DOSSIÊ CENTRAL

O MUNDO DO CORAÇÃO NO CORAÇÃO DO MUNDO

Paul Mc Guire (US)

Introdução

Em meados do século dezenove nenhuma instituição se opunha tanto ao progresso do mundo quanto a Igreja Católica Romana. Esta oposição está sintetizada no Sillabus de 1864, o qual rejeitava a idéia de que “o Papa deveria se reconciliar e concordar com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna” (1). Cem anos mais tarde o Vaticano II escrevia: “As alegrias e as esperanças, os sofrimentos e as angústias dos homens do nosso tempo, especialmente dos pobres e afligidos de modo geral, são também as alegrias e as esperanças, as dores e os sofrimentos dos discípulos de Cristo” (2).

Proponho-me a interpretar o que aconteceu neste período de cem anos, entre estes dois documentos, indo do confronto e da rejeição para a abertura e a reconciliação com o mundo moderno. A tarefa é grande para um trabalho pequeno. Concentro-me no papel de P. Dehon como um modelo da época. Ele representa esta mudança de atitude frente ao mundo moderno em seu envolvimento com os diversos problemas de seu tempo.

I. P. Dehon em São Quintino

Quando P. Dehon terminou seus estudos tinha 28 anos. Ele era doutor em Direito Civil, em Filosofia, em Teologia e em Direito Canônico. Ela não era tímido, mas introvertido, reservado e inclinado ao ascetismo.

Antes da Revolução, sua família pertencia à aristocracia; mais tarde continuaram como prósperos latifundiários e destaque na política local. Sua formação privilegiada isolou-o do contato com gente simples. Sua formação no seminário não lhe proporcionou qualquer experiência pastoral. Ele nunca teve um curso do homilética. Seus seis anos passados em Roma são descritos como uma experiência monástica, tomados por estudos exaustivos, vida espiritual sob o panorama arcaico da cultura do catolicismo Romano.

Ele teria preferido continuar seus estudos. Sonhava também numa carreira como professor de seminário ou universidade. Quando este projeto estava para ser concretizado, circunstâncias especiais levaram-no para outra direção. Ele colocou-se à disposição do bispo que, em novembro de 1871, nomeou-o vigário paroquial na basílica de S. Quintino.

Podemos imaginar a decepção por uma nomeação dessas. Um de seus colegas de estudos comentou: “Você numa paróquia? É ridículo!” (3). A cidade era difícil. Situada no norte industrializado da França, São Quintino abrigava diversas indústrias têxteis, bem como metalúrgicas e algumas indústrias leves. Não havia aristocracia, apenas uma classe de profissionais liberais. Pouca vida cultural. Seus 30 mil habitantes eram católicos batizados e teoricamente paroquianos da única paróquia da cidade.

Os padres se revezavam no atendimento ordinário da paróquia e cada um cuidava de algum ramo da pastoral. Um deles era o regente do coral, outro editava o jornal da diocese, outros eram capelães em escolas e conventos. Cada padre tinha algumas famílias que visitava com frequência. O resto da cidade raramente via um padre (4). O clero oferecia seus serviços a quem aparecesse na igreja. Os outros viviam no paganismo (5).

Logo após chegar, P. Dehon anota em seu diário: “Logo me encontrei em contato com o povo”. Ele logo se apercebeu do empobrecimento e das péssimas condições que o trabalho nas fábricas proporcionava às massas urbanas. Ele escreveu: “A maioria dos 30 mil habitantes vive do salário que sobe ou desce de acordo com o mercado, como o preço dos escravos. Não havia organismos para defender os operários. Noventa por cento dos industriais não tinha noção de seus deveres como empregadores. Velhos, doentes e crianças padeciam fome e miséria nas famílias. Algumas famílias enriqueciam enquanto a grande maioria empobrecia...

Podia-se dizer que ninguém dos operários ia à igreja. Esse bom povo trabalhador nunca escutou uma palavra de incentivo de seus padres ou patrões. A situação deles era pior do que a dos escravos de tempos passados, os quais muitas vezes eram considerados membros da família. Compreendia-se porque essa gente alimentava ódio e desdém pela classe empresarial e pelo clero que nada fazia por eles”.

A maioria das famílias vivia em casebres, nas periferias da cidade. “Dentro de casa só tinham uma mesa, algumas cadeiras, camas velhas e um colchão de palha. Havia uma Caixa Econômica mas não sobrava um vintém para nela depositar. Os únicos organismos existentes para eles eram dois institutos de seguridade social que auxiliavam em caso de doença. No inverno, um terço da cidade vivia da caridade pública”. Ele conclui dizendo que a cidade estava podre e todas as queixas da população eram legítimas (6). Lendo o “Sermão do Natal” (1871), entende-se a perplexidade de P. Dehon diante das injustiças, contra as quais ele fala apaixonadamente. Apesar disso, ele não alimentava nenhuma vontade de ir contra a situação. Passou a trabalhar dentro das estruturas existentes.

Uma das tarefas de P. Dehon era a de lecionar religião numa escola pública. Penso que isso se deva ao fato de ele ser doutor. Foi a partir dessa simples e nada promissora missão que ele deu início ao seu notável apostolado. Mais tarde, recordando o passado, ele afirma que sua vocação de defensor e porta-voz da causa da justiça social nasceu ali. Ele se atirou por inteiro a este trabalho e pareceu-lhe encontrar receptividade naquelas pobres crianças. Ele as confessava regularmente e as incentivava a que viessem sempre (7). Alguns meses depois ele passou a reunir uma meia dúzia deles na igreja, aos domingos, depois das vésperas. Foi o começo do grupo de jovens.

P. Dehon pensava em algum meio de manter naquela gente o pouco que conseguia transmitir-lhes nas salas de aula e no confessionário. “Eu precisava fundar um grupo de jovens”. Na primavera de seu primeiro ano na paróquia a casa paroquial já não tinha espaço para abrigar o número crescente de jovens que compareciam. No verão ele gastou 20 mil francos de seu dinheiro na compra de um terreno e mais 8 mil na construção de uma capelinha e de uma sala de reuniões (9). Ele conseguiu a ajuda de alguns vicentinos e outros senhores da cidade nesta missão (10).

O grupo se entretinha com jogos, esportes, catequese, passeios, música e teatro. Tinha uma biblioteca e até uma caderneta de poupança. Toda semana tinha uma reza e uma palestra de P. Dehon. Ele partia de uma história ou um fato concreto para atrair a atenção deles. Também usava fotografias e objetos recolhidos em suas viagens, como motivação. No fim do primeiro ano cerca de 200 jovens faziam parte do grupo, número que dobrou nos anos sucessivos. Eram adolescentes de 12 a 16 anos. No segundo ano de paróquia ele criou outro grupo para jovens de 17 a 25 anos. A este grupo ele deu um curso sobre os princípios cristãos da economia. Ele se empenhava em arranjar moradia para os jovens que viessem do campo em busca de emprego. A seguir, formou um grupo de patrões e benfeitores, uns trinta a quarenta homens, e os conscientizava sobre as condições dos trabalhadores e pedia-lhes apoio para suas iniciativas. Fundou outro grupo, para alunos do Liceu, filhos da classe burguesa, que seriam os líderes mais tarde. P. Dehon deu-lhes cursos de religião e estudos sociais e criou, com eles, uma Conferência Vicentina para colocá-los em contato com os pobres.

Além disso tudo, ele fundou um jornal e era capelão de um convento de freiras que ele ajudou a trazer para São Quintino. P. Dehon coordenava os programas sociais da diocese e promovia encontros e reuniões diocesanas sobre as questões sociais. Seis anos depois de chegar, ele escrevia: “Tudo me sorria em minha vida. Eu era benquisto de todos e tinha sucesso em meu trabalho. Era cônego honorário aos trinta e três anos. Diziam que eu seria Vigário geral na primeira vaga que houvesse. Contudo, eu não estava satisfeito. Parecia-me que minha vida espiritual e intelectual estivesse se diluindo. Eu não tinha tempo para estudar. Estava sobrecarregado. Meus atos de piedade ficavam prejudicados. Eu não acreditava estar no lugar certo e ansiava pela vida religiosa” (11).

Já nos tempos de seminário P. Dehon desejava entrar numa ordem religiosa. Ele andou se informando sobre vários institutos e esteve por entrar nos espiritanos, nos jesuítas e nos assuncionistas. Ironicamente, seu sucesso na pastoral impediu-o de deixar seu trabalho e realizar seu sonho. Cada vez que ele tentava se livrar de seus compromissos chegava sempre à mesma conclusão: não havia ninguém para substitui-lo. Então, na primavera de 1877, ele percebeu que havia uma idéia maturando em seu coração. Se ele queria ser religioso e não podia deixar seus trabalhos, talvez o Senhor o estivesse chamando a fundar uma nova Congregação em São Quintino (12).

Em junho ele apresentou a proposta ao bispo, o qual não se opôs à idéia mas estava com planos de criar um colégio na diocese. Fez então esta oferta a P. Dehon: ele fundaria o colégio e receberia permissão para começar uma Congregação. Assim, a Congregação nasceu sob a égide do Colégio São João, em São Quintino. A licença formal foi dada numa carta de 13 de julho de 1877. No dia seguinte ele comprou um terreno e começou os trabalhos para que o novo colégio pudesse abrir no outono seguinte. Uma semana depois foi morar no convento onde era capelão e começou seu noviciado, fazendo um retiro durante o qual escreveu as Constituições da nova congregação.

II. P. Dehon e a devoção ao Coração de Jesus

Considerando as atividades de P. Dehon, seria óbvio que qualquer congregação que ele fundasse fosse dedicar-se a trabalhos sociais. Entretanto, nada mais certo dizer que a Congregação, em seus inícios, era mais monástica que apostólica. P. Dehon dizia a seus noviços: “Somos muito mais devotados à contemplação que à vida ativa. Esta será sempre acidental em nossa vocação”. (13). Ele escreveu nas constituições que a participação de seus membros na catequese e na pregação não deveria afastá-los de sua residência comum (14). A finalidade principal era a santificação de seus membros através da adoração e de práticas espirituais voltadas à devoção ao Sagrado Coração.

Pode-se entender melhor esta aparente contradição ao levar em conta a influência que a devoção ao Coração de Jesus teve no catolicismo francês do século XIX. A devoção ganhou popularidade dois séculos antes graças às revelações da Margarida Maria Alacoque, nas quais o Coração de Cristo se mostrava como uma fornalha de amor. As mensagens transmitidas por Margarida falavam de um Coração como sede do amor infinito de Deus pela humanidade e da indiferença que este Coração encontrava por parte da maioria da humanidade. A maior missão de seus discípulos seria então reparar esta indiferença, consolando o Coração traspassado de Jesus e retribuindo seu amor infinito. Em sua simplicidade, esta mensagem conquistou a atenção de muitos fiéis católicos, como poucas vezes acontecera antes.

A popularização desta devoção deveu-se ao fato de ter aparecido quando o mundo começava a se tornar “moderno” e a devoção parecia ser o antídoto ideal a este perigo. O termo “mundo moderno” é apenas uma expressão técnica para designar o mundo contemporâneo de então, caracterizado por certos valores e uma nova mentalidade. Trata-se de um mundo auto-suficiente, baseado nas conquistas da ciência e nas suas aplicações práticas, ou seja, na tecnologia. Tudo o que não podia ser verificado pelo método científico, isto é, medido, pesado e contado, não tinha valor no mundo moderno. A ciência reduzia Deus a uma realidade espiritual inimaginável. A tecnologia, que deu ao homem um poder incomensurável sobre a natureza, passava a dispensar a realidade espiritual de Deus (15). O mundo moderno era, então, um mundo que podia existir sem Deus, que se movia pelas regras da técnica e da razão. A cabeça e as mãos passaram a ser os instrumentos de domínio do mundo moderno.

Na mesma época em que a irmã Margarida Maria começou a propagar a devoção ao Coração de Jesus a medicina passou a contar com descobertas importantes ao coração do homem. O doutor William Harvey afirmava que não havia nenhuma base científica para afirmar que o coração pudesse ser considerado o centro dos afetos ou o centro organizador do ser humano. Expressões como “Eu te amo de todo meu coração”, ou, “Teu sofrimento pesa em meu coração” eram meras figuras de linguagem sem qualquer valor científico. Pelos padrões do mundo moderno o coração era uma simples bomba (16). Em meio a tais idéias, Ir. Margarida apresenta a imagem do coração de um modo a nada ter em comum com a máquina descrita pelo Dr. Harvey. Ela descrevia o Coração de Jesus envolvido em chamas, banhado de luz, ornado por uma cruz e uma coroa de espinhos. Tratava-se, evidentemente, de uma forma simbólica de apresentar a identidade da pessoa de Jesus.

Assim apresentado, o coração era o símbolo de uma espiritualidade a partir da realidade interior da pessoa. O Coração de Cristo é o símbolo de seu amor, sua essência. É Cristo, em seu amor pelo Pai e pela humanidade seus pensamentos, seus afetos, o centro propulsor de todos os seus gestos de amor. Embora Harvey demonstrasse que o coração nada tinha a ver com os afetos e as decisões do ser humano, este continuou a ser um sinal do amor, um símbolo do ser humano. No tempo em que o coração era apresentado como uma bomba, ou uma máquina, a devoção ao Sagrado Coração propunha um “coração que continuava a ser uma fornalha de amor” (17).

Se esta devoção fala do inflamado amor de Deus por nós, simbolizado no Coração do Filho, ela também contém importante mensagem sobre o valor do ser humano e sobre o papel do coração em relação a Deus. Se o Coração de Cristo revela sua verdadeira identidade então o nosso coração mostra nossa identidade, o lugar onde somos mais sinceros. Sendo o homem criado à imagem de Deus somos chamados a viver em união com Deus e o coração é o lugar do encontro com Deus, no qual nos conhecemos, somos conhecidos e conhecemos o amor de Deus por nós. Dentro de nosso coração podemos ser tocados e mudados pelo Coração de Cristo que vem em nossa busca quando nosso amor por Deus se esfria. Num mundo em que as conquistas da cabeça e das mãos são o máximo, esta devoção chama a atenção para o coração como um modo superior de conhecimento da plenitude de Deus porque ele só é conhecido quando é conhecido pelo coração.

Mostrando seu Coração como símbolo de si mesmo e de seu amor, Cristo convida as pessoas a conhecer suas intenções, atitudes e sentimentos da mesma forma como convidou o apostolo Tomé a examinar as feridas de suas mãos e de seu lado aberto. Assim, contemplando os mistérios de seu coração, os corações frios e insensíveis dos homens podem ser tocados e mudados de acordo com o dele (18). Margarida Maria escreveu que o propósito desta devoção “é converter as almas ao amor de seu divino coração e fazer dele o senhor e dono de nossos corações, pela retribuição de seu amor por nós” (19). Num mundo moderno, sempre mais dominado pela tecnologia desumanizadora, é fácil entender a atração de uma tal devoção que acentua o amor, a intimidade, a afeição simbolizada pelo coração.

É importante lembrar que a devoção ao Coração de Jesus foi um movimento popular, um movimento de raízes profundas. Não originou-se na hierarquia nem a partir dos teólogos. Ela sempre foi vista como um meio de aprofundar a intimidade com Cristo (20). Esta intimidade era favorecida pelas práticas recomendadas por Margarida Maria como a comunhão frequente, as primeiras sextas-feiras, a Hora Santa e a adoração ao Santíssimo, as mesmas devoções recomendadas por P. Dehon aos seus seguidores (21).

Estas práticas cultivavam uma sensibilidade que pode ser descrita pela palavra intimismo, um termo que evoca uma atitude de distanciamento do mundo exterior e das atividades sociais. Elas eram a resposta à presença de Cristo, experimentada como a de um amigo preocupado com a salvação e o bem de cada alma. Neste sentido, a devoção era um antídoto contra a impessoalidade do mundo moderno e, ao mesmo tempo, proporcionava uma alternativa à frieza da liturgia oficial e a rígida moral católica. A devoção ao Sagrado Coração tornou-se a mais popular expressão de piedade do século XIX porque foi ao encontro das necessidades reais do povo e constituía uma resposta para seus frustrados desejos de afirmação pessoal num mundo dominado por forças impessoais.

Por outro lado, esta devoção era limitada, pois não ia além do relacionamento individual com Jesus. O alcance pastoral se limitava a convidar outros a fazerem as mesmas práticas ou a rezar pela conversão das massas, oferecendo a Cristo uma compensação pela falta de amor no mundo. P. Dehon endossou esta atitude quando escreveu nas constituições que os membros da Congregação “deveriam se esforçar ao máximo para satisfazer os desejos expressos pelo Coração de Cristo de ser compensado pela frieza e indiferença de tantos cristãos que o abandonaram covardemente, e especialmente pela falta de amor, a ingratidão e a infidelidade das quais tanto se queixou a Margarida Maria “ (22).

Nas questões políticas e sociais a devoção era geralmente associada à direita e às causas reacionárias. No início, P. Dehon pensava assim. Com o tempo foi mudando. Não houve nenhum fato marcante que o justificasse. Não houve uma conversão repentina, uma “estrada de Damasco”. Ele evoluiu aos poucos. Algumas idéias ele já cultivava de há tempos; outras foram evoluindo com a experiência e as novas circunstâncias. Se não houve um momento mágico de iluminação, houve um fato que cristalizou seu pensamento e o empolgou pelo apostolado social.

III. P. Dehon e o apostolado social

Em 1888, dez anos após ter fundado a Congregação, P. Dehon recebeu a primeira aprovação oficial de sua obra, por parte de Roma. Chamado “Decreto de louvor”, concedia a aprovação da Igreja ao espírito e aos objetivos que animavam a nova ordem religiosa. Naquele mesmo ano ele foi a Roma agradecer ao Papa. A 6 de setembro foi recebido por Leão XIII o qual, conhecendo a obra de P. Dehon, aproveitou a ocasião para lhe pedir que pregasse suas encíclicas, orasse pelos padres, abrisse casas de adoração e fosse às missões. “Desta forma farão muito bem e tenho certeza que sua obra haverá de prosperar” (23).

As encíclicas a que se referia o Papa são instruções que ele periodicamente publica à Igreja a respeito de temas que necessitam de orientação. Durante os 25 anos de pontificado, Leão XIII escreveu 86 encíclicas, um recorde na história da Igreja. Sempre mais, seus ensinamentos abordavam temas sociais: o colonialismo e a escravidão, as condições do trabalho e os princípios da democracia, o socialismo e o liberalismo econômico. pelos seus escrito, Leão XIII passou a ser conhecido como amigo da democracia, um campeão na defesa da classe trabalhadora e o advogado do ensino sadio. O trabalho do Papa impressionou P. Dehon. Pregar suas encíclicas, formar o clero, promover a eucaristia e ir para as missões, estas as tarefas que lhe foram confiadas pelo Papa (24).

Ele saiu da audiência papal com uma nova consciência de sua missão e com a

certeza de que algo importante estava faltando a seu projeto inicial. Os anos sucessivos foram de intensa atividade apostólica. Ele mandou padres a pregar missões pela diocese, estendeu a capelania até Val-des-Bois, onde promoveu seminários para padres e seminaristas, abriu a primeira missão exterior no Equador e passou a publicar um boletim mensal chamado “O Reino do Coração de Jesus nos indivíduos e nas sociedades”. Ele interpretou o Decreto de Louvor e sua audiência com Leão XIII como a aprovação oficial da Igreja de seus novos trabalhos apostólicos. Ele escreveu: “A aprovação de 1888 nos pôs com os pés no chão outra vez. Foi como um Pentecostes, após o que começamos nossa vida apostólica” (25).

O título desta publicação tem sua importância porque indicava a continuação do trabalho e seu desenvolvimento. Como “Reino do Coração de Jesus nos indivíduos”, mostrava que cada um é chamado a cultivar um relacionamento pessoal com Cristo, abrindo-lhe seu coração e deixando-se tocar por seu amor de modo a ter um coração semelhante ao dele. No conhecimento e na experiência do amor de Deus pelos homens, serão motivados a amá-lo por sua vez, imitando suas atitudes e ações. Como “Reino do Coração de Jesus nas sociedades”, ele queria dizer que não era mais possível ignorar o mundo e devia-se oferecer orações e sacrifícios a Cristo em compensação pela rejeição da humanidade pecadora. Ele não podia mais limitar-se a uma espiritualidade que o mantivesse na capela mas deveria levá-lo ao encontro da humanidade pecadora. O apelo enfático do Papa: “Vá ao povo”, não era apenas uma estratégia, era a própria dinâmica do evangelho. O carisma de P. Dehon adquiriu plena expressão quando ele percebeu isto e que o apostolado social o trabalho pela justiça social, poderia reparar um mundo ferido através da compaixão e do amor de Cristo.

O auge de sua atividade social abrangeu um período de quinze anos durante os quais ele abordou todos os tópicos, de A a Z, desde agricultura até Zola. Quero frisar quatro aspectos de seu pensamento, fundamentais para compreendê-lo e ter presente se quisermos dar continuidade ao seu trabalho. O primeiro e o quarto refletem seu desejo por um “Reino do Coração de Jesus nos indivíduos”, enquanto e segundo e o terceiro proclamam o “Reino do Coração de Jesus nas sociedades”.

O primeiro princípio de sua visão de sociedade justa é a afirmação da dignidade da pessoa humana acarretando direitos e deveres. Esta continua a ser a pedra fundamental da Doutrina Social da Igreja. P. Dehon difundiu esta idéia usando a linguagem tradicional da lei natural e da bíblica, acrescentando o amor de Deus. Esta é a mensagem essencial da devoção ao Sagrado Coração: “Eis o Coração que tanto amou aos homens”. Cada ser humano, qualquer que seja sua condição, seus talentos, sua classe social, é sujeito de um amor especial e está destinado à união com Deus pelo amor. Este é o fundamento da dignidade humana que transcende a qualquer sistema econômico e político.

Os direitos humanos não se fundamentam apenas em princípios religiosos. A riqueza das nações vem da produtividade de seu povo. Assim sendo, todos os trabalhadores merecem partilhar da prosperidade sob a forma de casa, roupa e tudo o mais que for necessário para uma vida digna (26). A produção da riqueza é um objetivo legítimo, acompanhado por um programa de distribuição da mesma, o que não importa em uma classe única ou igualdade absoluta na riqueza. (27). A igualdade requer que uma boa parcela dos bens de que a sociedade dispõe como resultado de seu trabalho retorne para a classe trabalhadora que os produziu para a nação como um todo (28).

O trabalho não é mera mercadoria, sujeita às leis impessoais da economia. O objetivo da vida não é aumentar a produção de bens na quantidade maior pelo menor preço possível (29).

O objetivo do trabalho é permitir ao trabalhador e à sua família uma vida decente. Para tanto ele contribui com seu suor na produção de bens que garantem o bem estar à nação. Então, ele tem direito a satisfazer suas necessidades básicas e proporcionar à sua família o conforto, além de permitir alguma economia para garantir-se contra o desemprego, a doença e a velhice (30). Segundo P. Dehon estes direitos pertencem à dignidade essencial da pessoa humana e são assegurados pelo princípio do amor universal de Deus e pela natureza inerente ao trabalho humano.

O segundo elemento de sua visão social é também evidente. O ser humano é, por natureza, social. Ele alcança seus objetivos na companhia de outros seres humanos. Por conseguinte, a sociedade será estruturada de modo a favorecer a superação das ameaças contra a dignidade humana. Em outras palavras, a sociedade é constituída em favor do homem e não o contrário. Os dois grandes sistemas a porem em cheque a dignidade do ser humano no século dezenove foram o capitalismo e o socialismo. P. Dehon considerava o socialismo um falso remédio, um engano, enquanto o capitalismo era um pecado (31). O socialismo, que corretamente condena a distribuição injusta da riqueza, comete o erro de suprimir substituir as instâncias socais pelo Estado (32). O pecado do capitalismo liberal é o de fixar como meta única da política econômica o crescimento da riqueza (33) e de submeter toda a classe trabalhadora ao mecanismo das leis de mercado (34). Ele considerava ambos sistemas totalitários porque nenhum deles levava em consideração qualquer princípio senão os próprios e se proclamava a solução de todos os problemas.

Para ajustar o equilíbrio na sociedade, P. Dehon invocava a criação de organismos intermediários entre os indivíduos e o Estado, entre os trabalhadores e os empregadores. Tais organismos compreenderiam sindicatos, associações profissionais, federações, sociedade de crédito, fazendas coletivas, cooperativas e qualquer outro tipo de associação que pudesse unir o povo na defesa de seus interesses. Ele incentivava esse tipo de organismos como um meio de defender-se contra todo tipo de opressão e como instrumento de proporcionar alguma assistência às necessidades básicas. Ele percebia a competição ávida que provocava a morte de pequenas empresas (35). Estes tipos de associação poderia ser a defesa dos pequenos contra o poder dos grandes.

A preocupação com as associações manifesta-se também no título da revista “O Reino do Sagrado Coração de Jesus nos indivíduos e nas sociedades”. Podia-se esperar o termo no singular: sociedade. O uso do plural, sociedades, indica que P. Dehon não esperava que a sociedade como um todo fosse voltar à fé cristã numa forma de cristandade medieval. Ele admitia que a sociedade persistisse com seu caráter secular e pluralista. A Igreja, porém, num mundo assim, não deve bater em retirada ao mundo privado dos indivíduos e da famílias. Através destas organizações intermediárias a Igreja pode ter uma voz e uma força para apontar direções à sociedade (36). “O Reino do Coração de Jesus nas sociedades” não dependeria do poder político que a Igreja impõe do alto, mas seria consequência da força popular e constituiria um programa de renovação moral da sociedade (37). A sociedade poderia ser influenciada pelas “sociedades”.

O terceiro aspecto de seu programa social é uma consequência do segundo. Embora longe de ser socialista, ele defendia a intervenção do Estado para proteger os direitos dos trabalhadores e assegurar o bem-estar dos pobres. Citando Leão XIII, ele disse que as classes ricas usam seus bens para se protegerem e não necessitam do amparo do Estado.

As classes pobres, sem recursos para se protegerem das injustiças necessitam da proteção do Estado que deveria assumir claramente a causa dos trabalhadores que geralmente pertencem às classes pobres (38). Entre os benefícios que o Estado deveria assegurar, ele cita: descanso dominical, salário mínimo, aposentadoria e seguridade social, mudanças nas leis trabalhistas para crianças e mulheres, legitimação dos sindicatos, contrato de trabalho, segurança e saúde no trabalho, acordos internacionais contra a importação de bens fabricados em situação de exploração dos trabalhadores (39) - em resumo, os benefícios que os trabalhadores foram acumulando nos últimos cem anos e que ainda faltam em algumas indústrias e em muitos países. Os indivíduos e as associações deveriam usar os meios à sua disposição, como as eleições, a imprensa e a publicidade para cobrar do estado o cumprimento de sua obrigações perante os cidadãos (40).

A quarta e última característica do projeto social de P. Dehon diz respeito a um aspecto sobre o qual ele próprio mudou de opinião. Quando ele começou a se interessar pelas questões sociais ele pensou, como tantos outros, em fazer algo pelas classes menos favorecidas. Era o que se chamava, na França, de noblesse oblige, um sentimento paternalista das classes mais altas em relação aos pobres. Com o tempo, à medida que ele ia se convencendo da validade dos princípios da democracia, percebeu também que não bastava fazer algo pelos trabalhadores, tinha que fazer com eles (41). Ele assumiu o bordão ir ao povo como um método de envolver todos na criação de mecanismos e organizações que poderiam estabelecer o Reino do Coração de Jesus em seus corações segundo a caridade evangélica (42). Tomando consciência do amor de Cristo por eles e de sua própria dignidade, eles haveriam de ganhar força para agir e criar uma ordem social justa. À medida que animava os padres a se engajarem na questão social, reconhecia também que os leigos tinham seu papel a desempenhar, algo indispensável na construção do Reino de Cristo na sociedade (43).

Conclusão

É comum, hoje, falar de dois sentimentos no trabalho social: a ajuda imediata a quem precisa e o trabalho para mudar a situação. Revendo a vida de P. Dehon, vê-se que o trabalho dele em São Quintino estava voltado ao serviço direto, enquanto que seu trabalho posterior era mais o de um organizador, escritor e editor das questões sociais. Entrementes, ele aprofundou seu relacionamento com Cristo. Ela freqüentou a escola do amor na qual aprendeu as atitudes do coração que flameja de amor pelo povo, e, neste processo, seu coração inflamou-se igualmente de modo a ter de levar este amor ao mundo. Desta forma, no fim, ele equilibrou os dois lados da pastoral social trazendo “o mundo para o coração e o coração para o mundo”.

Questões para refletir

No “Mundo do coração no coração do mundo”:

1. A descrição do mundo moderno como “sociedade que recompensa os valores conquistados pela cabeça e pelas mãos” é ainda válida hoje? De exemplos, se você concorda.

2. Inicialmente a devoção ao Sagrado Coração virou as costas ao mundo moderno para ir em busca de um “céu seguro”, distante da crueldade do mundo real. Esta é uma fraqueza da religião ou parte integrante dela?

3. P. Dehon pensava que os cristãos deveriam influir na sociedade para que esta aceitasse sua visão de pessoa humana. Isto é uma violação da separação entre Estado e Igreja? Como justificar este tipo de atitude?

4. P. Dehon recomendou a criação de associações para introduzir na sociedade os valores cristãos. Existem tais associações em sua área? Você tem parte em alguma delas?

5. Pode-se dizer que P. Dehon passou de um trabalho pelo povo a um trabalho com o povo. Isto acontece também em sua área? Como poderia ser?

Notas

1. Denzinger-Schönmetzer, Enchiridion Symbolorum, n. 2980.

2. Gaudium et Spes, n. 1.

3. Cf., Yves Ledure, “Father Dehon in Rome at Saint Quentin,” Dehoniana 64 (1986): 61.

4. Leo Dehon, Notes sur L’Histoire de ma Vie. Rome: Centro Generale Studi, 1983, IX, 89. [Hereafter, NHV]

5. NHV, IX, 94.

6. NHV, IX, 90-92.

7. NHV, IX, 96.

8. NHV, IX, 128.

9. NHV, IX, 134.

10. NHV, IX, 81.

11. NHV, XII, 116.

12. NHV, XII, 163-164.

13. Cahiers Falleur. Studia Dehoniana v. 10. (ed., G. Manzoni). Roma: Centro Generale Studi, I, 74.

14. Constitutions (1885), Studia Dehoniana, v. 2. Roma: Centro Generale Studi, n. 21. [Hereafter, Cst. (1885)]

15. Peter Berger, A Far Glory. New York: Doubleday. Anchor Books, 1992, p. 26.

16. Franz Jozef van Beeck, Christ Proclaimed. New York: Paulist Press, 1979, pp. 523-547.

17. Van Beeck, p. 544.

18. Leo Dehon, Oeuvres Spirituelles v. IV. Andria: Edizione Cedas, p. 319, 325. [Hereafter, OSp]

19. OSp, III, 54.

20. Annice Callahan, “Heart of Christ,” The New Dictionary of Catholic Spirituality, (ed., Michael Downey). Collegeville: The Liturgical Press, 1993, p. 470.

21. Cst. (1885), n. 7.

22. Cst. (1885), n. 5.

23. NHV, XV, 82.

24. NHV, XV, 83.

25. “Notes sur le fondements divines de l’oeuvre,” Dehon Archives, Roma: B 36/4.

26. Leo Dehon, Social Works, v. II. (English), p. 373. [Hereafter, SW]

27. SW, II, 442. (English)

28. SW, II, 423. (English)

29. SW, II, 63. (English)

30. SW, II, 431. (English)

31. Albert Bourgeois, Le Père Dehon et “Le Règne du Coeur de Jésus” Studia Dehoniana, v. 25/2. Roma: Centro Studi , 1990, p. 127. [Hereafter, Règne 25/1 or 25/2]

32. Leo Dehon, Oeuvres Sociales, v. III. Andria: Edizioni Dehoniane, 1976, p. 33. [Hereafter, OS]

33. Règne 25/2, 116.

34. OS, III, 199-200.

35. SW, II, 425. (English)

36. Règne, 25/2, 285.

37. Règne, 25/1, 186.

38. SW, II, 373. (English)

39. SW, II, 111-126. (English)

40. SW, II, 423. (English); Règne, 25/1, 187.

41. Règne, 25/2, 283.

42. Règne, 25/1, 184.

43. SW, II, 150. (English)