativas, numa reflexão comunitária da própria consagração e missão na Igreja e num mundo em contínua mudança.

Providencialmente, na caminhada pós-capitular, houve uma sucessão de fatos que influenciaram mais do que as palavras. O primeiro deles foi o encontro de formação permanente sobre o carisma, com mais de cem pessoas, entre religiosos, religiosas e leigos, havido entre setembro e outubro de 1995. Foi ali que, de modo comunitário, percebemos que ler o carisma juntos, homens, mulheres, consagrados e leigos, ajudava a entendê-lo, a traduzi-lo, a transmiti-lo e a amá-lo mais, como também ajudava a descobrir o potencial que o carisma é capaz de liberar em uns e outros, ajudava a escutar as esperanças que o carisma desperta em uns em relação a outros. Começou-se, assim, a descobrir que considerar as expectativas recíprocas era já uma forma de colaborar e partilhar.

Daquele encontro de formação ao carisma nasceram três projetos com os relativos subsídios:

- projeto de formação inicial ao carisma;(14)

- projeto de formação permanente dos religiosos;(15)

- projeto de formação dos leigos ao carisma.(16)

Do encontro surgiu também a Carta-programa do Governo geral (19.12.95) que encaminhou o nascimento do Movimento Leigo Orionita, sob a coordenação de grupos leigos internacionais, provinciais e locais. Convém destacar ainda:

- a criação de estruturas ágeis e estáveis de coordenação das diversas associações leigas orionitas;

- o grau de participação qualificada nestas experiências por parte dos leigos;

- o pedido aos religiosos de mais Palavra de Deus e palavra do fundador;

- o Encontro Internacional do Movimento Leigo Orionita, havido de 8 a 12 de outubro de 1997.

Estes eventos tornaram-se palavras fortes para os religiosos em relação àquilo que estes consideravam com muito ciúme como seu, isto é, a própria vocação, seu papel, seu modo de estar nas obras, e relevância de sua vida de comunidade mesmo fora dela, a capacidade de se relacionar com a Igreja local.

Estas experiências e estes fatos, mais do que as palavras, estão ainda a contribuir para acordar-nos e fazer-nos tomar consciência de que estamos gradualmente passando a viver num novo contexto, sempre mais próximos aos leigos (assistidos, dependentes, ex-alunos, amigos, voluntários, objetores de consciência, agentes de pastoral) que passam a exigir sempre maior assessoria pastoral, estruturas, organização, espaço de ação e, sobretudo, assistência espiritual, partilha do carisma e da missão, colaboração nos programas e na administração das obras.

Tudo isto, evidentemente, desbanca uma certa figura de religioso e uma certa visão das atividades e nos obriga a buscar o diálogo e a conversão, dinamismos que passam inevitavelmente pela reconsideração da consagração e de nossa função específica:

- numa história re-lida teologicamente numa atitude que comporta a passagem da fuga para a inserção;

- dentro de uma Igreja, considerada em seu mistério, numa atitude que comporta a valorização da própria identidade e função a serviço da função dos ministros ordenados e dos leigos.

Revisão de obras

2. A revisão da vida religiosa, à qual apenas acenamos, não se esgota na conversão das pessoas. Ela diz respeito também às obras, porque estas não são empresas mas sinais que deveriam traduzir concretamente uma paixão caridosa inspirada pelo Espírito ao Fundador e a seus seguidores.

Estamos convencidos que os Fundadores procuraram o reino de Deus e a difusão do evangelho nos corações e na sociedade de seu tempo acentuando uma palavra ou um gesto de Jesus através da caridade em favor dos mais necessitados. Eles, contudo, preocupados com as necessidades da Igreja e da sociedade, não imaginariam a continuação de suas obras se não mais servissem à evangelização. Os seguidores, em muitos casos, se cristalizam de modo repetitivo nas obras herdadas e, mesmo mudando os tempos, não percebem que podem se tornarem defasados e perder a finalidade apostólica das obras.

Neste aspecto nossa era é implacável porque ignora muitas destas obras e ameaça o próprio conceito de obra. Surge então o questionamento delas, de sua utilidade pastoral, gerando crises em obras caras à memória da Congregação, mas que não se prestam mais para pregar o evangelho. O que fazer?

Hoje começa-se a admitir que as obras não são mais necessariamente uma irradiação do amor de Deus e da Igreja pelos pobres como poderia ser antes de surgir o Estado assistencial. Quando tais obras repetem o que faz o Estado e a sociedade, como justificar sua necessidade? Nós as conservamos então mais por instinto ou por discernimento? Dedicamos nós ainda energias e meios para que as obras sejam “púlpitos do amor de Cristo e da Igreja pelos pobres” (D. Orione)?

Partilhando o carisma com os leigos, tais perguntas tornam-se uma questão delicada. Não seria nada mau rever com eles a finalidade destas obras, sua organização, seu valor pastoral. Esta tarefa volta ao tema da nossa formação que nos condiciona a sermos:

- mais executivos do que animadores;

- mais preocupados com os papéis que com os objetivos;

- mais administradores que planejadores;

- mais dedicados à ação que à mensagem;

- mais ocupados com quem nos procura que com o ambiente;

- mais influenciados pela lógica da Congregação que da Igreja local;

- mais individualistas que colaboradores;

- mais valorizando a competência que a espiritualidade;

O cerne da questão está no fato que, para chegar a uma nova forma de presença, devemos passar por uma conversão nos modos de pensar e de agir, em fases ordenadas e de consenso. Preferimos, entretanto, um otimismo ritual e pouco crítico diante dos problemas cuja solução não cabe ao mundo da boa vontade mas ao das grandes intuições.

Jogar com as cartas dos leigos

Disto tudo, fica claro que a partilha do carisma com os leigos não se reduz a acrescentar simplesmente novas forças às nossas atividades. Esta foi uma medida mais forçada que desejada pelo declínio das vocações religiosas.

O problema é mais complexo. Sem enquadrá-lo na lógica da Igreja comunhão e missão comprometemos sua riqueza e seu potencial. A partilha do carisma com os leigos está tornando-se um dom do Espírito e é, antes de tudo, uma ocasião de crescimento para todos: ministros, consagrados e leigos. Nesta estrada “a vida consagrada não se limitará a ler os sinais dos tempos mas a contribuir para a elaboração de novos projetos de evangelização para as situações de hoje”.(17) Em caso contrário, prevalecendo outras lógicas, perderemos uma oportunidade ímpar de renovação e o passo da história.

P. Gino Moro, durante um retiro espiritual, interpelava assim os delegados orionitas ao capítulo da Província de Roma: “Um sujeito em crise de missão e de sentido arrasta consigo também quem nele se agarra. Dois doentes não fazer uma pessoa sadia, nem dois cegos podem explorar um continente. Sendo mais claro, o encontro entre religiosos e leigos será frutuoso somente se nós, religiosos, aceitarmos passar por uma conversão em nosso estilo de vida e em nossas estratégias de presença e ação. Em caso contrário será uma nova palavra de ordem para ocultar nossos erros. Haveremos de agir na base de nossos problemas não resolvidos e adiados. O leigo não pode carregar, além da sua, nem mesmo a mais branda crise de sentido dos nossos institutos religiosos, nem substituir numericamente nossa escassez que é mais de objetivos e de significado que de pessoal. Uma aliança só tem futuro se feita entre sujeitos saudáveis”.

Um tímido balanço dos primeiros passos da partilha do carisma

Enquanto eu preparava esta palestra saiu mais um número dos “Atos e comunicações” da Cúria geral do orionitas que traz, nas primeiras páginas, a carta do Superior geral, P. Roberto Simionato, intitulada “Queremos ver Jesus”. A carta é:

- um eco do recente Encontro Internacional do Movimento Leigo Orionita (1997);

- uma avaliação dos 6 anos de experiências de partilha do carisma com os leigos;

- uma preparação ao Capítulo geral que terá por tema “Religiosos e leigos orionitas em missão no terceiro milênio”.

Acrescentei, então, aquele documento a esta minha exposição.

Partindo da mensagem de João Paulo II ao Movimento Orionita, P. Roberto afirma que o Movimento nasceu “com a finalidade de oferecer às diversas associações de leigos, nascidas ao redor da Obra, a possibilidade de viver o seguimento de Cristo (...)”. Aprende-se o seguimento de Cristo “partilhando com os filhos da Divina Providência e com as Pequenas Irmãs Missionárias da Caridade o carisma orionita”. A palavra de ordem é “partilha do carisma” e o discurso torna-se logo espiritual, exigente, afastando qualquer instrumentalização recíproca. Evangelizar, pelo testemunho do carisma, é uma exigência profunda, anterior a qualquer outra preocupação com uma eventual colaboração nos trabalhos em curso. Primeiro, o Reino de Deus, depois, as outras coisas.

O que acontece entre os religiosos

Os leigos ao nosso redor: uma descoberta que força uma tomada de consciência.

As recentes iniciativas que trouxeram à luz o Movimento tiveram o mérito de colocar diante dos religiosos o impressionante potencial dos leigos que circulam ao redor de nossas obras. Entre eles não poucos são os que se consideram filhos de P. Orione.

Esta foi uma descoberta. Estávamos habituados a nos preocupar só com os nossos problemas, a nossa espiritualidade, a nossa comunidade. Agora, o olhar se estende às pessoas que a Providência envolveu na aventura do carisma.

Persistem todavia, medos e riscos, tais como:

- um conceito fechado de vida religiosa que isolou demasiadamente os religiosos;

- alguma experiência infeliz que aconselha prudência;

- medo que a situação escape de nossas mãos se não a dirigirmos pessoalmente;

- instinto de defesa (principalmente no Leste europeu), herança de velhos temores de que homens do governo se infiltrem na Igreja;

- certa desorientação pela incapacidade de atribuir a si mesmo um novo papel dentro das obras.

Existem experiências que aparentemente são boas. De fato, não são:

- quando se recorre aos leigos apenas pela falta de pessoal, sem atribuir um espírito, exigindo apenas eficiência no trabalho;

- quando o religioso faz tantas coisas com os leigos, tudo por conta própria, até como um álibi para se ausentar da comunidade. Estas são caricaturas de participação que consolidam o individualismo. A partilha com os leigos nasce como uma extensão da vida comunitária, não como sua negação.

No partilha com os leigos está em jogo nossa capacidade de estabelecer relações verdadeiras com a comunidade religiosa e depois com o mundo de hoje.

Tomada de consciência de uma nova tarefa

Não podemos ter como certa a transmissão de nosso carisma só pelo fato de termos obras. Trata-se de recuperar seu caráter pastoral o que é para nós um caminho de conversão permanente. De tanto mexer, o café acaba adoçando, mas só se foi posto açúcar. Se não partirmos de dentro de nós partilhamos apenas as atividades acreditando estar difundindo o carisma.

Transmitir o carisma aos leigos quer dizer chamar sua atenção constantemente para aquela realidade interior, ao segredo de nossa vocação, que nos fez deixar tudo para servir o Senhor nos pobres. Eles não poderão partilhar o carisma dehoniano se não encontrarem as palavras e fatos que permitam entrever a raiz de nossa escolha, suas motivações espirituais. Nos partilharemos o carisma enquanto não encontrarmos Jesus : “Queremos ver Jesus”.

O panorama das reações dos religiosos em face ao caminho percorrido com os leigos é muito variado indo do máximo entusiasmo até o ceticismo. Alguns captaram só o aspecto exterior, quase folclórico do fenômeno, sem avaliar sua perspectiva. Aumenta o número daqueles que intuem que a abertura aos leigos levará à conversão e à revisão de todas as nossas obras, à transparência.

É um belo trabalho que exige muito investimento de formação. As expectativas são muitas.

Abordagens corretas e erradas

Na carta do P. Roberto há duas passagens que quero citar. Dizem respeito ao modo de buscar os leigos: por causa da riqueza do carisma ou por causa da escassez de pessoal?

Há sempre o risco de reduzir a questão da partilha do carisma a um tapa buraco para salvar nossas obras. Há o risco de não salvar nem as obras, nem o carisma.

Cada problema deve encontrar sua solução no campo certo. A presença de leigos não pode tornar-se um álibi para adiar mudanças necessárias. Se uma Província fica reduzida pela metade no seu efetivo deve rever sua estrutura, o que exige estudo e discernimento à luz dos critérios indicados pelo Santo Padre (cf. VC, 63).

Os leigos podem ajudar-nos em algumas situações. Resumir o problema nisso é perigoso.(18)

O processo é outro. O leigo não merece sobras da presença religiosa, uma simples suplência à falta de pessoal.

Todos nós temos o carisma como um dom para a Igreja. Não podemos mantê-lo escondido. Devemos transmitir nosso carisma mesmo não tendo necessidade de forças de trabalho. Agradeçamos ao Senhor que, na penúria de pessoal, nos dá uma oportunidade, talvez a última, de transmitir o bem no estilo de padre Orione, mas não podemos errar a abordagem.

Pode parecer um jogo de palavras mas agrada-me expressá-lo assim. Não é certo dizer: devemos transmitir o carisma porque somos poucos e(infelizmente) temos necessidade dos leigos. Mas dizer: temos necessidade dos leigos porque temos um carisma para transmitir.

Por fim, de tanto colaborar conosco, pode acontecer que alguma obra venha a ser assumida por eles, o que deve ser uma consequência, um efeito colateral. Se um leigo assimila nosso carisma pode ampliar o círculo da caridade encaminhando obras similares. Isto tudo deve resultar da nossa influência, da nossa caridade e de nosso carisma.

O que acontece entre os leigos

A palavra leigo, bem sabemos, tem diversos significados. Quando se fala em partilha do carisma com os leigos logo vem alguém perguntando: com que leigos? Fazendo um discernimento chegamos à conclusão que o carisma não se restringe a alguns, não discrimina, não faz exclusão de pessoas (At 10, 35). Assim, dizendo leigos, queremos dizer todos aqueles que estão em contato com nossas obras, os assistidos, suas famílias, os dependentes, nossos ex-alunos, amigos, benfeitores, voluntários, os objetores de consciência, os agentes de pastoral, os grupos de jovens, os consagrados leigos…

Quando começamos a organizar os grupos de leigos e apresentamos a proposta de partilha do carisma as reações foram as mais diversas. Tais reações iam desde “Já era tempo”, dos mais preparados na pastoral, até frases como “O que os padres querem agora?” da parte daqueles que só se viam como prestadores de serviços. Em todos, porém, notamos respeito pelo fato de querermos ser o que somos e pelo fato que as nossas obras recuperassem uma identidade precisa.

As iniciativas sucessivas, reuniões de formação, que antes careciam de continuidade e objetivo, passaram a fazer crescer a expectativa. Hoje, o fato de saber que o próximo Capítulo geral terá por tema o assunto da partilha do carisma com os leigos e que também eles terão seus representantes, trouxe grande entusiasmo. Eles vêem que as coisas estão sendo levadas a sério.

Eles, por sua vez, também não subestimam possíveis riscos e equívocos: a manutenção das obras (e de seu emprego), os papéis, a transferência de certas responsabilidades a algum colega (para muitos, lidar com o padre é melhor do que lidar com um profissional). Entretanto, é a busca de espiritualidade e de formação que prevalece sobre tudo o mais.

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NOTAS

1 Cf. Christifideles laici 18-24 e Vita Consacrata 31 e 54-56.

2 G. Moro, Quanto alla mutua relazione Religiosi-Laici. (Estudo preparado para o capítulo da Província romana dos Orionitas, Sacrofano, 24-28 de novembro de 1997), p. 5.

3 Cf. LG 30-38, que se desdobra nos 33 números de AA.

4 A semente de LG 17 torna-se arbusto nos 12 números de UR.;

5 Estas posições se desdobram em outros documentos: LG 17 resulta nos 42 números de AG

6 João Paulo II, Exortação apostólica VitaConsecrata, Roma 25.03.1999, n. 4.

7 ChL n. 2.

8 ChL n. 3.

9 ChL n. 15.

10 ChL n. 15.

11 ChL n. 17.

12 ChL n. 55.

13 Atti del X Capitolo generale dei Figli della Divina Provvidenza (don Orione), Ed. velar, Gorde 1992, p. 82.

14 Sui passi di don Orione, ed. Dehoniana, Bologna 1996.

15 Cadernos anuais com fichas para reuniões de formação. Este serviço já existia antes. Serviu de modelo para iniciativas análogas em grupos de leigos. No encontro ganhou força e a estima dos religiosos.

16Também vocês estão na minha vinha”, um subsídio redigido por um grupo de leigos. Depois do encontro, surgiu a cada ano um caderno de formação para os leigos.

17 VC n. 73.

18 SIMIONATO, o.c. p 278-27.