TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE

A INTERCESSÃO BÍBLICA

(A Solidariedade Reparadora)

Giovanni Mengoli (IS)

A palavra “intercessão” deriva do latim intercedere, uma palavra composta de cedere (passar, ir) e inter (através): o seu significado seria: interpor-se, intervir em favor de alguém.

No texto grego da Bíblia temos entunkanein, que a Vulgata traduz por interpelar. O significado é de querer encontrar alguém para solicitar uma graça, pedir com insistência, mesmo que se torne importuno... Faz-nos recordar a parábola evangélica do amigo indesejável que insiste a todo custo, a fim de que o dono da casa lhe abra a porta e lhe ofereça alguma coisa para poder acolher bem um amigo que chegou tarde da noite.

Partindo do texto da Escritura, examinaremos aqui dois exemplos clássicos de oração de intercessão que têm como protagonistas Abraão e Moisés, para chegarmos, depois, à intercessão por excelência: Jesus Cristo. E concluiremos com algumas referências à nossa Regra de Vida.

1. A intercessão de Abraão pelos pecadores (Gn. 18,16-33)

Com esta sua oração Abraão obedece à palavra de Deus que fez dele mediador de bênçãos para todos os homens. A perícope faz parte de um trecho unitário que vai de 18,1 a 19,28. Deve ser lida, portanto, dentro deste contexto mais amplo. A temática de fundo é típica da revelação bíblica: o Senhor vem visitar os homens na qualidade de juiz e salvador. A Encarnação será o momento central e culminante dessa série de visitas.

O trecho se subdivide em três partes:

18,1-15: visita do Senhor a Abraão;

18,16-33: diálogo de Abraão com o Senhor e intercessão;

19,1-28: visita do Senhor às cidades pecadoras.

No trecho, lembram os biblistas, o redator (J) não faz apenas uma narração de uma tradição passada mas uma teologia. Esforça-se por elaborar um novo conceito de Deus: da compreensão do Deus de Ur dos Caldeus, àquela do Deus da salvação. O texto, mais do que de intercessão, poder-se-ia definir como oração de penetração teológica no mistério da existência humana, assim como Deus a julga.

O acontecimento de Sodoma é claramente emblemático. Estamos diante de uma situação cósmica na qual atuam três personagens: Deus, aquele que Deus mesmo elegeu para o seu povo e o mundo com o seu pecado.

Deus julgará o mundo. Que função terá Abraão, o amigo de Deus, neste julgamento?

O Senhor, que já anteriormente tinha dito a Abraão: “Em ti serão abençoadas todas as nações da terra” (Gen. 12,3), renova agora a sua promessa, e fá-lo-á ainda uma terceira vez depois da prova decisiva do sacrifício de Isaac (Gen. 18,18; 22,18). Mas é a segunda proclamação, enquadrada entre as outras duas, a que domina.

Abraão toma consciência de que o novo tempo no relacionamento entre Deus e os homens, do qual é chamado a ser precursor, não é apenas para ensinar o caminho para Deus, mas também de recuperar o pecador.

É justamente agora que o serviço de Abraão à comunidade atinge o seu ponto alto e que a sua intercessão inicia aquela corrente de bênçãos que se difundirá no mundo.

Tendo-se distanciado dos anjos para se dirigir a Sodoma, Abraão se encontra sozinho diante de JHWH. Com fineza, o javista nos introduz até o coração de Deus: “Ocultarei a Abraão o que vou fazer, já que Abraão se tornará uma nação grande e poderosa e por ele serão benditas todas as nações da terra?” (Gen. 18,17-18).

Assiste-se aqui ao debate interior no coração de Deus: no momento em que escolheu para si um amigo, como é Abraão, para inverter a tendência da história humana, poderia tomar uma decisão assim tão importante, como a destruição de Sodoma e Gomorra, sem falar sobre isto com ele?

Inicialmente Abraão apresenta uma exigência de equidade, pela qual não é admissível que justos sejam envolvidos na mesma punição dos malvados.

Trata-se de um problema jurídico no sentido de que, segundo um princípio da Antiga mentalidade oriental, toda a comunidade é solidária no pecado dos seus membros e portanto todos trazem as suas conseqüências.

Abraão, por sua vez, apela para um conceito de justiça que tem um significado de grande superação em relação a tal concepção. Se há justos, estes devem ser salvos porque a justiça exige que a cada homem seja reconhecida a própria responsabilidade.

Contudo, a pergunta vai mais além. Munido com o forte pressuposto da solidariedade, o patriarca pede que esta seja aplicada por JHWH em sentido contrário, mudando a solidariedade em ação vicária!

Instaura-se, desta forma, um novo conceito de justiça: não aquele segundo o qual se deve dar a cada um o seu, colocando de um lado, os pecadores, e os justos, de outro, mas aquele de uma justiça que procura salvar a todos e por isto se serve dos justos.

Abraão encontra a coragem e a luz para exprimir uma tal proposta a Deus, partindo de uma profunda reflexão sobre a palavra de Deus, de uma fé e um amor que são disponibilidade total, de uma viva solicitude pelo próximo. A sua oração não é aventura pois fundamenta-se na revelação; distingue-se pela insistência, humildade e pela confiança.

Certamente JHWH esperava por esta súplica do patriarca! A justiça que Abraão pede, pertence intimamente ao coração de Deus: salvar os homens perdoando-lhes, e dar mais uma vez a vida. JHWH não desejava poder castigar mas poder perdoar! O termo hebraico que indica este comportamento rahámîm (misericórdia) se refere às vísceras maternas que indicam o seu fundamento: o criador não quer destruir, mas dar e dar de novo a vida.

Inicialmente, Abraão se baseia sobre cinqüenta justos, dez para cada uma das cinco cidades perversas; depois, reconfirmado, procede pelo contrário aumentando os pedidos, encontrando coragem para prosseguir na linha da resposta divina, que todas as vezes ressoa logo e afirmativa.

A negociação continua até o número de dez justos. Deus se deixa convencer na aceitação desta, mais do que pela sua grande misericórdia, pela profunda fé de Abraão.

Mas por que Abraão, que tinha descoberto um novo vulto de Deus, pára em dez justos?

Prescindindo da resposta a esta pergunta, fica um problema essencial: será que na verdade existem verdadeiros justos na terra? O aprofundamento da reflexão bíblica proclamará a universalidade do pecado... A continuação da narração mostra que também em Sodoma todos são pecadores, exceto Lot que é salvo mas é considerado traidor pelos concidadãos.

A vontade salvífica de Deus é porém confirmada. Não podendo, de fato, Lot, fugir com a necessária desenvoltura, é-lhe concedido refugiar-se na menor das cinco cidades a ser destruída, que é por isto poupada.

A intercessão de Abraão portanto, foi em parte, ouvida. Isto vale como sinal e dá fundamento a uma esperança que se realizará em Cristo. Da parte de JHWH existe a plena disponibilidade para o perdão e um grande desígnio de salvação para atuá-lo; da parte Abraão faltam ainda os necessários pressupostos.

Temos aqui a base para a teologia que imergirá em toda a sua potência na imagem do servo sofredor do profeta Isaías (c. 53): por causa de apenas um justo Deus salvará o seu povo. Aí vemos, contudo, a incapacidade do homem em colaborar, de modo eficaz e decisivo com a misericórdia do Senhor. O verdadeiro autor da salvação, o verdadeiro justo capaz de, sozinho, salvar a todos os pecadores, conduzindo-os à conversão e à plenitude de vida, será Jesus Cristo, Deus e homem ao mesmo tempo. Abraão com a sua intercessão prepara a estrada. Não é por acaso que é pai de uma longa descendência da qual florescerá o Salvador.

Abraão se apresenta, portanto, como o amigo de Deus, muito ousado, porque quer conhecer plenamente o mistério de Deus. Poderíamos dizer que esta impertinência lhe é perdoada porque muito amou. Quer amar a Deus imensamente, quer entendê-lo e justificá-lo aos seus próprios olhos e aos do mundo; por isto lhe faz as perguntas mais audazes.

Nele, a oração é luta. Luta entre o sentido do respeito devido a Deus e a urgência do problema que a fé lhe coloca: conhecer melhor a justiça de JHWH para com o homem. De modo similar é a pergunta do profeta Jeremias: “Tu és justo demais, Senhor, para que eu entre em processo contigo. Contudo, falarei contigo sobre questões de direito” (Jer 12,1).

Abraão luta por uma nova consciência de Deus. Procura entender quem é o Deus da salvação, o Deus verdadeiro. Não aquele o qual se imaginaria humanamente falando, mas aquele para o qual a justiça não ignora o perdão, aos olhos do qual um exíguo número de inocentes conta mais do que uma maioria de culpados.

Em síntese poderíamos dizer que a oração de Abraão exprime a tensão fundamental entre as duas “medidas” da lei de Deus: a justiça e a misericórdia. Humanamente falando, estas parecem contraditórias entre si. Só dentro de um relacionamento pessoal com Deus justo e misericordioso, no qual estas exigências não estão em contraste, poder-se-á encontrar uma centelha de luz.

2. A intercessão de Moisés pelo povo (Ex. 32-34)

O contexto é aquele do pecado cometido pelo povo com a adoração do bezerro de ouro, enquanto Moisés rezava sobre o monte.

É um pecado caracterizado por duas expressões. A primeira é “perversão e idolatria” (Ex. 32,7), e a segunda: “dura cerviz” (ib. 9). A construção do bezerro de ouro, considerado pelo povo apenas como o pedestal sobre o qual Deus se devia apoiar, é um ato de falta de confiança, de negação da presença de Deus, e portanto de perversão e idolatria. A dura cerviz ou o coração são, por outro lado, a afirmação de si, do próprio modo de pensar, que não se coloca na escuta de Deus e não reconhece a necessidade de ser salvos por Ele.

A conseqüência do pecado é a anulação da aliança, simbolizada pela quebra das tábuas da lei.

A narração termina, porém, com uma nova subida de Moisés ao monte, e com a preparação de duas novas tábuas para a solene renovação da aliança por parte do Senhor com o seu povo.

Dentro deste contexto de traição, castigo e perdão, se situa o diálogo mantido entre Moisés e JHWH, que constitui um dos momentos mais altos da oração de todo o A.T.

A passagem que se dá da justiça à misericórdia, do castigo ao perdão de Israel, é devido à obra de intercessão de Moisés em favor do povo pecador.

Na oração solidária de Moisés, e na adoração do bezerro de ouro da parte de Israel, temos dois modos antitéticos de conceber a oração e o relacionamento com Deus, que entram em conflito.

De uma parte o povo que, num momento de distanciamento de Deus, não reconhece mais a necessidade de salvação, que pode vir apenas de um Outro, e vive um culto vazio para com um ídolo que não tem vida!

De outra, Moisés que fica só e separado. A sua oração é um colóquio com Deus no segredo, é culto interior, sem imagens, mas em espírito e verdade. Ele é o protótipo do homem de oração, que encontra Deus face a face, “como um homem fala com um outro” (Ex. 33,11).

A narração bíblica registra umas cinco intervenções em favor de Israel. Tal freqüência sublinha, por um lado, a insistência de Moisés, e por outro, exprime uma dinâmica de desenvolvimento, na qual não apenas Moisés, mas JHWH, também, é levado a renunciar aos próprios desejos e “abandonar os próprios propósitos” (Ex. 32,14)... O verbo hebraico traduzido com esta expressão, nhm, na realidade, manifesta uma mudança ainda mais radical e profunda; poder-se-ia utilizar também como “se arrependeu”, “se desagradou”. Exprime uma mudança física do sujeito, e uma mudança de sentimento em relação a uma ação ou a uma atitude precedente.

Contudo, no prosseguimento, a atitude de Deus, por causa da sobreposição de diversas narrações, acaba sendo desconcertante.

Em Ex. 32,33-34 Ele responde a Moisés: “Riscarei do meu livro todo aquele que pecou contra mim.Vai, pois, agora e conduz o meu povo para onde eu te disse. Eis que o meu anjo irá adiante de ti. Mas no dia da minha visita punirei o pecado dele.

A misericórdia não exclui uma tomada de posição deste gênero. A intervenção punitiva de Deus é a manifestação extrema de Deus no mal e no pecado no seu povo.

Em Ex. 32,25-29 o fim dos culpados é também, a conseqüência de uma escola à qual Moisés submete os Israelitas: “Quem está com o Senhor, venha até mim”. É a decisão de não estar com o Senhor que conduz à morte. Na aparente contradição da seqüência textual, este trecho indica que o perdão de Deus não significa passar uma esponja no mal mas chama o homem para que tome uma decisão, faça uma escolha que encontramos geralmente nos profetas.

Certamente a misericórdia e o perdão de JHWH não estão condicionados por uma escolha do homem; contudo o homem, na sua liberdade, pode também rejeitar a misericórdia de Deus não se reconhecendo pecador.

Também para Moisés, como para Abraão, a intercessão se configura em uma luta com Deus. Através desse gênero literário, é representada a luta contra as tentações espirituais vividas por Moisés, tanto maior é a responsabilidade. Ele, de fato, se encontra no meio: entre um povo de dura cerviz, ao qual deve recordar continuamente as exigências da justiça divina, e um Deus ao qual não cessa de relembrar as promessas, ricas de misericórdia, feitas a Abraão, Isaac e Jacó.

“...mesmo que este povo seja de cerviz dura. Perdoa as nossas faltas e os nossos pecados, e toma-nos por tua herança” (Ex. 34,9). É notória a brusca passagem gramatical aqui nesta frase pronunciada por Moisés. Não diz: “É um povo da cabeça dura, mas tu perdoas a suaculpa.” “é um povo de cabeça dura mas tu perdoas a nossa culpa”. Moisés se coloca no meio, aceita ser solidário com o pecado do povo, pecado que ele não cometeu.

Na subida solitária da montanha, Moisés torna-se o amigo de Deus, mas na descida, em direção ao povo, demonstra também ser o amigo dos seus irmãos, aceitando colocar-se do lado deles, com a força de Deus, mesmo contra Deus.

Esta delicada posição, além de ser humanamente desgastante, é também marcada por profundas tentações. A misericórdia de Deus não pode transformar-se em indulgência ou em comprometimento no que diz respeito ao pecado; por outro lado, a justiça de Deus não pode anular a sua fidelidade, a sua misericórdia. Aqui também se reencontra a dialética entre as duas "medidas" da lei de Deus.

Para Moisés a tentação de rejeitar o povo pecador é grande, considerando-se imune do pecado. Tanto mais que Deus mesmo o coloca à prova: Tenho visto a esse povo: é um povo de cerviz dura. Agora pois, deixa-me, para que se acenda contra eles a minha ira e eu os consuma; e farei de ti uma grande nação “(Ex. 32,9).

Este pedido, da parte de Deus, aparece contraditória. Moisés é consciente de que a sua missão na história da salvação é diferente daquela de Abraão; os “pais” em Israel já foram! Que sentido teria voltar atrás para recomeçar como se nada tivesse acontecido?

É a fidelidade de Deus a sua mesma obra o argumento invocado naquele que era o momento da prova. “Abranda o furor da tua ira e renuncia ao castigo que pretendias impor ao teu povo. Lembra-te dos teus servos Abraão, Isaac e Israel, aos quais juraste por ti mesmo dizendo: multiplicarei a vossa descendência como as estrelas do céu e toda a terra que vos prometi, dá-la-ei a vossos filhos para que a possuam para sempre” (Ex 32,12s). A consciência dos próprios limites e da própria subordinação a uma obra que não é sua, são o ponto de apoio mais seguro para a oração de Moisés.

Mas sobretudo ele não pode aceitar uma salvação individual. Pretende partilhar a sorte do seu povo. Prefere ser riscado do livro no qual Deus escreve a história da salvação a fim de que Israel seja salvo. É uma espécie de chantagem na qual Moisés arrisca toda a sua vida mas sabendo que combate com as regras postas por Deus, às quais Deus mesmo não pode ceder.

Na sua luta Moisés acaba sendo vencedor justamente no momento em que se torna capaz de perder todo interesse pessoal, para viver um amor oblativo, com a dignidade e a grandeza de alma de quem assumiu sempre as próprias responsabilidades. Então, a sua intercessão é de tal modo pura, de tal modo eficaz, a ponto de realizar uma renovação da aliança entre Deus e Israel.

Na verdade a oração de Moisés é uma experiência relativa da misericórdia de Deus, do Deus que, enquanto diz a Moisés: “Agora deixa que a minha ira se acenda contra eles e os destrua” (33,9), por baixo, deseja que Moisés o impeça; é como se dissesse: “Não me deixes, espero que não me deixes..., deixo nas tuas mãos a decisão!”. Um Deus que age na história segundo o mistério da encarnação, e que não poderia revelar a sua magnitude sem a obra de homens justos, como Moisés.

No decurso admirável da história da salvação, será o próprio Deus a levar a sério de tal modo a mediação inclusiva do orante a ponto de "comprometer-se" definitivamente com o homem, fazendo-se carne definitivamente, tomando sobre si o pecado, para a salvação de todos.

3. Jesus Cristo intercede por nós junto do Pai

Dirigindo-se a uma comunidade provavelmente em crise diante das provas da vida,o autor da Carta aos Hebreus parte da profissão de fé em Cristo: "Filho de Deus glorioso",entronizado à direita do Pai. Mas depois retoma logo o tema da encarnação que constituiu o Filho de Deus solidário com o homem, dentro das suas contradições históricas, para abrir a todos a nova via de encontro com Deus. Nesta perspectiva é relido o Salmo 40: . “Por isto entrando no mundo Cristo diz: Tu não quiseste nem sacrifício nem oferta, um corpo me preparaste ...Então eu disse: Eis que venho para fazer, ó Deus a tua vontade” (Hb. 10,5.7). O protagonista, sem nome no diálogo do salmo, é identificado com Jesus, o qual interpreta a sua missão sob o signo da atualização fiel da vontade do Pai. Um Pai para o qual a vontade de salvar é mais forte do que a de punir (Lc. 15), e que por causa de apenas um justo, Jesus Cristo, verdadeiro homem, mas também verdadeiro Deus, salva todas as suas criaturas.

Poder-se-ia dizer que, com o seu sacrifício, Cristo contribui para estabelecer definitivamente JHWH no trono da misericórdia. Na cruz, lugar de síntese entre justiça e misericórdia, Deus diz tudo de si: Ele é amor. Isto, Jesus o sabia muito bem! Sabia que não havia necessidade de nenhuma intercessão prévia a fim de que o pai da parábola acolhesse o filho pródigo, antes mesmo do seu explícito arrependimento, ou a fim de que o pastor fosse em busca da única ovelha perdida. Deus é amor transbordante. A oferta de seu filho na cruz mostra como a verdadeira reparação parte dele e só nele recebe plena eficácia.

Destarte, Jesus torna-se o artífice da salvação para a humanidade, aquele que está na origem e no cumprimento do caminho de fé daqueles que entram na sua via, mediador e aquele que garante a aliança nova e definitiva.

Para exprimir tudo isso com um só termo que evoque bem toda a tradição bíblica, o autor da Carta aos Hebreus afirma que Jesus foi proclamado "sumo sacerdote". Trata-se porém de um sacerdócio existencial, superação definitiva de todas as formas de culto antigas, concretizado por meio da autodoação na morte de cruz.

Como o sumo sacerdote judaico penetrava para além do véu do Santo dos Santos, da mesma forma Jesus, uma vez para sempre, entrou no novo templo para além do véu do Santo dos Santos.

Este véu era a sua carne, observa o autor da Carta (Hb. 10,20), ele o atravessou morrendo e ressuscitando. O seu corpo, ressuscitado dos mortos, tornou-se o caminho "novo e vivente", graças ao qual, agora cada um tem acesso ao santuário

Também a tenda da aliança e o santuário são agora diferentes daquilo que fora a sua prefiguração na liturgia do antigo Testamento. São, na verdade, "maiores e mais perfeitos e não feitos por mão de homem." O santuário é o céu mesmo onde, à direita do trono do Pai, o nosso sumo sacerdote se senta para ser intercessor para eternidade (Hb. 9,11.24).

Ele, porque permanece para sempre, possui um sacerdócio imutável, por isso pode salvar perfeitamente aqueles que por meio dele se aproximam de Deus, pois ele está sempre vivo para interceder a favor deles.” (Hb. 7,24).

É no novo santuário do céu que Jesus reza, agora, naquele, agora sem limites, da eternidade que o nosso tempo criado não pode fixar nem alcançar, a não ser pela oração. Tal ele é e permanece "ontem, hoje e sempre" (Hb. 13,8).

No alto, em Jesus ressuscitado, encontra-se também a fonte da nossa oração daqui de baixo. Graças à oração, estamos juntos dele; Ele é aquele que apresenta ao Pai, valorizando-a com o seu mérito, sustentando-nos na nossa fraqueza, e intercedendo pelos nossos pecados.

Tudo isso estava bem presente em S. Paulo quando escrevia: “Todas as promessas de Deus nele tornaram-se "sim". Por isso através dele sobe a Deus o nosso "amém" pela sua glória” (2 Cor. 1,20). A oração de S. Paulo, na verdade, é dirigida a Deus através de Cristo: “Rendo graças ao meu Deus, mediante Jesus Cristo, por todos vós...” (Rm. 1,8).

Também S. João faz da intercessão de Cristo glorificado o coração da oração cristã. É essencial que os crentes permaneçam unidos a ele como os ramos à videira. Deste modo podem pedir tudo o que querem e todo pedido será atendido. Esta união orgânica supõe a união de vontade e de tensão com Cristo, como fundamento da oração.

A nossa oração deve inserir-se na oração pessoal de Cristo. É no seu seguimento que podemos iniciá-la, é com a sua boca que elevamos a súplica, é pelo seu sangue que nos encorajamos, é pela sua justiça que esperamos ser atendidos.

No evangelho de João, no longo discurso aos discípulos, Jesus recorre mais uma vez à expressão: “Se me pedirdes algo em meu nome, eu o farei” (Jo. 14,14). E visto que para a cultura hebraica, o nome é o equivalente da pessoa, pedir no nome de Cristo significa rezar em Cristo, conformando a nossa oração à sua, pedindo o que ele pede.

A nossa intercessão portanto será sempre mais pura, quanto mais o nosso coração e a nossa mente se deixarem transformar pelo coração e pela mente de Deus.

Uma tal oração que se insere na oração incessante de Cristo será certamente ouvida, porque nele Deus cumpriu todas as promessas. “É esta a confiança que temos nele: se pedirmos algo segundo a sua vontade, ele nos atende” (1 Jo. 5,14).

Esta certeza da oração cristã é superior àquela do A.T. No AT os pecados do povo podiam romper a aliança, e Deus, conseqüentemente, podia se distanciar e não escutar mais a oração. Os cristãos, ao invés, não têm mais que temer este tipo de ruptura; a nova aliança, selada no sangue de Cristo, é uma aliança eterna. Tal certeza se fundamenta na fidelidade de Deus que não pode faltar às suas próprias promessas (1 Cor. 1,9).

4. Elementos da Espiritualidade Dehoniana

Uma referência a algumas passagens evangélicas "dehonianas" e às Constituições pode nos ajudar a enquadrar os destaques que gostaria de fazer sobre a oração de intercessão, vivida segundo esse carisma.

Os sacerdotes do S. Coração sublinham o amor incondicionado de Deus para com cada homem, amor que se tornou visível definitivamente em Jesus Cristo: “Mas, quando a bondade e o amor de Deus, nosso salvador, se manifestaram, ele salvou-nos, não por causa dos atos justos que houvéssemos praticado, mas porque, por sua misericórdia, fomos lavados pelo poder regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele ricamente derramou sobre nós, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador” (Tt. 3,4s).

Para Pe. Dehon este, como outros textos neotestamentários que refletem o mistério da encarnação, é lugar privilegiado no qual podemos nos encontrar com prazer. Jesus, que por dentro assume a nossa realidade humana transformando-a, gera em nós uma profunda solidariedade com todos os homens e especialmente os mais distantes.

Pela centralidade do mistério da encarnação, o dehoniano, na sua oração, vive uma grande responsabilidade para com o mundo, para com cada homem. Sente-se envolvido, com toda a sua vida, nas contradições da humanidade. Com emoção e maravilha ressoam nele as palavras de abertura da Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, dos pobres sobretudo e de todos aqueles que sofrem, são também elas as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e não há nada de genuinamente humano que não encontre eco no coração deles”.

Como Moisés não aceitou separar a própria sorte daquela do seu povo, assim os filhos espirituais de Pe. Dehon não poderão nunca se encontrar de acordo com certos maniqueísmos e fundamentalismos difundidos neste século.

São chamados, pelo contrário, a colocar-se no meio, suportando as tensões e as dilacerações que esta situação comporta, até mesmo, a fazer síntese entre o desejo de justiça e as exigências da misericórdia, entre a necessidade de verdade e o primado da caridade; e isto, a partir da contemplação do lado aberto, ápice e síntese entre a divina justiça e a misericórdia, entre a verdade e a caridade.

Nas Constituições SCJ encontramos escrito: “Envolvidos no pecado, mas participantes da graça redentora, queremos unir-nos a Cristo presente na vida do mundo, pelo empenho de nossas tarefas, e, solidários com ele, junto com toda a humanidade e a criação, oferecer-nos ao Pai, como oblação viva, santa e agradável” (Cst. 22).

Deste modo, o dehoniano explicita a própria vocação sacerdotal de mediador. A partir da Eucaristia, celebrada e adorada, vive a sua missão seguindo o exemplo de Cristo que não busca a sua vontade mas a vontade do Pai, e encontra a sua máxima alegria no doar-se aos outros..

Na adoração eucarística quotidiana quer aprofundar a própria “união ao sacrifício de Cristo pela reconciliação dos homens com Deus” (Cst. 83), porque se sente “partícipe da sua ação de graças e da sua intercessão” (Cst. 84). Com o coração aberto às esperanças e rico de fantasia do amor de Deus, introduz um quem sabe..?”ou um talvez...?” (cf. Gn. 1,6; 3,9; Jer. 21,1; 26,3; 36,3-7) na irrevogabilidade das sentenças e das condenações, certo de que o futuro permanece aberto à graça e às surpresas inauditas do amor de Deus, rico de misericórdia, capaz de escrever certo em linhas tortas. Trata-se de uma espécie de desafio que chega perto da temeridade, sabendo porém poder contar com o desejo secreto de Deus, o qual aguarda dele uma tal oração.

Com a oração de intercessão não estamos refrescando a memória de Deus, ou solicitando-lhe num certo sentido, mas é ele que nos recorda as nossas responsabilidades para com a humanidade inteira, e nos solicita uma intervenção, com maior pontualidade e coragem, na mesma direção para com a qual inclina irresistivelmente o seu coração.

Ser responsáveis pelo mundo, para os dehonianos, significa assumir para si um compromisso de transformá-lo com o amor, mais forte que todas as infâmias. É assim que nas Constituições é compreendida a reparação: “como acolhimento do Espírito, como uma resposta ao amor de Cristo por nós, uma comunhão com o seu amor pelo Pai e uma cooperação com a sua obra de redenção dentro do mundo” (Cst. 23).

Na espiritualidade dehoniana se fala de “contemplação na ação”. Tem-se a convicção, de fato, de que a própria obra pelo reino de Deus é sempre e somente uma pequena gota no imenso mar de necessidade permanente do mundo. Sentimo-nos os servos inúteis da parábola evangélica (Lc.17,7-10), que fizeram tudo quanto lhes fora pedido, mas que são conscientes de que há ainda muito a ser feito, e de que se poderá realizar apenas com a intervenção de Deus.

Por isso, a oração de intercessão, vivida na adoração eucarística, assume a dimensão de um amor universal que pode alcançar quem quer que seja, e se dilata na medida das necessidades do mundo.

Nela se confiam ao Pai as próprias fatigas pelo advento do reino e aquelas de cada homem, certos de que, se não é ele que constrói a casa, vã é a nossa obra (cf. Sal. 127,1); tendo bem presente que importantes não são os nossos interesses pessoais mas o bem e o futuro do mundo inteiro. Significativo, a propósito, é o slogan: “Agir no local olhando o mundo inteiro”.

Concluindo, faz-se mister sublinhar que, na intercessão pelo mundo, o dehoniano não é apenas o "cirineu da cruz”, como por muito tempo uma certa doutrina ascética havia insistido, mas é também e antes de tudo, "cirineu da alegria". Isto nos recorda também o Concílio Vaticano II no início da Gaudium et Spes.

As alegrias genuinamente humanas que fazem bater o coração do homem, mesmo que limitadas e talvez banais, não são esnobadas por Deus nem fazem parte de um repertório decadente que tenha pouco a ser compartilhado com as alegrias que experimentaremos na Casa do Pai.

Por isto, na oração, é todo o homem, com as suas alegrias e as suas dores, que se oferece ao Pai, em Jesus Cristo, no Espírito, a fim de que possa ser recriado na medida do amor trinitário.