DAS MISSÕES E DO MUNDO

A DESFIADORA NOVIDADE DE JESUS CRISTO

NO CONTEXTO DO PLURALISMO RELIGIOSO

(Congresso Missiológico Internacional - Roma, 17-20 de outubro de 2000)

Jacob Parappaly, M.S.F.S

A palavra de Deus não está algemada (2Tim 2,9). Essa verdade é confirmada pelas infinitas maneiras como recebe a expressão Palavra de Deus no mundo. Antes de qualquer outra coisa ela é verdadeira em Jesus Cristo, o mistério da Palavra de Deus revelada na história. Ele superou tudo aquilo de que poderia estar dependente, mesmo a morte. Os primeiros teólogos da Igreja interpretaram Jesus Cristo como o Messias que os Judeus esperavam e também a realização das alvissareiras esperanças dos Povos de todos os tempos. Inácio de Antioquia (+ 110 dc.), por exemplo, proclamou Jesus Cristo como “o fundamento de onde se espera que (toda a humanidade) possa converter-se e encontrar o caminho para Deus”. Além disto afirmava que Jesus era “nosso nome comum e nossa comum esperança”.1

Os seguidores de Jesus Cristo estão convencidos de que ele é, de fato, o nome comum e a comum esperança significativa para toda a humanidade. Eles vêem nele o Caminho, a Verdade e a Vida. Ele é para eles a experiência do começo e do fim de suas vidas, e por isto mesmo seu último significado. Confessam que ele é o Senhor da história e o universo que viveu e morreu em determinado período da história e ainda vive depois de sua morte, levando tudo à plenitude da vida. Qualquer coisa ligada a essa experiência transformadora de Jesus Cristo deve ser partilhada e proclamada significativamente de modo que o mesmo Jesus Cristo possa ser conhecido pelos povos de todas as culturas e línguas. Isto é absolutamente imperativo para a Igreja que “vive, move-se e tem seu ser” em Jesus Cristo a fim de proclamá-lo de modo que outros povos possam realmente “ouvir” a palavra da proclamação.

Na sociedade multi-religiosa do Império Romano, a Igreja primitiva encontrou meios criativos de fazer teologia e de proclamar o significado de Jesus Cristo. Quando o Império Romano aceitou Jesus Cristo como seu Senhor e Salvador, o Cristianismo tornou-se uma cultura mono-religiosa, sem nenhuma confrontação a sua pregação sobre Jesus Cristo, vinda de fora. Ela teve que enfrentar apenas desafios internos com respeito a falsas interpretações da pessoa de Cristo, rebatidas pelos primeiros concílios, em particular, o concílio de Calcedônia. A Igreja articulou a resposta de “quem é Jesus”, em diálogo com o Judaísmo e com o mundo Greco-Romano. Uma tal Cristologia concluída, com a imagem pronta de Cristo, não causou impacto nos povos da Ásia, nestes vinte séculos, porque os povos asiáticos têm culturas diferentes e visões de mundo que não lhes permitem compreender a “linguagem” da pregação cristã. Além disto, as religiões da Ásia querem ter seus próprios mediadores, salvadores que parecem ter-lhes mostrado os caminhos da salvação. Podiam ver “Cristo como uma figura exótica, mais ou menos simpática, de um suspeito construtor, associado aos estrangeiros conquistadores e invasores”,2 uma ameaça a suas religiões e culturas tradicionais. A recente compreensão de Cristo e do cristianismo como uma ameaça, vem crescendo na Índia e em outros lugares da Ásia. Vê-se isto claramente na propaganda anti-cristã, promovida pelo fundamentalismo Hindu que levou ao martírio de alguns missionários, recentemente. Nesse contexto, que meios podem-se usar para proclamar Jesus Cristo, numa linguagem significativa e desafiadora para o povo de outras religiões de modo que vejam nele a “plenitude de vida” e não uma ameaça às suas culturas e tradições autênticas?

Em seu escrito “A Unicidade de Jesus Cristo na Reflexão Teológica Indiana”, George Karakunnel mostra que, no contexto indiano do pluralismo religioso e de pobreza das massas, há necessidade de se apresentar uma imagem de Jesus Cristo que seja inclusiva e relacional, profética e libertadora, pneumática e cósmica que encontre expressão no amor e no serviço até o sacrifício. Neste artigo, gostaria de acentuar as colocações feitas acima e mostrar por que uma tal abordagem da Cristologia é imperativa no contexto indiano se é que levamos a sério a “ordem para a missão” dada por Jesus Cristo (Mt 28,18-20). Além do mais, no contexto do pluralismo religioso indiano, eu sugeriria que na pregação, Jesus Cristo fosse apresentado na sua dimensão desafiadora e não ameaçadora, respeitosa e não agressiva, relacional e não relativa.

Para uma significativa Cristologia Indiana: Problemática e Prospectivas

Pregar Jesus Cristo, devemos. Convidar o povo a fazer a experiência de sua presença vivificante em Seu Espírito e através dele, na Igreja, também devemos. Mas será que deveríamos continuar repetindo certas afirmações Cristológicas, articuladas numa linguagem que, além de não ser significativa para nossos ouvintes, tem um impacto negativo sobre eles a ponto de rejeitarem nossa mensagem? Deveríamos usar expressões exclusivas e absolutas na proclamação da centralidade de Jesus Cristo no plano salvífico universal de Deus (1Tim 2, 4-5), impedindo que o povo de outras religiões ouçam a Boa-Nova da salvação? Temos o direito de proferir afirmações absolutas sobre outras religiões, seus fundadores e sobre suas experiências religiosas, algumas vezes até denegrindo-as, como se conhecêssemos os desígnios misteriosos de Deus que “não é parcial” e para o qual “em qualquer nação, quem o respeita e pratica a justiça é aceito por ele” (At. 10,34-35)?

A história da pregação Cristã foi, de modo acentuado, agressiva, triunfalista até, em contradição com a exortação de Pedro “estai sempre prontos a dar razão de vossa esperança a todo aquele que vo-la pede; fazei-o, porém, com mansidão e respeito” (1Pd 3,15).

Os colonizadores não puderam descobrir a presença de Cristo por seu Espírito nos valores positivos das tradições religiosas dos seus colonizados, entendendo que isto seria obstáculo a sua pretensão de superioridade, não só no poder militar mas também na religião e na cultura. Na era colonial e pós-colonial na Ásia, e em particular na Índia, a convicção do Cristianismo de ser a única religião que possui a verdade absoluta, a unicidade de Jesus Cristo e de sua Igreja para a salvação etc. era não só incompreensível para os seguidores de outras religiões mas também levava a eles justamente o oposto ao que poderia ser essa pretensão. Para um povo que sustenta uma inclusiva e relacional visão de mundo, qualquer formulação absoluta e exclusiva sobre Jesus Cristo e sua Igreja reduz Jesus a um Deus tribal e a Igreja, a uma seita religiosa. Deste modo, Jesus torna-se mais um, entre os fundadores de religiões, mais uma das encarnações, um grande Guru, um profeta ou alguém que chegou à plena auto-realização. Eles o considerariam mais uma entre as muitas manifestações históricas do Absoluto. Como isto pode acontecer? Não é nossa pregação clara e sem ambigüidade? De fato é. Mas é significativa apenas para aqueles que comungam da visão de mundo judeu-cristã. Para aqueles cuja visão de mundo age sobre o princípio epistemológico, mais do que sobre o princípio de contradição e para quem verdades trans-históricas são mais reais do que fatos históricos, libertação da ignorância é mais importante do que libertação do pecado, expressões religiosas simbólicas são mais evocativas e experimentais do que credo ou formulações dogmáticas, qualquer declaração exclusiva sobre verdades religiosas falham ao pretenderem se ajustar aos esquemas das coisas. Assim, a luta de qualquer teólogo Cristão Indiano é traduzir a afirmação de fé da Igreja sobre a pessoa e a missão de Jesus Cristo numa linguagem significativa para o povo de modo que este possa responder a ele com todo o seu coração e com todo o seu espírito.

Apresentar uma Cristologia significativa no contexto Indiano é difícil. Com efeito, a pluralidade e a complexidade de situação exigem uma pluralidade de Cristologias em diálogo com as “grandes tradições” e com as “pequenas tradições”3 que têm suas próprias visões de mundo, como também seus elementos libertadores e opressivos. A experiência cristã de Jesus Cristo como plenitude de vida pode questionar os elementos desumanizantes destas culturas e religiões. A abertura para os elementos positivos de outras tradições religiosas pode enriquecer a compreensão do mistério de Jesus Cristo. Mas a prospectiva de enriquecimento da nossa atual compreensão do mistério de Cristo só é possível se renunciarmos à pretensão de termos esgotado todas as possibilidades da compreensão do mistério de Cristo. Isto também significa que devemos renunciar à presunção de que nossas assim chamadas universalmente válidas, atemporais, a priori, articulações sobre Jesus Cristo são compreensíveis para todas as culturas e visões de mundo.

É claro para aqueles que encontram Jesus Cristo na tradição viva da Igreja e compreendem que os desafios de sua visão de mundo recebida da tradição Indiana não são inteligíveis aos seus ouvintes. Por isto teólogos indianos estão convencidos da necessidade de apresentar as verdades da revelação cristã de várias maneiras significativas no contexto indiano. A tentativa deles pode ser interpretada como a relativização das verdades fundamentais da revelação cristã. Algumas vezes chegam a ser acusados de não afirmarem a unicidade de Cristo como o único salvador É compreensível que alguns façam essas acusações, visto que os métodos pedagógicos empregados pelos teólogos indianos não são devidamente compreendidos por quem não teve a experiência viva do contexto da reflexão teológica indiana.

A pregação sobre Jesus Cristo em diálogo com o contexto indiano do pluralismo religioso e com a situação sócio-cultural e econômica desumana convence os pregadores do Evangelho de que:

1. A presença cósmica e trans-histórica de Jesus Cristo como também sua presença através do seu Espírito, em tudo que é bom, belo e perfeito, devem ser o ponto de partida, e sua presença histórica deve ser o ponto de chegada na pregação do Evangelho. Isto é imperativo como uma super-ênfase sobre a historicidade de Jesus no início da pregação e o reduz a um, entre os fundadores históricos de religião.

2. Jesus Cristo não pode ser significativamente proclamado no contexto indiano, isolado e separado das “muitas maneiras como Deus tem falado aos nossos pais” (Hb. 1,1ss). Outros fundadores de religião e outros meios de salvação não precisam de ser entendidos como paralelos ou complementares da revelação através de Jesus Cristo “feita uma só vez e para todos”. Nem mesmo há necessidade de os considerar participantes da mediação de Jesus Cristo. Conforme as Escrituras, eles podem ser considerados meios de Deus tratar a humanidade nas culturas e nações particulares, no passado (Hb 1,1ss) e é razoável concluir que a antiga economia de Deus continua para aqueles povos que ainda não tiveram conhecimento de Jesus Cristo. Essa compreensão não reduz o zelo missionário para proclamar a Boa Nova, temida por alguns, mas até o desenvolve, por uma profunda reverência aos mistérios da vontade de Deus e pelo respeito para com as pessoas e para com as culturas e a autêntica tradição religiosa.

3. A revelação em Jesus Cristo é nova, exige resposta livre e total compromisso. Deus quer salvar todos os homens por ele (1Tim 2, 4-5). Isto, creio eu, é a razão suficiente e impulsionadora da missão da Igreja. Deste modo, não há necessidade de classificar outras mediações religiosas e outros mediadores como meios incompletos de salvação, a fim de salvaguardar a centralidade de Jesus Cristo na economia de salvação. Uma colocação como essa só viria criar uma insuperável dificuldade na pregação do Evangelho. A novidade da revelação de Deus em Jesus Cristo é bastante poderosa para desafiar pessoas e sociedades.

4. O Espírito de Deus, presente nos valores autênticos de outras religiões e culturas não pode ser separado de Jesus Cristo. Seguindo o espírito do Vaticano II, especialmente da Gaudium et Spes, o Papa João Paulo II, na sua carta encíclica Redemptoris Missio admite que a Igreja reconhece a presença e a ação do Espírito além dos limites da Igreja. Ele afirma que “a presença e a atividade do Espírito diz respeito não só aos indivíduos mas também à sociedade, à história, aos povos, às culturas, e religiões”.4 As tentativas Indianas e Asiáticas de reconhecer a “presença oculta” de Cristo através do seu Espírito em autênticas tradições religiosas e culturais, de forma alguma separa Jesus Cristo do seu Espírito, pelo contrário, cria tremendas possibilidades de proclamar a centralidade de Jesus Cristo. A descoberta da presença e da ação do Espírito nas complexas realidades da Índia/Ásia, leva ao encontro com Jesus Cristo, cujo Espírito é ele. Na sua exortação Apostólica, Ecclesia in Asia, o Papa João Paulo II sublinha a inseparável ação do Espírito Santo e a salvação universal em Cristo e o compromisso da Igreja de respeitar a urgência no cumprimento de sua missão.5

5. A pregação do Reino de Deus através do diálogo com todos aqueles que se comprometeram a criar uma sociedade justa, de modo algum dilui o compromisso com Cristo e o surgimento da Igreja, pelo contrário, os condiciona. Na doação total de si mesmos dos cristãos, no compromisso de transformar suas sociedades injustas, e sua coragem de enfrentar tudo pelos valores do Reino como também sua coragem de suportar as conseqüências, nisto, os povos de outras tradições religiosas descobrem a imagem libertadora e sofredora de Cristo.

A busca de uma imagem ou imagens de Jesus Cristo que levem em consideração os assuntos tratados acima, sem dispensar nenhuma das afirmações da fé Cristã, impele os teólogos indianos a descobrir meios criativos de comunicar a revelação de Deus em Jesus Cristo.

2. Desafiadora Novidade de Jesus Cristo

No século 19, alguns Hindus e convertidos do hinduismo tentaram apresentar Jesus Cristo numa linguagem significativa para os Hindus. Descobriram a desafiadora novidade da revelação de Deus em Jesus Cristo para realizar a libertação integral dos homens. Enquanto um reformador Hindu, como Ram Mohan Roy (1772-1833), apresentava Jesus como o Supremo Guia para a Felicidade, Keshub Chunder (1838-1884), permanecendo no limite entre o Hinduismo e o Cristianismo, viu Jesus como a realização do Hinduismo, o ápice da evolução orgânica: Cit (Consciência) do Deus-Trindade (Sat-Cit-Atianda = Ser-Consciência-Felicidade). Para Brahmabandhav Upadhyaya (1861-1907), um Brâmane convertido ao Cristianismo e o assim chamado pai da Teologia Cristã Indiana, Jesus Cristo é a imagem Transcendente do Supremo Brahma e Nara-Hari (Deus-Homem). Seguindo essa linha de interpretação de Jesus Cristo, a partir da tradição cultural e religiosa Indiana, alguns tentaram apresentar Jesus Cristo como único Avatara (Incarnação), Isvara (Aspecto pessoal do Supra-pessoal Absoluto), Adi Purusha (A Pessoa Primordial), Prajapati (o Senhor das criaturas), Vimochakan (o Libertador), Satyagrahi, Yogi etc. De modo surpreendente, essas tentativas de interpretar Cristo no contexto indiano não tiveram séria influência na pregação e na prática cristãs e até foram vistas com suspeita pela Igreja.

Nos anos oitenta, os teólogos do Terceiro Mundo fizeram uma avaliação dos modelos cristológicos do contexto Asiático e os julgaram inadequados para responder à pluralidade das religiões e à pobreza generalizada da Ásia.6

“A teologia da realização” dos anos trinta, com o consenso sobre o Cristo-das-religiões, foi uma iniciativa de reação “à teologia da civilização” dos missionários e colonizadores do Ocidente. Mas falhou em não identificar o Cristo-dos-pobres. O Cristo ashrâmico dos recentes anos 60 foi um protesto contra a “teologia do desenvolvimento” dos neo-colonialistas. O movimento ashrâmico, reconhecendo a ganância como inimigo interno, abraçou voluntariamente a pobreza e a simplicidade mas falhou em não enxergar a ganância dos sistemas e das estruturas e em não participar das lutas dos pobres pela libertação. Assim a “Cristologia da inculturação” dos anos 70, desenvolvida em oposição à “Cristologia da Libertação” deixou de ver a ligação entre religião e libertação. Na Índia/Ásia há muitas culturas e muitas classes em uma só religião e muitas religiões em uma só cultura. Há elementos libertadores e opressivos nas religiões como nas culturas. A preocupação com uma situação tão complexa foi a força impulsionadora que motivou os teólogos da Índia/Ásia a fazerem a tentativa de apresentar uma imagem de Jesus Cristo como Cristo-das-das-religiões-e-dos-pobres.

No contexto de muitas religiões que pretendem ser caminhos de libertação da miséria da existência humana e a presença de milhões de pobres que buscam libertação sócio-econômica e política, que há de novo na pessoa e na mensagem de Jesus Cristo? Esta novidade tem que ser comunicada mais através de palavras significativas, ações e um estilo de vida do que pela repetição de termos ininteligíveis, excludentes e ofensivos ao povo de outras religiões. O conteúdo total da experiência e da práxis apostólica abrangia novidade da ação de Deus na história, em Jesus Cristo e isto veio a ser o Novo Testamento. Até que se consumam o novo céu e a nova terra, essa mensagem deve ser pregada. Em vez de termos excludentes e unívocos que usamos, de preferência para explicar quem é Jesus Cristo, a novidade desafiadora de Jesus Cristo, se for devidamente comunicada, tem que levar muitos homens a encontrá-lo. Essa, creio eu, é a tarefa da teologia no contexto da Índia/Ásia.

Poderemos identificar alguns elementos capazes de comunicar a novidade da revelação de Deus em Jesus Cristo que possa responder de modo adequado aos interesses soteriológicos do povo de outras religiões, sua busca de libertação integral e sua esperança de harmonia entre Deus, os homens e o cosmo? Creio que isto é possível e necessário para se entrar num diálogo significativo com o povo de outras religiões e para convidá-lo a fazer a experiência de Jesus Cristo. Alguns elementos dessa novidade da revelação Crística podem ser resumidos como segue:

1. Em Jesus Cristo dá-se o encontro com um Deus que se esvazia, antes desconhecido na história da revelação. Nele, o Absoluto torna-se relativo, o Infinito torna-se finito, Deus se faz homem, o verbo torna-se carne (Jo1,14). Nele, Deus veio servir e não ser servido (Mc 10, 45). Assim, a figura de Cristo que se esvazia (Fil 2,7), pode ser encontrada como o servidor de tudo que é perfeito, bom, verdadeiro, belo e autenticamente libertador em todas as tradições religiosas, Grandes ou Pequenas, Meta-cósmicas ou cósmicas, unitivas ou messiânicas. Ele é não somente o potencial libertador das tradições religiosas Asiáticas mas tem o poder de as atualizar na realidade.

2. Se Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, como professa e proclama o Concílio de Calcedônia, só pode ser o que ele se revelou na história, o servo de Deus, da humanidade e do cosmo. Nele Deus se desvela, o Deus que não é somente Senhor mas também o servo de todos e de tudo. Esta é a kénose radical, o paradoxo da revelação Crística, pedra de tropeço para os Judeus e loucura para os Gentios mas, de fato, poder e sabedoria de Deus (1Cor 1,25). O auto-esvaziamento é a essência da Unidade Trinitária. “Não há outro nome” (At 4,12) que revele o mistério de Deus, como o Deus que se esvazia e se faz servo de sua própria criação. Esse novo, decisivo, normativo e universalmente válido em Jesus Cristo consiste na sua condição de servo de tudo que á autenticamente humano seja cultura, religião, sistemas ou estruturas. Essa condição de servo que se esvazia está expressa no lava-pés dos discípulos na Última Ceia (Jo 13, 3-15). Essa revelação subverte todas as categorias de discriminação humana: superioridade e inferioridade, classe alta e classe baixa, casta alta e casta baixa, o intocável, patriarcalismo ou matriarcalismo, macho ou fêmea, Cristão ou Pagão, crentes ou não crentes, civilizados ou não civilizados etc. Isto desafia as estruturas religiosas e seculares que perpetuam os sistemas de discriminação e desumanização e dá energia e força de libertação religiosa ou secular.

3. A imagem de Cristo esvaziado pode revelar o poder e o não poder, pode identificar-se com eles e dar-lhes energia para lutarem por uma vida plenamente humana e ao mesmo tempo libertá-los das forças da alienação, dentro deles e dentro das estruturas que os escravizam. Jesus Cristo revela um Deus sofredor que sofre quando os homens sofrem mas ele mesmo é amor. Essa nova revelação em Jesus Cristo tem uma tremenda influência sobre os povos que sofrem por causa de imagens opressivas de Deus.

4. O Cristo kenótico pode satisfazer o desejo do povo da Ásia pela libertação da ganância, da carência de bens, do egoísmo e da fragmentação da realidade. Ele pode revelar a necessidade de uma religiosidade ética para a integral libertação em vez de uma religiosidade cúltica e Gnóstica. Jesus de Nazaré revelou um Deus ao mesmo tempo antropocêntrico e cosmocêntrico (Jo 3,16) e não centrado em si mesmo porque ele é um Deus que se esvaziou. Um Cristo kenótico pode desempenhar sua função no contexto asiático desafiando todas as tradições religiosas, inclusive o Cristianismo, a serem autenticamente antropocêntricas e cuidar de toda a criação. Ele revela um Deus relacionado com os homens e com o mundo.

5. O Cristo kenótico pode dar energia a todos os que o encontram a fim de que promovam tudo que é autenticamente humano, e libertador nas várias tradições religiosas, nas culturas e nos sistemas sócio-políticos e econômicos, com respeito, amor e uma atitude de auto-esvaziamento. Um encontro desse tipo com o Cristo kenótico também lhes daria o poder de se identificar com aqueles que assumiram a luta contra as forças que tiram a liberdade e a construção do Reino de Deus onde o esvaziamento de Deus é a fonte, e o modelo da comunhão, das comunidades de justiça, amor, piedade, amizade, paz, reconciliação, enfim, da totalidade.

Conclusão

A pregação cristã da unicidade de Jesus Cristo não é compreendida e é rejeitada pelos povos de outras religiões. Eles parecem considerar essa pretensão com um sentimento cristão de superioridade, arrogância, uma mentalidade colonial. É do interesse da vocação da Igreja e para o desempenho de sua missão que ela fale uma linguagem que promova uma efetiva comunicação de sua mensagem sobre Jesus Cristo. Isto significa que a Igreja mantenha uma atitude consistentemente positiva para com as outras tradições religiosas que devem ser servidas pela revelação em Jesus Cristo. As outras tradições religiosas têm o direito de ouvir a mensagem do Evangelho e por isto a Igreja tem o dever de proclamá-lo numa linguagem inteligível a elas.

A Escritura nos revela um Deus que se esvazia e que veio para servir. Essa é a novidade da revelação de Deus em Jesus Cristo. A nova revelação na história daquele que transcende a história não destrói nada que é verdadeiro e belo em outras tradições religiosas e culturas. Essa verdade só pode ser comunicada com credibilidade por aqueles que percebam neles a presença oculta de Jesus Cristo através do seu Espírito. Sua presença oculta e sua ação podem também ser reconhecidas por aqueles que estão comprometidos com todos os valores autênticos do Reino. Todavia, uma Cristologia tribal exclusiva impede o diálogo com os membros de outras religiões, frustra seu encontro com Jesus Cristo. A missão de Jesus era pregar e promover corretas relações dos homens entre si, com Deus e com o cosmo. A pregação do “Reino de Deus” ou do “Reino do Céu”, feita por Jesus impele a um vertical e horizontal relacionamento humano para a construção de uma nova sociedade. Seguindo o Cristo kenótico, os discípulos recebem a graça e a obrigação de “juntar os fragmentos para que nada se perca” (Jo 6,12) das tradições religiosas da Índia/Ásia e dos movimentos populares para a construção de uma nova sociedade.

A significação de Jesus Cristo para a Índia/Ásia para a sua integral libertação será conhecida quando o povo de outras religiões, os oprimidos e marginalizados puderem ver a face de Cristo esvaziado na sua Igreja servidora, lutando com os outros e pelos outros, para a construção de uma nova sociedade onde uma harmonia, fundamentada no reconhecimento da soberania de Deus, prevaleçam a justiça, a igualdade, e a “co-existência” das religiões e culturas. A novidade da revelação de Deus em Jesus Cristo torna-se visível, desafiadora e efetiva, a partir do momento em que os discípulos se comprometem com esse único serviço à humanidade e ao mundo.

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1 Inácio de Antioquia, Efésios: 1o,1; 1.2

2 R. Panikkar, A Christophany for our Times, The Thirty-fifth Annual Robert Cardinal Bellasrmine Lecture, Theology Digest 39; 1 (1992, P.4)

3 Antropólogos como M.N. Srinivas usam os termos “Grande Tradição” e “Pequena Tradição” para mostrar a distinção entre a tradição clássica Indu e a religiosidade popular do povo subalterno. Ver M.N. Srinivas, Religion and Society among the Coorgs in South India, London, 1952.

4 João Paulo II, Redemptoris Missio, 28

5 João Paulo II, Ecclesia in Asia, 28.

6 “A Irrupção do Terceiro Mundo: Desafio à Teologia”, Quinta Conferência da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (Nova Delhi, 17-29 de agosto de 1981), Documento, Vidyajyoti 46 (1982), p. 92. Ver também Aloysius Pieris, “Religiões e Culturas Não Cristãs no Terceiro Mundo”, Vidyajyoti46 (1982), pp. 166-170).

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