UMA BELA MISSÃO:

ORAR COM JESUS, POR TODOS, EM NOME DA IGREJA

Juan José Arnaiz Ecker, (HI)

Intenção(1)

A Exortação Apostólica Vita consecrata de João Paulo II nos oferece, no número 41, uma bela passagem que apresenta a comunidade religiosa como lugar teológico onde podemos encontrar-nos com o Senhor no qual acreditamos e que nos chamou. Lugar onde é possível nossa incorporação com a comunhão trinitária que pede e outorga o dom da comunhão com os irmãos. Um dos momentos de comunhão e diálogo com Deus chama-se Liturgia das Horas (=LH). Sobre ela quero oferecer estas reflexões (que não são rigorosamente científicas). Suas fontes são: em geral, a experiência da Igreja, em especial, a experiência carismática de nosso fundador e a leitura carismática atualizada que faz nossa Regra de Vida de 1982. Trata-se de olhar alguns textos que nos permitam uma visão pessoal, aberta ao diálogo e à discussão sobre como poderíamos integrar esta dimensão de louvor a Deus em nossa vida cristã, religiosa e apostólica no transcurso dos dias.

Situemos nosso ponto de partida na alma de toda a oração cristã, na oração que continua aquela que nasce do Coração de Cristo. A LH prolonga a memória do Senhor. Cada dia de nossa vida está imerso na história da salvação. Partimos de uma celebração que pretende integrar vida e fé, indivíduo e comunidade, num diálogo tu a tu, homem com Deus, que tem como canal de comunicação a Palavra, que é Aliança, Encarnação, que é chamado a sermos filhos, deificados, capazes de entrar no eterno diálogo de amor com a Trindade.

Liturgia das Horas e experiência Dehoniana

Dizia P. Dehon acerca da oração em geral: “A oração é nossa vida. Nossa alma deve estar em contínua oração [...] Nosso lugar de repouso na oração é o Coração de Jesus, seus mistérios de amor e de imolação”.(2)

O homem é um ser que necessita estar aberto: a si mesmo, aos demais homens, ao criado e a Deus. Se não estiver aberto não pode ser ele mesmo.

Podemos situar as palavras de P. Dehon neste abertura necessária do homem à transcendência. O Religioso Sacerdote do Coração de Jesus é um cadáver se não ora. A força interior, o ânimo, a alegria de viver, a razão de levantar-se cada dia deve incluir o encontro com o Senhor na oração, como momento privilegiado, íntimo, preparatório, animador, sanador, robustecedor para este outro encontro com o Senhor que se dá em tantas outras realidades sacramentais cotidianas onde Deus se faz presente de modo gratuito, misericordioso, imperioso. O ritmo de nossa vida deve assemelhar-se ao ritmo do Coração de Jesus, presença misteriosa, força de entrega e luta, ícone da Palavra de amor feita carne e entregue para derrubar o muro de nossa incomunicação com Aquele que nos criou.

Falamos, pois, de um homem que é “ser-em-relação” e que necessita da oração pessoal e comunitária para ser totalidade. Num contexto de uma história que é biografia pessoal e comunitária, todo consagrado a Deus tem uma vocação doxológica de “estar-diante-Deus”. A apertura ao Senhor, a vivência da caridade, o louvor e a intercessão, (faceta integral do “ser-para/por/com-os-demais”) constituem características desta vocação do religioso. Aqueles religiosos que são também presbíteros acrescentam à sua missão a de ser agentes de comunhão e apóstolos anunciadores do Verbo encarnado, também em sua comunidade religiosa e nos momentos de oração comum.

A Eucaristia era o centro da vida do P. Dehon. Deste centro emanava toda uma vida de oração, de abundante e fecunda oração, que se concretizava em vários modos privilegiados: a meditação dos mistérios da vida de Jesus, a Adoração Eucarística, o recitação do Breviário, etc.

Para ele, o fim essencial da Adoração era dar o culto de amor e reparação ao Coração de Jesus, incluindo o agradecimento em nome de quem não agradece e o pedido de perdão para/pelos demais. Outro modo de orar era o Breviário. Ele o dizia com muita atenção e sabemos que lia explicações dos salmos em língua alemã. Conservamos alguns materiais acerca do Breviário. Fazendo uma pequena pesquisa (3) podemos encontrar seguinte relação de materiais: 1) Conferência Nazareth - la Prière - Le Bréviaire, para os presbíteros da Congregação (AD inv. 39.47, B6/6.47); 2) adaptação aos religiosos não presbíteros da conferência anterior; 3) a conferência Le Saint Office (AD inv. 40.33, B6/7.33); 4) os subsídios para a oração do salmos intitulados: Para ajudar a rezar bem o breviário, o pensamento principal dos Salmos (1919); 5) “Le Bréviaire” em NHV (V, 132-133); 6) “Dans les Psaumes” em Etudes sur le Sacré-Coeur (OSp V, 433-436); 7) L’anné avec le Sacré-Coeur (1909), onde se recolhem cento e vinte citações de salmos; 8) Carta Circular sobre os Ofícios Próprios dos Sacerdotes Oblatos do Coração de Jesus (25 dezembro1891).

Como “resumo dos resumos” destes documentos podemos dizer que o P. Dehon entendeu a LH a partir da espiritualidade que o orientou em todos os momentos. Merecem destaque toda uma série de textos que indicam uma consciência eclesiológica muito ampla de P. Fundador, como se constata nas referências pneumatológicas (a LH é respiração do Espírito), cristológicas (a Igreja é Corpo de Cristo) e escatológicas que ele faz ao longo dos escritos examinados. Destacam-se, igualmente, os enfoques que, creio, chamam, em P. Dehon, a uma intimidade com Deus, a um tu a tu, a uma experiência de Deus pessoal e divinizadora, enfim, de “humanização radical”, um modo de conformar a própria vida segundo a Palavra de Deus. Também sublinho de modo especial o apelo que o P. Dehon faz para que o orante da LH viva um “Sint unum” interior, pessoal, que o abra a esta comunidade orante que é a Igreja, localizada na comunidade religiosa, e na missão vivida como oblação. Não posso deixar de citar as linhas inspiradoras do título deste trabalho:

“Orar em nome da Igreja, orar com Jesus por todas as almas que lhe são queridas, é uma missão tão bela”.(4)

“Em nome de”, “com”, “por”, e ‘para’ (“missão”) são as linhas-guia com as quais vamos adentrar-nos em textos tão conhecidos como o Diretório Espiritual, o Thesaurus Precum e a Regra de Vida.

O Diretório Espiritual

A vocação reparadora transpira em todos os escritos dehonianos. Não podia faltar naquele que nos deixou escrito acerca do Oficio Divino. P. Dehon entendia a reza do Oficio Divino (que então era reservada aos presbíteros) como veículo de reparação espiritual. Rezar o Oficio era um modo de reparar aquele Coração que tanto tinha amado o mundo. Como em tudo que propõe a seus religiosos, coloca a meta no mais alto: na pureza de amor e de fé, na perfeição na execução e no horizonte da santidade e no encontro com o Senhor. Leiamos, em primeiro lugar, este texto:

“Não se deve esquecer que devendo ser oferecido e consagrado como compensação e reparação [...] deve ser possivelmente puro e perfeito. [...] Na hora marcada para cumprir este oficio de guarda de honra deve cessar qualquer outra ocupação e nesta função sagrada tudo será feito com extrema solicitude e há de empregar-se inteiramente o tempo estabelecido para este serviço de Deus. Nenhuma outra pessoa, nenhum outro assunto da casa ou de fora deve estorvar-nos durante este santo serviço”.(5)

No seguinte texto o P. Dehon mostra seu modo de ver, os valores que deve reger as ocupações do religioso, colocando seu ápice no próximo e levando em conta que “a glória de Deus é que o homem viva”:

[...] Não obstante tudo, a caridade com o próximo e a glória de Deus exigem, às vezes, uma interrupção ou um atraso. Em tal caso se há de regular-se com a liberdade dos filhos de Deus, que não é mestre cruel e injusto mas Pai cheio de amor e de misericórdia. [...].(6)

Com o mesmo vigor e clareza ele fala de algo que conhece muito bem: nossa condição e nossa atuação real na vida cotidiana:

“Qualquer bobagem [...] basta para distrair-nos, para dispensar-nos de um dever tão santo, ou de bem cumpri-lo, com tal desatenção, de uma maneira tal e de uma postura tal que revelam a indiferença condenável, a falta de espírito e de coração. A causa principal destas ofensas à Majestade Divina se há de buscar na falta de fé viva e verdadeira. Todos estes ultrajes devem ser reparados pelos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus. Esta intenção deve ser cada vez renovada com fé viva, com zelo verdadeiro e amor puro”.(7)

Adverte, previne e anima acerca da luta que cada um deve empreender para alcançar o ideal que nos oferece a experiência beneditina: “Consideremos de que maneira haveremos de estar na presença da Divindade e de seus anjos, e portemo-nos durante a salmodia de tal modo que a mente concorde com nossos lábios”.(8) Somos um todo, corpo e alma, alma e corpo. Um sem o outro não é nada, e uma oração sem coração, sem atenção de sentidos, sem consciência, sem amor, sem presença, sem disposição não é nada. Neste sentido, comentava o seguinte a seus noviços a 7 de março de 1880:

“Na capela é elementar colocar-se em seu lugar: logo, não apoiar-se no genuflexório e no respaldo ao mesmo tempo. Como entraremos repetidamente na capela ao longo do dia, acabamos perdendo o respeito. O Sumo Sacerdote em Jerusalém não entrava no Santo dos Santos senão nas grandes festas e não sem preparar-se com vigílias e jejuns e, contudo, ali não estava presente o Corpo de Jesus. Os padres sobretudo poderiam esquecer este respeito, pois rezam ali freqüentemente o divino Oficio. Durante este exercício, não prescindir do livro e não ler à distancia, deixando o livro do banco”.(9)

O corpo também ora e por meio dele nos relacionamos com Deus. O que fazemos com ele é expressão de nossa fé, de nossa adoração, de nossa piedade, de nossas crenças mais profundas. Para tanto, fé viva e verdadeira, zelo e amor puro são as ferramentas que o fundador nos dá para celebrar uma Liturgia das Horas coerente com nossa espiritualidade, nosso carisma e nosso bem como religiosos e como comunidade religiosa aberta ao encontro com o Senhor Ressuscitado, vivo e presente, na Palavra, na Eucaristia, na História, no Homem, rico ou -sobretudo- pobre, são ou enfermo, justo ou pecador.

Em relação aos horários, o P. Dehon é filho da Igreja de seu tempo, embora desponte a indicação que faz acerca da reza comum do Breviário. Vejamos como distribuía o Oficio Divino o fundador:

“O Oficio Divino deve rezar-se em comum nas casas de nosso Instituto ou, pelo menos em parte (Vésperas e Completas). Convém dividir a reza do Breviário em três partes: as Horas Menores pela manhã, Vésperas e Completas depois de come,r e Matinas e Laudes pela tarde, depois das quatro”.(10)

Tais instruções diferem muito do que haveria de ensinar o Vaticano II. Porém não deixa de ser indicativo do fundamental da herança dehoniana e da práxis da Igreja. O Concilio Vaticano II quis recuperar a “verdade das horas”, isto é, que se reze pela manhã, pela tarde e pela noite, cada qual a seu momento, para conseguir, desta forma a santificação, a oferenda de todo nosso tempo a Deus, para tornar palpável sua presença em nossas vidas.

Thesaurus Precum

Outra jóia que encontramos é a oração incluída no Thesaurus Precum para rezar antes de iniciar o Ofício Divino. Nela se encontram profundas linhas teológicas: a dimensão escatológica acentuada em seu dimensão eclesial nos mostra a união entre a Igreja invisível e a visível, que formam assim o Corpo de Cristo que junto com sua Cabeça oferece louvor a Deus, memória de sua entrega e oblação. Escatologia, eclesiologia, eucaristia, oblação, encarnação, espiritualidade trinitária e do Coração de Jesus, consciência da dialogicidade neste tipo de oração, onde tanto Deus como o homem falam e se doam a si mesmos, ecoam nas seguintes palavras:

Meu Deus, - te ofereço este Oficio Divino - juntamente com a adoração e os louvores dos Anjos e Santos do Céu - com a de todos os sacerdotes de tua Igreja e das demais almas consagradas. Te apresento, Pai eterno, - este louvor santificado no Coração de Jesus - e unido à sua santíssima oração, - pelas mãos do Coração Imaculado de Maria. - Seja cada letra e cada palavra desta oração um ato de puro amor, - adoração, - ação de graças, - satisfação, - confiança - e obséquio - à tua Santíssima vontade. - Embora miserável como sou, - seja para mim esta oração - uma comunhão espiritual, - um ato de humildade e de perfeita abnegação, - e, para Ti, Sacrossanta Trindade, - um sacrifício de louvor e honra. - Amém.(11)

A oração (“oblação” diz o Thesaurus) abreviada que se usava antes da reza das Horas menores e das Vésperas conserva o fundamental do espírito da LH (oração de toda a Igreja, Corpo místico de Cristo, unido à sua Cabeça em louvor ao Pai), com o fundamental do carisma e da espiritualidade dehoniana

(amor e reparação):

Padre eterno, - por meio do Coração de teu Filho Jesus - e em união ao Coração Imaculado de Maria, - humildemente Te ofereço - este Divino Ofício, - em sinal de amor - e em espírito de reparação.

A 21 de dezembro de 1867, Leão é ordenado subdiácono. Desde o princípio daquele ano tinha comprado o breviário 'para aprender a rezá-lo bem', como diz numa carta a seus pais (7.1.1867)”.(12) Esta nota biográfica nos faz ver o apreço cordial que o P. Dehon manteve com esta forma de oração, certamente canónica e obrigatória, porém de uma riqueza espiritual inigualáveis. Vamos agora mergulhar em águas novas que provêm do mesmo manancial porém renovadas e adaptadas a novos tempos: nossa Regra de Vida.

A Liturgia das Horas à luz de “Nossa Regra de Vida” (1982)

Antes de continuar devemos estabelecer um ponto de partida. Nem em P. Dehon nem na actual Regra de Vida se inclui um tratamento específico e sistemático da LH. A LH é algo que nos vem dado, que corresponde à disciplina da Igreja e que em muitas ocasiões é assumido de modo acrítico (quando não com mau humor e murmuração). Nas páginas seguintes queremos fazer um novo exercício de busca. Queremos propor, à luz da actual Regra de Vida, linhas para uma reza HOJE, dehonianamente orientada, da LH. É uma releitura do sentido que a LH encontra o projecto global de cristificação que propõe o carisma do P. Dehon. Como centro de reflexão se apresenta a Eucaristia que é conteúdo da oração, relação com o Pai e compromisso de trabalhar unanimemente pelo Reino de Deus. Nesta linha colocamos a LH como instrumento que serve e pode ajudar a integrar estes objetivos gerais.

Assim, pois, começamos a falar da experiência pessoal, concreta, intransferível, íntima, de encontro com o Ressuscitado é a base a partir da qual pode-se falar de vida do cristão. A este encontro segue o processo de adesão a Cristo. Adesão que prolongará os efeitos do encontro em todas as circunstâncias e durante toda a vida em:

- um caminho de ascendente intimidade, união, vizinhança e filiação com o Deus uno e trino;

- um caminho de amor servil, de amor oblativo, de consagração ao próximo, de imolação, de entrega total à vida do irmão, sacramento de Cristo, especialmente do mais necessitado;

- tudo isto dentro da koinonia eclesial.

Se isto vale para todo o cristão, o religioso vê especificada seu vocação peculiar dentro da Igreja num chamado a seguir mais de perto a Cristo. Através da vivência dos votos, da vida fraterna e da total entrega ao serviço do Reino, é memória diante da Igreja da forma que adotaram Jesus e seus apóstolos. Nada mais nem nada menos. A cada carisma é dada uma “palavra da Palavra”. Nesta pequena Palavra se encontra Deus. Para o religioso dehoniano, a Palavra de Deus se lê e se entende através do carisma, Palavra de Deus dada a nosso fundador. Assim, o religioso dehoniano encontra nas cst. 5 este caminho ao qual antes nos referíamos, assim explicitado:

Esta adesão a Cristo, nascida do mais íntimo do Coração, realiza-se em toda seu vida, sobretudo no seu apostolado, caracterizado por uma constante solicitude pelos homens, em especial para com os mais desamparados, e pela preocupação de remediar, de maneira concreta, as deficiências pastorais da Igreja do seu tempo.

Cst. 28 nos faz dar um passo adiante. Quem experimentou o toque de Deus fica com esta sede que o salmo 62 canta em domingos e festas, fica ferido de amor, como diz o Cantar dos Cantares e São João da Cruz. Começa a busca de sinais, dos dons, da presença que nunca é bastante. O amor inquieta, ativa, busca a plenitude da entrega, da doação, do não ser eu, mas nós, de que não seja eu mas Cristo quem vive em mim (cf. Gal 2, 20):

Desejosos da intimidade do Senhor, procuramos os sinais de sua presença na vida dos homens, onde actua seu amor salvador.

Seguindo o espírito do P. Dehon, a concentração sacramental e existencial de toda esta espiritualidade e forma de vida se dá no memorial sacrifical da Eucaristia.

LG 11 nos recorda que a Eucaristia é “fonte e ápice de toda a vida cristã”. PO 5 sublinha a centralidade deste sacramento já que ele “contém todo o bem espiritual da Igreja, isto é, Cristo mesmo, nossa Páscoa”. O projeto de cristificação que o P. Dehon propõe a seus religiosos se condensa em toda a herança espiritual que nos deixou, especialmente, no ato de oblação e na adoração eucarística, rios que nascem da imensa fonte que é a Eucaristia celebrada e vivida em fraternidade.

O Catecismo da Igreja Católica cita, em sua abordagem da Eucaristia, esta sentença de Santo Irineu: “Nossa maneira de pensar se harmoniza com a Eucaristia, e por sua vez a Eucaristia confirma nossa maneira de pensar”.(13) Nesta linha devemos considerar nosso afeto, nosso estudo, nosso aprofundamento na LH, sobretudo na oração dos salmos: Cristo está presente neles e nos convida a unir-nos a ele no louvor a seu Pai. Nos ensina como é o Pai e nos dá alimento em seu Palavra para o caminho de serviço, de entrega, de imolação, que tanto sabe de noites escuras, de exultações, de bênçãos e de abandonos.

Mostra desta conexão entre eucaristia, oração e serviço são as cst. 31:

Para Padre Dehon, fazem parte desta missão a adoração eucarística, em espírito de oblação e de amor, como autêntico serviço de Igreja (cf. NQ 1.3.1893) e o ministério junto aos pequenos e humildes, os operários e os pobres” (cf. Souvenirs XV), para anunciar-lhes as insondáveis riquezas de Cristo (cf. Ef 3,8). [...] Em todo isso, sua preocupação constante é que a comunidade humana, santificada pelo Espírito Santo, torne-se uma oferta agradável a Deus (cf. Rm 15.16).

A contínua atitude (e actividade) de alimentar-nos da Palavra, de orar com ela, de conhecê-la, vivê-la, interpretá-la, escutá-la, inseri-la em nossa vida pessoal, nos fará capazes de ser anunciadores proféticos desta Palavra de Amor. Nos permitirá ser Profetas do Amor, e nesta nova “encarnação diminutiva” (memória e paradigma de entrega, amor e oblação) da Palavra, continuar no mesmo Espírito de Cristo a obra de reconciliação (e reparação de uma ordem de realidade alterada pelo pecado palpável) que começou Deus já desde o momento em que deixou a esperança aberta para o homem expulso do paraíso, da comunhão com Deus. Assim dizem nossas cst. 7:

Padre Dehon espera que seus religiosos sejam profetas do amor e servidores da reconciliação dos homens e do mundo em Cristo (cf. 2 Cor 5,18). Desta forma, comprometidos com ele, para reparar o pecado e a falta de amor na Igreja e no mundo, prestarão, em toda a sua vida, suas orações e trabalhos, seus sofrimentos e alegrias, “o culto de amor e reparação que seu Coração deseja” (cf. NQ XXV,5).

Cst. 25, com toda sua concentração de esperança escatológica:

Nosso amor, associado à obra da reconciliação, cura a humanidade, reúne-a no Corpo de Cristo, e consagra-a para a glória e a alegria de Deus.

Se diz que Livro dos Salmos recolhe toda a experiência de fé e de esperança do Povo de Israel. O que os outros livros do AT nos narram, o dos Salmos o reza. Cristo orou com os salmos. O conteúdo de sua oração ao Pai era o Reino, seu missão, sua esperança, seu sentido, seu objetivo. A Igreja trasladou o conteúdo do anúncio: do Reino que pregava Cristo passou-se a pregar o pregador do Reino, ou seja, o próprio Jesus Cristo. Jesus Cristo é o Reino. O lema de nossa Congregação “Adveniat Regnum tuum” se redimensiona a partir desta perspectiva e nos ajuda a contemplar em nossos momentos de oração a necessidade de tender a ser “outros Cristos”, ou melhor, prolongamento do mesmo e único Cristo que vive, anunciadores do Reino. Vejamos as csts. 11 e 17:

Cristo rezou pelo advento do Reino, já presente e atuante entre nós (cst. 11).

Assíduos à escuta da Palavra e à fração do Pão, somos convidados a descobrir, cada vez mais, a Pessoa de Cristo e o mistério de seu Coração e a anunciar o seu amor que supera todo o entendimento (cst. 17).

Este trecho mostra que S. Agostinho compreendeu na expressão “Alter Christus” ao menos duas dimensões fundamentais na vida do religioso:

- por um lado, a dimensão individual, que vemos expressada de modo claro nas cst. 42, na abordagem do voto de celibato consagrado:

Este compromisso, mantido fielmente, muitas vezes à custa de grande esforço, (cf. Mt 5,29) pela união a Cristo nos sacramentos e pela ascese pessoal, liberta nosso Coração; torna-nos atentos à inspiração do Espírito e nos dispõe para o encontro com o próximo na caridade fraterna.

- por outro, a dimensão da comunidade. Cristo é o cerne da vida comum, da construção da vida humana e espiritual de cada um dos religiosos. Se Cristo é o cerne, a Rocha firme da qual se levanta o edifício, se é o Arquiteto, o resultado final não poderá ser outro mais que o próprio testemunho de Cristo ressuscitado e glorificado. A comunidade reunida em oração, em louvor, em determinadas horas do dia, encontra aqui o lugar privilegiado para a consecução de seu objetivo: o anúncio do Senhor. Isto é o que rezam as cst. número 67:

Também nisso, a comunidade se esforça para dar testemunho de Cristo, em nome do qual está reunida. E, ao mesmo tempo, ela pode contribuir de modo considerável para a realização das pessoas que a compõem.

No n. 79 as cst. se expressam mais concretamente, partindo do realismo e a experiência de anos de vida comum e de seguimento de Cristo:

Sem o espírito de oração, a oração pessoal definha; sem a oração comunitária, a comunidade de fé perece.

Que ferramentas nos propõe a Regra de Vida para viver e aprofundar em este espírito de oração pessoal e comunitária?

Cada comunidade terá o cuidado de estabelecer os tempos e as formas de sua oração comum, que exprimam o espírito de nossa vida religiosa e nos façam participar na oração da Igreja, particularmente pela liturgia das Laudes e das Vésperas (cst. 79).

Assim, por exemplo, o Directório Provincial HI dá indicações para cumprir o que a Regra nos inspira:

As Laudes destinam-se a santificar a manhã, e, através delas, nos unimos ao ato de oblação próprio de nosso instituto, que se recita também diariamente, pelo que nos entregamos com todas nossas faculdades ao cumprimento da vontade de Deus. Pela tarde, a comunidade se reúne para a oração de Vésperas ou Completas (DP 2).

No podemos esquecer que a oração não é tão somente uma recreação intelectual-sentimental, um sentir-se simplesmente bem, mas é, sobretudo, um diálogo vital que nos abre à missão de um modo inequívoco, discernido e garantido pela autoridade da Igreja:

Reconhecemos que da assiduidade à oração dependem a fidelidade de cada um, em particular, e de nossas comunidades, em geral bem como a fecundidade de nosso apostolado (cst. 76).

Acolhendo o Espírito que reza em nós e vem socorrer nossa fraqueza (cf. Rm 8, 26ss.), queremos, em seu Filho, louvar e adorar o Pai que, dia por dia, realiza em nós sua obra de salvação, e nos confia o ministério da reconciliação (cf. 2 Cor 5,18). Fazendo-nos progredir no conhecimento de Jesus, a oração estreita os laços de nossa vida comum e constantemente a dispõe para o cumprimento de sua missão (cst. 78).

E mais claramente:

Pela celebração eucarística, unidos a toda a Igreja, na memória e na presença do Senhor, acolhemos aquele que é a razão de nossa vida em comum, aquele que nos consagra a Deus, e nos envia sem cessar pelas estradas do mundo a serviço do Evangelho (cst. 82).

Conclusão

Deus falou e fala através de sua Palavra. Deus fala e nos conclama através dos eventos do mundo e da história cotidiana. Deus é fiel, é veraz, é amor, é entrega. Deus escolhe, guia e envia. Como veremos a seguir, na última citação que fazemos, nossa fidelidade, verdade, amor, eleição e entrega dependem em grande medida de nossa lucidez em estarmos atentos ao nosso progresso espiritual, à nossa união no amor a nosso Senhor. Estas linhas pretendem ser, não obstante todos os seus defeitos, um apelo a viver, a partir do Coração, a oração da Igreja, a aproveitar estes minutos em que nos reunimos como comunidade para louvar o Senhor, para fazer Igreja e renovar nossa entrega, nosso carisma e nosso ministério dentro dela. Na Igreja, Deus quis deixar um meio de santificação e salvação. Salvação e santificação individuais? As linhas de demarcação através das quais sempre nos temos movido são as de uma oração que precisa da comunidade; comunidade também orante, celebrante, vivente. A LH é um destes meios. Também quis ser um convite, sobretudo aos que somos mais jovens em vida religiosa SCJ, a ler os escritos “no original” de P. Dehon e, repousados em nossos corações, devolvê-los à vida porém em nosso tempo, em nossa Igreja, em nossa sociedade, em nossa história, não nas do P. Dehon que já passaram e jamais voltarão. Será um modo privilegiado de sermos fiéis à nossa vocação, à nossa espiritualidade, à nossa missão, à nossa vida, a nosso fundador e a nosso Deus e Senhor:

Certos da indefectível fidelidade de Deus, e enraizados no amor de Cristo, sabemos que nossa opção pela vida religiosa, para se manter viva, exige encontro assíduo com o Senhor na oração, conversão permanente ao Evangelho, e disponibilidade de Coração e de atitudes, para acolher o HOJE DE DEUS (cst. 144).

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NOTAS

1. Este texto é fruto de várias redações e acréscimo de elementos. Em sua intenção original, estava integrado em um trabalho de síntese acerca da Liturgia das Horas dirigido a jovens seminaristas que logo se transformaram em reflexões surgidas em momentos de estudo no Escolasticado de Salamanca. É, portanto, um trabalho-base, ao qual foram sendo acrescentados novos elementos. Ao longo da leitura podem aparecer elementos muito evidentes, coisas sabidas, idéias redundantes ou que beirem perigosamente a utopia. Peço, por isso, a indulgência e a paciência do leitor.

2. Directorio Espiritual V, 1. a edição espanhola traduz assim: “Nuestro lugar e reposo es la oración, es el Corazón de Jesús, misteio de amor y de inmolación” com o que se perde o significadi fundamental do texto: o modo típico dehoniano de orar e seu objeto.

3. Em outro trabalho mais extenso, analiso todos estes textos e ofereço a tradução espanhola de todos eles. Não poderia dispor de tanto material sem a ajuda do P. Egidio Driedonkx a quem agradeço todo o trabalho e tempo dedicado. Igualmente agradeço a colaboração, o a orientação e o interesse dos PP. A. Tessarolo, A. Perroux e S. Tertünte. Assim como a paciente ajuda dada por os PP. E. Mtez. de Alegría e J. C. Briñon na compreensão, tradução e adaptação dos textos originais franceses. também as críticas e revisões do texto de C. L. Suárez e J. L. Domínguez. Todos eles Sacerdotes do Coração de Jesus.

4. NHV V 132-133, pp. 123-124.

5. Diretório Espiritual V, par. 3. o original francês fala do Rei e não de Deus para que permaneça a imagem da guarda de honra. Em todo o caso, a tradução espanhola não tira nada do sentido profundo.

6. Diretório Espiritual V, par. 3.

7. Diretório Espiritual V, par. 3. uma vez mais, o texto espanhol não é fiel ao original.

8. Regra de São Bento, XIX, 7.

9. CAF I, 72 (p. 61 da edição espanhola).

10. Diretório Espiritual V, par. 3. a tradução não é adequada pero não influi.

11. Thesaurus Precum, pp. 74-75.

12. MANZONI, G., León Dehon e su mensaje (El Reino, Torrejón de Ardoz 1995) p. 149.

13. CEC n. 1327.