TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE

A REPARAÇÃO COMO CAMINHO DE FELICIDADE

Placido Rabello (IND)

Preâmbulo

Minha familiaridade com a espiritualidade do Sagrado Coração remonta à minha infância. Tenho que admitir que as noções que eu tinha então mudaram completamente. Não há mais lugar para o Jesus triste, clamando por boas ações, como era ensinado em meu círculo familiar. Ele cedeu lugar ao Deus amor que nos ama incondicionalmente através de seu Filho Jesus e através de meus irmãos e minhas irmãs.

Em minhas visitas a amigos e parentes descobri que a palavra reparação pode desanimar pois sugere auto-negação e insiste na consolação. Tendo convivido com estas noções estranhas de um tesouro espiritual tão inexaurível, resolvi fazer de meu noviciado um projeto de reflexão sobre o assunto. Este estudo é uma tentativa de abordar a dimensão existencial desta espiritualidade. Minhas experiências, convicções e reflexões são superficiais. Como noviço, fico limitado num assunto tão vasto. Pretendo, futuramente, aprofundar o assunto.

Meus agradecimentos ao mestre de noviços, P. Sebastião Pitz, que me apoiou, concedeu-me o tempo e os livros necessários; ao P. Tom Garvey que revisou e corrigiu o texto. Às portas de um novo milênio a propagação e a prática da espiritualidade do Coração de Jesus se faz tanto mais indispensável.

A humanidade está no limiar do terceiro milênio e o destino da civilização parece mergulhar no materialismo e racionalismo. Isto lança um grande desafio: “Como crise do racionalismo o que resultou foi o niquilismo, uma filosofia do nada. Na interpretação niquilista a vida não passa de uma ocasião de sensações e experiências nas quais o efêmero se destaca. Há urgência em voltar à origem divina do ser humano e viver a existência humana no círculo do amor, da misericórdia e da alegria de Deus. O racionalismo e o progresso deveriam ter servido para atingir Deus, para explorar o mistério humano e para promover os valores do Reino de Deus. Sente a raça humana confiança em seu futuro nesta nova era? Ou percebe o advento do caos? O Sagrado Coração de Jesus, a perfeita manifestação do amor do amor divino, é o caminho. A espiritualidade da reparação vem resgatar os que estão desesperadamente à procura de respostas para a frustração do ser humano. O amor a Deus e reparação a Jesus nos deveriam urgir numa resposta. A desafiadora realidade do pecado que ameaça a raça humana de extinção pode ser remediada pela reparação. A falta de integração da reparação na vida espiritual levou a um doentio dualismo. A felicidade, que é o fim último da espiritualidade continua por ser alcançada. A espiritualidade da reparação visa à felicidade humana mais do que à de Deus. Finalmente, tendo acompanhado a morte das ideologias que pregavam uma sociedade igualitária e justa, resta-nos o caminho proposto por Jesus: perdão e amor, os quais pavimentam o caminho à felicidade. As palavras de uma oração escrita num campo nazista ilustram isto:

Paz aos homens de má vontade e o fim de toda vingança e de todas as palavras de castigo e dor!

Ó Deus, não ponhais seu sofrimento na balança da vossa justiça.

Seja ela proclamada aos carrascos, seja ela anunciada como resposta a todas as atrocidades.

Concedei a todos os carrascos, aos traidores e maus, o dom da coragem e a fortaleza demonstrado pelos demais que foram suas vítimas.

Concedei o dom do amor ardente aos aflitos e torturados que permaneceram fortes diante da morte, mesmo nos momentos mais críticos.

Tudo isto venha a ter um mérito aos vossos olhos, ó Senhor, para que seus pecados possam ser perdoados. Seja este o resgate que restaura a justiça. Tudo o que é bom seja considerado e tudo o que é mau seja varrido.

Que a paz venha sobre a terra, paz aos homens de boa vontade e venha sobre os outros também. Amém.

I. A Espiritualidade da reparação e seus conceitos errôneos

Não é de se surpreender que a espiritualidade reparadora seja uma aspecto duvidoso e crítico para muitos. Muitos não hesitarão em dizer que é uma prática em extinção. Um bom número de pessoas reconhecerá que o espírito reparador, tão presente nos últimos séculos, já não tem qualquer influência sobre o católico moderno. Por outro lado, muitos fiéis seguem ainda práticas reparadoras herdadas daqueles séculos.

Antes de prosseguir neste tema, cabe dizer que esta visão errônea de reparação deve-se a uma apresentação errônea da mesma, ao atraso teológico e ao desconhecimento da espiritualidade. “Por causa da ignorância generalizada esta devoção é vista meramente como manifestação de piedade popular. Algumas destas práticas tornaram-se rígidas e um obstáculo a uma verdadeira devoção. Em outras épocas, o modo como esta devoção foi apresentada por alguns pregadores e escritores teve efeito negativo”. Não é necessário acrescentar que esta espiritualidade, como outras, carrega as marcas de sua época. Não entro em detalhes em relação às aparições de Paray-le-Monial e à escola francesa. A ignorância de fundamentos bíblicos da espiritualidade reparadora parece minar a riqueza desta grande fonte espiritual. O aspecto eucarístico desta devoção ficou oculto por muito tempo. Atribuir a origem desta devoção às inspirações de Maria Alacoque também criou problemas. Cada época se ressente da graça de Deus. As gerações anteriores não chegaram onde chegamos mas chegaram onde puderam.

II. O amor, fundamento da Reparação

A narrativa da criação descreve Deus criando o homem por amor. As imagens usadas são eloquentes. Para criar os outros seres Deus usa ordens taxativas: “Que haja…”. Par formar o homem Deus usa suas mãos e seu sopro como a transmitir sua divindade ao ser criado. Mais tarde, o salmista confirma: “Quem é o homem para que nele penses, e o ser humano para que dele te ocupes? Quase um Deus o fizeste, tu o coroas de glória e esplendor” (Sl 8, 5). A história da salvação está repleta de provas do amor fiel de Deus. Deus chora por seu povo. Ele é um Deus com um coração sensível aos sofrimentos de seus filhos: “Eu ouvi o clamor de meu povo eu hei de libertá-lo”.

O Senhor viu a aflição de seu povo reduzido à escravidão, ouviu seu grito, tomou conhecimento de seus sofrimentos e decidiu libertá-lo. Neste ato de salvação do Senhor o profeta viu seu amor e sua compaixão. O povo tinha certeza da misericórdia de Deus e o invocava sempre que ocorria uma tragédia. “Deus misericordioso, lento na ira, repleto de amor e fidelidade”. Nesta convicção o povo sempre encontrará perdão toda vez que pecar. Deus estabelece um relacionamento que ele quer aprofundar. Neste relacionamento Deus se comporta com um amante ciumento. As declarações de amor nunca são demais.: “Eu te amei com um amor eterno e permaneço fiel no meu amor por ti! (Jr. 31, 3) “Porventura a mulher esquece a criança de peito, esquece de mostrar sua ternura ao filho da sua carne? Ainda que elas o esquecessem, eu, eu não te esquecerei!” (Is.49, 15). Estas mensagens eloquentes de amor chegam quando o povo de Israel sofre o exílio e a consequente crise de identidade. O profeta Oséias pintou Javé com imagens belíssimas. Ele é como um marido fiel, há tempo sofrendo pela infidelidade de sua mulher, chamando-a de volta. O amor divino é como o de um pai pelo filho caçula.

O ápice do amor de Deus encontra-se no Novo Testamento. “Depois de ter, por muitas vezes e de muitos modos, falado outrora aos pais, pelos profetas, Deus, no período final em que estamos, falou-nos por meio do Filho” (Heb 1, 1-2). Então ele mandou seu Filho, a Palavra eterna que ilumina a humanidade, para morar no meio de nós e falar da vida divina. Portanto, Jesus Cristo, enviado como um homem entre os homens, fala as palavras de Deus, e cumpre o desígnio salvífico do Pai. Em conseqüência, ele, a quem ver é o mesmo que ver o Pai, completou e levou à perfeição a revelação confirmando-a com a divina garantia. Ele o fez pela sua presença, por suas palavras, milagres e, sobretudo, pela Ressurreição e envio do Espírito da Verdade. Ele revelou-nos que Deus está entre nós para nos livrar da escuridão do pecado e da morte e nos conduzir para a vida eterna. Jesus é a encarnação perfeita do amor do Pai. Nele nós contemplamos a face do “Abba”, o pai que corre para abraçar o filho e beija a humanidade ferida, representada pelo filho pródigo. A encíclica Haurietis acquas começa com a profecia de Isaías: Com alegria tirareis águas das fontes da salvação” (12, 3). Nesta figura eloquente o profeta sinaliza as abundantes graças da era cristã. Jesus ama aqueles que ele considera os menos amados. Este é o paradoxo do amor. “Eu vos digo, é assim que haverá alegria no céu por um só pecador que se converta, mais do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão” (Lc 15, 7). O amor é a base de nossa criação e salvação. “Um pensamento me absorveu: pela primeira vez em minha vida eu vi a verdade como ela aparece em tantas canções, anunciada como a sabedoria última por tantos pensadores. O amor é o último e mais nobre objetivo ao qual possamos aspirar. Então eu captei o sentido do grande segredo da poesia e do pensamento humano e aprendi uma coisa: a salvação do homem está no amor. Eu compreendi que um homem, mesmo nada tendo nesta vida, pode conhecer a felicidade, por um momento que seja, na contemplação de seu amado. Na maior desolação, quando um homem não pode se expressar em atitudes positivas, quando tudo o que tem é sofrimento, um homem assim, pode realizar-se contemplando a imagem de quem ele ama. Pela primeira vez em minha vida, fui capaz de entender o significado das palavras: “os anjos perdidos na perpétua contemplação da glória infinita”. (V. Frankl.

III. A reparação de Jesus

O objetivo da reparação de Jesus foi restaurar a dignidade do ser humano perdida pela pecado. Isto se dá pela união dos homens com Deus. Quando um ser humano está em paz com Deus, consigo mesmo e com os outros ele pode experimentar a felicidade original para a qual foi criado. A felicidade e o bem estar da humanidade foram as prioridades da vida de Jesus. Isto está claro nas Escrituras: “Eu vim para que eles tenham vida e a tenham em abundância. Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por seu rebanho” (Jo 10, 10). Tudo isto pressupõe a humanidade pecadora e a misericórdia divina purificando-a. O sacrifício do Calvário foi o maior ato de reparação ou expiação. “Ninguém pode ter maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 13). A carta aos hebreus resume a redenção eterna e a natureza do sacrifício: “Mas sobreveio Cristo, sumo sacerdote dos bens vindouros. Foi através de uma tenda maior e mais perfeita, não feita por mãos - isto é, não pertencendo a esta criação - e pelo sangue, não de bodes e novilhos, mas por seu próprio sangue, que ele entrou de uma vez para sempre, no santuário e obteve uma libertação definitiva” (Heb 9, 11-12). O mistério da redenção divina, tal como é descrito no Novo Testamento, é, antes de tudo, um mistério de amor. Cristo, através de sua morte, restabeleceu a Aliança entre Deus e os homens, aliança quebrada pelo pecado. A vida e o ministério de Jesus tem por objetivo a procura e a salvação dos perdidos. “O tema do Novo Testamento é o amor do Coração de Jesus manifesto em tantos modos em sua vida terrena” (P. McGuire). Os evangelistas apresentam alguns testemunhos de salvação individual. A cura do endemoninhado geraseno, a conversão da pecadora pública, a parábola do filho pródigo, Jesus e Zaqueu, Jesus e a samaritana, Jesus é a adúltera, a parábola do bom samaritano. Toda essa gente tinha beijado a lona da vida. No caso de Zaqueu e da samaritana há um apelo à reparação: “Veja, darei a metade de meus bens aos pobres e se fraudei alguém, restituirei o quádruplo” (Lc 19, 8). Zaqueu se propõe uma reparação instintiva. Os Padres da Igreja vêem Cristo, enviado pelo Pai, para sanar as feridas da humanidade, na pessoa do samaritano. P. Dehon repete a mesma idéia: “O Sagrado Coração de Jesus é o coração do bom samaritano que se detém para socorrer quem jaz ferido ao longo do caminho” (O. Sociales, I).

IV. O amor apaixonado de Deus e a nossa resposta

“O amor consiste nisto: não fomos nós que amamos a Deus mas Deus enviou seu Filho para expiar nossos pecados” (IJo 4, 10).

O amor incondicionado de Deus facilita a resposta. É um convite a uma vida mais feliz. Os seres humanos nunca podem dizer terem alcançado a realização completa na vida sem responder ao amor de Deus. Ele nos criou para si. Ele é o Alfa e o Ômega do existir humano. Com Deus nós partilhamos a eternidade. Nosso coração não sossega enquanto não repousa em Deus. O homem moderno está elaborando a ruína da vida pela recusa em reconhecer a presença de Deus no íntimo de si mesmo. Que pena limitar o início da humanidade a um big-bang! Onde fica o desejo do absoluto? Por que a insaciável busca de felicidade neste contexto de individualimo, coletivismo, materialismo? Quo vadis?

Os seres humanos haverão de salvar a si mesmos reconhecendo a finitude da inteligência humana e a limitação da visão humana. É preciso abandonar a falsa idéia de felicidade e desfazer a ilusão de viver independentemente de Deus para conquistar a felicidade. O filho pródigo acordou para a realidade quando caiu na lama. É o que acontecerá conosco quando começarmos a descobrir quem somos. Deus tem um plano de felicidade para nós. “Pois eu tenho bem presentes os projetos que nutro a vosso respeito - oráculo do Senhor - , projetos de felicidade e não de desgraça: eu vos darei um futuro e uma esperança” (Jer. 29, 11). Os seres humanos com facilidade esquecem do amor apaixonado de Deus por eles e por isso não respondem. Esta é a causa fundamental da miséria humana e do crescente pessimismo pessoal, social e político. Esta recusa ao amor de Deus, com suas consequências, é causada pelo pecado. João Paulo II escreve: “Quando o sentido de Deus se perde, o sentido do homem fica ameaçado….quando Deus fica esquecido a criatura não se entende mais…Fechado no horizonte limitado da natureza humana, ele é algo reduzido a uma coisa, e não aferra mais o caráter transcendente de sua existência como homem” (Evangelium Vitae). Em seu livro “The Sacred Heart Yesterday…Today”, o P. M. Cremer, scj., atribui os atuais conflitos no mundo à perda do genuíno sentido da identidade: “Este conflito está presente em diferentes escalas em nossas vidas. Nas famílias, gera a separação e o divórcio; na sociedade, a intolerância racial e lutas de classes; no plano internacional, ódio entre nações e guerras”.

V. A realidade do pecado e a urgência da reparação

A realidade do pecado é maior do que a imaginamos. O pecado ilude o pecador de forma sutil. “Apesar de criado por Deus na retidão, o homem, incitado pelo maligno, abusou de sua liberdade desde o início de sua história. Por isso, ficou dividido em si mesmo. Em consequência, a vida do homem, tanto individual quanto social, passou a ser uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas”. (P. Cremer, scj). Os seres humanos contam com a graça redentora que transcende as trevas. No pecado, o pecador espera encontrar prazer e preencher o vazio. O pecador paga um preço maior do que os filhos da luz. O ser humano jamais encontrará a felicidade nas coisas para as quais não foi criado. O pecado traz distorções e causa danos psicológicos e psicossomáticos. Todos os pecados, mesmo os mais íntimos, têm repercussão social, embora não desejada pelo pecador. As estruturas de injustiça social, econômica e política que testemunhamos hoje são as mais graves expressões do pecado. Sem dúvida, as convulsões sociais são consequência das tensões sociais, econômicas e políticas. Num nível mais profundo, revelam e egoísmo e o orgulho, coisas que contaminam a atmosfera social. De acordo com o Magistério, o pecado pessoal e social não estão em contradição: um está enraizado no outro. O pecado pode anular todo o esforço espiritual: “Se estiveres diante do altar para fazer a tua oferta e te lembrares que teu irmão tem algo contra ti, deixa a tua oferta no altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão. Depois volta e faz a tua oferta” (Mt 5, 23-24).

Diante da violência, insegurança e perda da vida pelo pecado, somente a reparação individual e coletiva pode trazer a salvação. A reparação não é entendida e apreciada porque o pecado é ignorado. João Paulo II condenou a perda do senso do pecado. A sensibilidade diante do pecado abre o caminho para a reparação. O mundo está ávido de amor e a resposta é o Coração de Jesus que oferece um humanismo novo enraizado no amor. A reparação restaura o amor no coração do pecador, nas famílias e na sociedade. É importante lembrar os elementos fundamentais do apostolado da reparação:

  1. Anunciar o Evangelho da justiça e da misericórdia para os pecadores.
  2. Formar os leigos para o amor oblativo que seja, ao mesmo tempo uma espiritualidade e um amor ativo, que se torne um movimento de leigos em prol de uma civilização de vida, justiça e de paz.
  3. Anunciar o Evangelho do sofrimento e da tribulação à luz do mistério da cruz e da Ressurreição.
  4. Animar grupos de agentes da paz, justiça e honestidade para resgatar os valores do Reino.
  5. Divulgar a prática da consagração das famílias ao Coração de Jesus para formar núcleos da civilização do amor.
  6. Enfatizar a importância do sacramento da Reconciliação
  7. Animar, à luz da coragem evangélica, os movimentos de justiça e paz.
  8. Incentivar a criação de institutos consagrados ao Coração de Jesus e a formação para o apostolado da misericórdia.
  9. Reparação: um caminho para a felicidade
1. A natureza salvífica do sofrimento. A prática da espiritualidade reparadora abre as portas para a felicidade e a verdadeira paz. Uma afirmação dessas parece contrariar a convicção popular. A noção de reparação evoca imediatamente e a vítima e de oblação. Um conceito negativo de vítima confunde o assunto. Uma certa boa vontade em sofrer é um pré-requisito para a reparação. Neste sentido podemos ser vítimas por opção ou por coerção. A reparação requer um ato da vontade, na convicção de que o sofrimento beneficiará quem sofre e os outros também. Isto não deve ser confundido com masoquismo. Não se sugere que alguém busque o sofrimento para encontrar a felicidade. P. Dehon escreveu a um jovem religioso, P. Guillaume, referindo-se às vítima da Marselha: “Prefiro deixar tudo nas mãos do Senhor. Não insisto em mortificações pessoais, embora creia que sejam necessárias. Recomendo a aceitação das vicissitudes que o Senhor nos envia. Nosso Senhor não se crucificou a si mesmo. Ele deixou-se ser crucificado” (carta de 18.2.13). Esta compreensão é resultado de um processo de amadurecimento espiritual.

A dor é parte da vida. Gera vida nova. A humanidade está sempre tentando livrar-se dela. Para isto inventam-se os analgésicos. Esta batalha inconsciente contra a dor reduz a alegria da vida. Para ter prazer, foge-se da dor. O espírito de reparação faz aceitar a dor como um mecanismo de crescimento, auto-conhecimento e felicidade. A dor torna-se um meio de transcender a própria dor e eliminar seus efeitos nocivos.

Jesus era realista a este respeito. Não prometeu nada de utópico. Pelo contrário, disse; “Se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia e me siga” (Lc 9, 23). Ele também recomendou: “Amai vossos inimigos, fazei o bem a quem vos odiar, abençoai quem vos amaldiçoar, orai pelos que vos maltratam” (Lc 6, 27). O seguimento de Jesus comportará, necessariamente, algum sofrimento: “Quem quiser viver para Cristo será perseguido” (II Tim 3, 12). Jesus aconselhou a abandonar toda ilusão de uma vida fácil, sem dor. A paciência pode ser a solução do problema.

2. P. Dehon e o sofrimento. P. Dehon via na entrega total à Providência Divina o caminho para a felicidade e a paz. Este abandono ao amor salvífico permite a Deus usar nossa cooperação para a salvação de todos. A oblação diária e o ecce venio consistem em oferecer a Deus todas as experiências desagradáveis num espírito de humildade e gratidão: “Em qualquer circunstância, em todos os eventos, do presente e do futuro, o ecce venio nos coloca à disposição de Deus. Ecce venio, eis-me aqui, ó meu Deus, para fazer a vossa vontade. Eis-me aqui, para assumir o sofrimento que me couber. Não precisamos nos preocupar: a vontade de Deus se manifesta a cada momento. Quando a escuridão e a dúvida povoarem nossa mente e nosso coração, perseveremos com paciência e amor, até que for do agrado de Deus nos iluminar e confortar. P. Dehon via no Coração traspassado o grande amor que deseja a felicidade dos seres humanos. A entrega total é um antídoto contra a ansiedade que causa danos ao espírito. P. Dehon viveu as palavras de Jesus: “Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã; o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo. A cada dia basta o seu mal” (Mt 6, 34). A vida de P. Dehon foi uma via sacra. A graça salvadora veio através da entrega. O reino de Deus se constrói através da fraqueza: “Meu poder se perfaz na fraqueza” (II Cor 12, 9). Não é a virtude humana que salva o mundo. O amor de Deus salva o mundo e nós somos os beneficiários de sua graça. O amor e a misericórdia de Deus são maiores do que o pecado. Esta atitude frente ao sofrimento não é negação de si mesmo, mas um complemento da graça de Deus: “Agora encontro minha alegria nos sofrimentos que suporto por vós; e o que falta às tribulações de Cristo, eu o completo em minha carne em favor do seu corpo que é a Igreja” (Col 1, 24).

3. A abordagem holística do sofrimento humano. No momento atual a humanidade está re-descobrindo os elos entre o corpo e a mente, a fé e a saúde, a reparação e a felicidade. A espiritualidade vai além da realidade. É a espiritualidade que desperta para a vida. Muita gente não o aceitará. Temos que renascer para viver em plenitude. Há muitos estudos contemporâneos que comprovam a unicidade da vida. A filosofia holística é um exemplo. A ciência faz a mesma descoberta. É inegável que uma fé profunda é capaz de fazer o impossível acontecer.

Um racionalista dirá que tudo isto é besteira. É necessária abertura para além da compreensão humana. Há uma fase do “ainda não” na busca da verdade. O tempo se encarrega de esclarecer. A ciência é muito recente para chegar a conclusões. Até o século XIX os escritores médicos não percebiam a influência da angústia, da raiva e do ressentimento sobre o corpo. Igualmente ignoravam o efeito positivo do amor e da reconciliação. Sem dúvida, a medicina moderna tem grande poder de aplacar o sofrimento físico; por isso as pessoas tendem a esquecer o lado espiritual que rejuvenesce a vida. A medicina pode rejeitar coisas que escapam ao mais poderoso microscópio.

Pesquisas com pacientes terminais de câncer deram resultados surpreendentes sobre o elo entre o corpo e a saúde espiritual. Em seu livro “Love, Medicine&Miracles”, B. Siegel relata sua experiência em auto-cura com pacientes de câncer. Ele afirma o poder de cura do amor. Pacientes que foram criados desde pequenos sem o devido amor e afeto resistiam mais à cura. Nestes casos, um longo tratamento interior poderia ajudar. Mensagens assimiladas do tipo “ninguém gosta de mim” e o sentimento de culpa tinham que ser extirpados. O verdadeiro sentimento de culpa aceita o castigo. Eles aprendiam a amar suas limitações. O ódio a si mesmo é uma tragédia. A S. Escritura nos motiva ao amor próprio: “Vós sois o templo do Espírito Santo” e “O reino de Deus está em vós”.

Não é errado dizer que muita gente trata o corpo como se fosse uma máquina que precisa estar em perfeito funcionamento, esquecendo as demais dimensões. O amor continua sendo a grande necessidade de nossa geração. A reparação deve focalizar o eterno amor de Deus. “Precisamos da segurança do amor para aventurar-nos a questionar a verdade pessoal. Somente o calor do amor e da compreensão podem proporcionar um fundamento seguro para o crescimento na verdade que liberta. Desde o momento da concepção necessitamos ser aceitos e amados para amadurecer sem medo de sermos nós mesmos. O amor humano pode assumir esta tarefa, mas será sempre um amor frágil. Alguns sentem-se privados desta experiência desde os primeiros anos. Continuamos a carecer de um amor constante no qual possamos confiar cegamente. Este amor chama-se Deus e afasta todos os temores e nos liberta.

4. O poder de cura da fé e do amor. A fé no poder de Deus pode sanar as feridas da vida. Basta que haja uma vontade forte e aceitar a existência do amor de Deus como fonte de bem estar e felicidade. Deste estado mental de paz e tranquilidade fala o Dr. Bernie (Love, Medicine & Miracles): “É a falta de espiritualidade que causa tantas dificuldades. Conheço muitos pacientes que, quando estão doentes é porque estão zangados com Deus. É importante saber discutir com Deus como no Judaísmo tradicional. Deus está sempre à espera de poder socorrer-nos.

Quando as pessoas se aceitam como são libertam a energia interior. O amor incondicionado multiplica as oportunidades de receber amor. O Dr. Bernie explica: “Um dos resultados imediatos é a mensagem de vida ao corpo. Estou convencido de que o amor incondicionado é maior imunizador e estimulante da vida. Se eu disse a um paciente que ele deve elevar o nível sanguíneo, ou matar células T, ou imunizar glóbulos, ele não sabe o que fazer. Mas se eu disser que ele deve amar a si mesmo e aos outros as mudanças podem acontecer logo. Esta é a verdade: o amor verdadeiro cura. Quando médicos e pacientes compreenderem o poder de cura do amor acrescentaremos uma nova dimensão à medicina. Estaremos, então, no caminho anunciado por Teilhard de Chardin: Um dia, depois de termos dominado os ventos, as ondas e a gravidade, haveremos de orientar para Deus as energias do amor. Então, pela segunda vez na história da humanidade, descobriremos o fogo”. É mais saudável amar.

Viktor Frankl, que sobreviveu aos campos de concentração e escreveu “O Homem à procura de sentido”, diz que os nazistas consideravam mais fácil enviar para a morte aqueles que tinham perdido as esperanças do que os que olhavam sem ódio nos olhos. O amor salvou a vida de Frankl. Quando ele teve a oportunidade de ir a um campo melhor, cedeu o lugar a um outro. O trem entrou direto numa câmara de gás. Outro sobrevivente, Jack Schwarz, conta que enquanto era chicoteado teve uma visão de J. Cristo. Emocionado pela figura, exclamou “Eu te amo”. O soldado ficou tocado pela cena e parou e viu as feridas do prisioneiro serem curadas sob seus olhos.

5. Ser um agente da reparação. Escolhendo reparar, restaurar e compensar o mal, em nossa vida e na vida dos outros, nós interrompemos e efeito destrutivo do pecado e seu poder sobre a vida. Optamos por entregar nossa vida nas mãos de Deus. Esperamos mais do poder de Deus do que de nossas virtudes para restaurar a paz e a felicidade no mundo. O amor, a paz e a alegria podem ser espargidos no mundo a partir de esforços pessoais de reparar o mal e substitui-lo pelo seu oposto. A oração de Francisco de Assis reflete esta atitude: Fazei-me um instrumento de vossa paz. Onde houver ódio, que eu leve o amor; onde houver ofensa, que eu leve o perdão; onde houver dúvida, que eu leve a fé; onde houver desespero, que leve a esperança; onde houver trevas, que eu leve a luz, onde houver tristeza, que eu leve a alegria. Ó divino Mestre, dai-me a graça de consolar mais do que sou consolado; de compreender mais do que sou compreendido; de amar mais do que sou amado. Porque é dando que se recebe; é amando que se é amado; é perdoando que se é perdoado e é morrendo que se vive para a vida eterna.

S. Paulo também escreve que superamos o mal através do bem. Procurar o bem é procurar o Reino de Deus e o resto virá como consequência: “Procurai primeiro o Reino e a justiça de Deus e tudo isto vos será dado por acréscimo” (Mt. 6, 33). Parece que cada ato bom contribui para gerar um tanto de felicidade e amor. Não podemos ser verdadeiramente felizes quando na sociedade reinam a violência e a morte. Os momentos mais felizes são prejudicados pela realidade do mal. Deve-se lembrar que: “Nosso corpo reflete o corpo do mundo. Se este está ferido, o nosso também. Essencialmente não há distinção entre o corpo do mundo e o corpo humano” (T. Moore, Care of the soul). Como pode alguém ser feliz negando sua responsabilidade pelos outros? “Javé chamou Caim e este respondeu nada saber sobre seu irmão. Deus não aceitou a desculpa.

“A reparação será, por vezes, vivida como oferenda dos sofrimentos, suportados com paciência e espírito de abandono, mesmo nas trevas e na solidão, como participação eminente e misteriosa nos sofrimentos e na morte de Cristo pela redenção do mundo (RV, 24).

A reparação se recusa a pagar o mal com o mal, o que levaria à infelicidade. Quem usa a espada perece por ela. O Coração traspassado de Jesus realiza a verdadeira reparação. Pendente da cruz, Jesus absorve todo o ódio e toda maldade a ele dirigidas, anulando-as. O modelo do pecado se quebra pela recusa de Jesus de se submeter a ele. Este modelo vai sendo destruído sempre que os seguidores de Jesus rejeitam o mal e não permitem ao pecado controlar suas atitudes e sua conduta. Para Jesus era necessário sofrer (cf. Lc 24, 26). Modernos profetas do amor, como Maximiliano Kolbe, Mahatma Ghandi, Martin Luther King, Madre Teresa, Nelson Mandela e João Paulo II provaram a eficácia do amor no mundo moderno.

Somente quando assumimos o papel do bom samaritano e percebemos a fonte de salvação no Coração traspassado, o mundo passa a receber a civilização do amor. Porque “do Coração de Cristo, aberto na cruz, nasce o homem de coração novo, animado pelo Espírito Santo” (RV 3) e se fortalecem os profetas do amor e os servidores da reconciliação para a felicidade dos seres humanos e para o bem estar do universo.

Conclusão

A espiritualidade da reparação como um caminho para a felicidade humana é um assunto vasto. Dei minha visão pessoal. O amor continua sendo o princípio de tudo. A resposta humana continua insuficiente. As tantas manifestações do pecado são uma ingratidão a este amor. A ruína dos valores morais tem sua raiz na negação de Deus e no dualismo corpo-alma.

Tudo o que está separado de Deus é enganador. A ausência de fé no amor de Deus traz a infelicidade. Nós nos encerramos como numa prisão. Os seres humanos devem parar de se iludirem com os mitos do racionalismo e do materialismo. A descoberta de quem somos e a necessidade de um objetivo em nossa vida deveria estimular-nos na alegria. A grande verdade de que Deus existe e está sempre reparando o mal deveria incentivar-nos a recomeçar sempre.

A felicidade se encontra na luta. Nada está fora do alcance da redenção porque para Deus nada é impossível.

O fato é que nós procuramos a felicidade lá onde ela não se encontra. “Ó todos que estais com sede, vinde para as águas, mesmo aquele que não tem dinheiro, vinde….por que gastar vosso dinheiro com aquilo que não alimenta, vosso trabalho com aquilo que não sacia? Escutai, pois, escutai-me, e comei o que é bom; encontrai o vosso gozo em manjares deliciosos. Prestai ouvido, vinde a mim, escutai, e havereis de viver” (Is 55, 1-3).

Vamos à fonte que nos cura: “Farei sobre vós uma aspersão de água pura e ficareis puros; eu vos purificarei de todas as vossas impurezas e de todos os vossos ídolos. Eu vos darei um coração novo e porei em vós um espírito novo; tirarei de vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne” (Ez 36, 25-27), e como o salmista nós haveremos de encontrar “…o caminho da vida diante da tua face, plenitude da alegria, à tua destra, delícias eternas” (Sl 16, 11).