DAS MISSÕES E DO MUNDO

A ESPIRITUALIDADE MISSIONÁRIA

DOS PRIMEIROS CRISTÃOS MALGAXES

Bruno Hübsch

Quando se fala das Missões e da fundação de Igrejas locais, destacam-se sobretudo os ministros da evangelização - sacerdotes, irmãos, freiras -, os seus trabalhos, as suas dificuldades e os seus sucessos. Evocam-se mais ou menos os seus colaboradores locais, mas é difícil encontrar o perfil daqueles que acolheram a Palavra, lhe deram a sua adesão e constituíram a primeira Igreja. O material escrito que permite reconstituir a história dos inícios é constituído sobretudo por cartas ou relatórios escritos pelos missionários: falam dos novos cristãos, do seu zelo e da sua piedade, mas conforme lhes parece. Que pensavam estes novos discípulos de Cristo? Quais eram os valores evangélicos a que haviam aderido?

Ora, acontece que em Madagáscar temos um “jornal”, redigido dia a dia por católicos malgaxes, que dá a conhecer o que foram a sua reacção e a sua acção, quando foram obrigados a tomar em suas mãos o andamento da Igreja.

Com efeito, entre 1883 e 1886 (e isso voltará a acontecer em 1894-1895), os missionários estrangeiros tiveram de abandonar o país, na sequência da guerra que se declarou entre a França e Madagáscar. A jovem Igreja a que haviam dado origem tinha pouco mais de 20 anos. Um grupo de jovens1, reunido numa associação chamada “União Católica”, assumiu animar as 4 paróquias da capital Antananarivo e pouco depois as comunidades dispersas pelas redondezas e mais longe ainda. Reunindo-se todos os sábados, faziam o relato das suas visitas, expunham os problemas encontrados, discutiam-nos e tomavam as decisões para a semana seguinte. O secretário escrevia o relatório. Semana após semana, conhecemos assim o dia a dia desta experiência, muito rara no catolicismo, de uma Igreja dos Leigos durante 33 meses.

Conservado nos arquivos do arcebispado de Antananarivo, o texto foi cuidadosamente publicado por um historiador, Pietro Lupo, que o enriqueceu de notas substanciais e de diversos documentos franceses ou malgaxes. Estes permitem-nos estabelecer a autenticidade e a validade de tudo o que é referido na “Histoire de l’Union Catholique”2.

Através deste escrito, podemos chegar ao que “ardia” no coração destes jovens e descobrir o sentido missionário que os animava. Através da sua acção, das suas decisões, das suas reflexões, desenha-se uma maneira vivida de realizar a sua missão de baptizados3.

Mas antes de abordar este documento, importa conhecer um pouco a situação desta Igreja Católica em Madagáscar. Depois de avaliar a aventura destes “jovens”, será então possível deduzir alguns elementos que alimentaram o seu sentido missionário.

O nascimento da Igreja

Tinha havido tentativas de Missão no século XVII: da parte dos jesuítas portugueses, no sul e no oeste da Ilha (1613-1630) e, depois, dos lazaristas franceses ligados ao estabelecimento de uma base comercial no Forte Dauphin de Tolañaro (1648-1674), mas estas tentativas não tiveram sucesso. Os projectos do séc. XVIII não chegaram a concretizar-se, porque contrariados pelas autoridades das Ilhas da França (Maurícias) e Bourbon (Reunião), que se recusaram a permitir que ficasse comprometido o tráfico de escravos4.

Só depois de 1815 se encontra uma dupla aspiração. A de Radama I, rei de Anatananarivo, desejoso de conseguir os meios militares para conquistar a Ilha e de adoptar as técnicas estrangeiras, e a do governador da Ilha Maurícia, preocupado com a abolição do tráfico e com o alargamento da influência britânica. Os tratados de 1817 e 1820 permitiram aos pastores e aos artistas da Sociedade Missionária de Londres (LMS) corresponder aos desejos de ambas as partes.

A partir de Dezembro de 1820, estabelece-se também pouco a pouco uma rede escolar, enquanto rapidamente (1823) tem início a tradução da Bíblia. Textos da Escritura e Catecismos, servem de material escolar, unindo assim instrução e cristianismo. Os primeiros baptismos celebraram-se apenas em 1831, no reinado de Ranavalona (1828-1861) que sucedeu ao marido. Bem cedo ela se inquieta por causa desta religião que põe em causa o sagrado tradicional em que assenta o seu poder. Em Março de 1835 proíbe aos súbditos a prática do cristianismo. Enquanto os pastores concluem a tradução da Bíblia (Junho 1935), um grupo de cristãos que se mantiveram fiéis organiza-se clandestinamente e reúne-se para ler a Bíblia e rezar juntos. Haverá prisões e, em três vagas de perseguições (1837-1840-1849-1865), uma centena de mártires, sem contar os condenados à prisão e à escravatura. A Palavra difunde-se, graças aos crentes através das povoações da Ilha. Desenvolve-se assim uma Igreja corajosa e missionária, sustentada exclusivamente pelos nativos.

Do lado católico, Madagáscar dependia da Ilha da Reunião. Houve em 1832 a tentativa de Prefeito Apostólico Henri de Solages de subir a Anatananarivo. Mas foi impedido e acabou por morrer, só, minado pelas febres. Será um Sacerdote diocesano Pier Dalmond, que viera para o Oceano Índico com Solages, que ,em 1837, desembarcará no costa Este na Ilha de Santa Maria, dependente da França, uma vez que não lhe era permitido entrar em Madagáscar. Durante 3 anos, constituiu uma pequena comunidade, antes de se dirigir para as ilhas do noroeste, cujos príncipes pediam a protecção da França (1840). Nomeado Prefeito Apostólico de Madagáscar, procurou colaboradores. Em 1844, de passagem pela Europa, conseguiu a ajuda dos jesuítas. Quando morre, em 1847, são eles que continuam a sua obra nas “pequenas ilhas”, porque a Grande Ilha lhes é vedada, pelo que se limitam a preparar com trabalhos linguístico e editoriais o material catequético. Em 1855, o Pe. Finaz sobe incógnito a Anatananarivo e pelos seus talentos múltiplos consegue autorização de residência por dois anos. Foi preciso esperar a morte da velha rainha (16 de Agosto de 1861), para que o seu filho Radama decretasse a liberdade religiosa.

Os protestantes podem então mostrar-se à luz do dia e logo constróem os seus primeiros templos. Os jesuítas chegam logo de seguida ao centro da Ilha, bem recebidos pelo rei que conhecera o Pe. Finaz. Concede-lhes a possibilidade de se instalarem, de fundarem quatro paróquias e de abrir escolas: serão os alunos dessas escolas, depois de dois anos, os primeiros a receber o Baptismo. Também aí instrução e cristianismo estiveram intimamente ligados.

A presença das duas confissões dá origem a uma situação concorrencial que se traduz numa competição nacionalista, os protestantes apoiando-se nos seus pastores britânicos, os católicos nos seus Padres francófonos. Se bem que, após o assassinato do Rei (Maio de 1863), o Primeiro Ministro Rainilaiarivony tente uma política de equilíbrio, é para a Grã Bretanha e para o protestantismo que ele se inclina. A alta sociedade malgaxe inclina-se no mesmo sentido.

Em 1868, a nova Rainha Ranavalona II manifesta, desde a sua “aparição ao povo” a sua opção pelo cristianismo, em vez da religião tradicional. Em Fevereiro de 1869 é anunciado o seu baptismo protestante bem como o do Primeiro Ministro que se casa com ela. Mesmo que a liberdade religiosa seja oficialmente proclamada, o facto é que o protestantismo, é “a religião da Rainha”. Muitos no reino são entusiasmados a seguir a soberana: construem-se templos, improvisam-se ministros e os oficiais favorecem um movimento que lhes parece estar de acordo com a vontade real.

Neste contexto, os jesuítas, muitas vezes chamados pelos seus antigos alunos, espalham-se pelos campos do centro da Ilha e fundam capelas e escolas. Dirigem-se para o Sul (província de Betsileo), a 400 km de Anatananarivo (1871). Mas muitas vezes a sua acção é dificultada ou até proibida pelos oficiais da Rainha, levados pelos seus preconceitos anti-papistas que os fazem ver o catolicismo como uma idolatria. Os missionários católicos também não pensavam doutro modo a respeito deles...

As duas confissões rivais nunca se entendiam: e, na Capital, dava-se corpo a uma rede de ensino: os protestantes com uma escola de formação pastoral e um colégio que acabaria por tornar-se uma escola de medicina, em 1881; os católicos apoiados desde 1866 nos Irmãos das Escolas Cristãs que preparavam professores competentes e de renome, enquanto as Irmãs de S. José de Cluny, presentes desde 1861, preparavam numerosas professoras.

As tipografias forneciam livros em malgaxe, especialmente religiosos, e cada Igreja tinha a sua publicação: a Teny Soa (a Boa Palavra - 1866) para os protestantes, a Resaka (Conversação) para os católicos. Tanto dum lado como do outro fazia-se um esforço considerável de formação, especialmente na cidade real. Nos campos a filiação religiosa traduzia-se muitas vezes sobretudo na diferença de culto, mas os Padres, vivendo num distrito podiam assegurar uma evangelização com maior profundidade.

Tal era grosso modo a situação religiosa, quando, em 1883, estala a guerra entre a França e Madagáscar. Muitos motivos de contraste tinham envenenado as relações: a recusa malgaxe do direito de propriedade para os estrangeiros, as pretensões do Reino sobre o nordeste da Ilha, de que os franceses pretendiam o protectorado. Acrescente-se o projecto dos notáveis da Reunião de fazer de Madagáscar um escape para a população.

Quando se soube do bombardeamento de Majunga, o governo malgaxe decidiu expulsar todos os cidadãos franceses e por conseguinte, Padres, Irmãos e Religiosas católicos (o único Padre malgaxe ordenado em 1873, tinha falecido dois meses antes). Não ficaram, como religiosos, senão o primeiro Irmão malgaxe das Escolas Cristãs (28 anos), o Irmão Rafael Rafiringa e três noviças das Irmãs de S. José de Cluny. Mas havia os leigos católicos...

Perante os 135.000 baptizados protestantes e todos os outros simpatizantes, os católicos não passavam de 23.500 baptizados e uns 40.000 simpatizantes espalhados por 316 localidades, das quais 80 no sul, em Betsileo. Tinham 19.000 alunos nas suas escolas, com 350 professores5.

As cartas dos missionários, depois da sua saída, mostram o seu desgosto e o receio de verem destruir esta pequena Igreja6. Mas isto era não contar com a fé e o sentido missionário que tinham germinado nos corações.

A Igreja dos leigos

Quais foram os actores desta Igreja dos leigos que souberam animar a sua comunidade? Depois de os ter apresentado e descrito a sua acção, será possível, através do seu jornal, realçar as suas motivações.

Três dias após a partida dos Padres, os católicos encontram-se perante igrejas vigiadas. Chega a nora do Primeiro Ministro, Vitória Rasoamanarivo que, depois de se ter informado em altas instâncias, manda abrir as portas. Os fiéis podem reunir-se para rezar. Esta mulher não está só perto do poder, mas era conhecida por ser uma cristã de grande piedade, sem ostentação mas corajosa. Dama de honor da rainha, ela dava testemunho da sua fé. Sabia-se que o seu marido levava uma vida desregrada, mas apesar dos conselhos do sogro e da rainha, Vitória nunca quis ouvir falar de divórcio. Digna, paciente, esperava ver mudar este marido que a humilhava. Dona de casa, governava a casa tratando criados e escravos com doçura e confiança. Empenhada na paróquia, na associação das Filhas de Maria, de que era presidente, visitava doentes e desprotegidos ou acolhia-os em sua casa. O Pe. Caussèque, conselheiro espiritual das associações, disse-lhe, antes de partir: “Quando Jesus subiu ao céu, Maria ficou na terra para animar os Apóstolos e os fiéis. Filha do Primeiro Ministro e piedosa como és, podes fazer muito por eles”.

Ela recebeu esta palavra como uma missão e durante 33 meses vai pô-la em prática. Era essencial para os católicos ter uma tal mulher como garante, porque pela sua posição, ela era o sinal da liberdade religiosa que o sogro queria manter7.

O primeiro Irmão malgaxe, pela condição de religioso e pelas suas qualidades morais, foi eleito pelos católicos adultos da Capital “Prefeito da Igreja”. Era um homem muito religioso e muito competente, profundamente dedicado ao seu trabalho. Mas, tendo por modelo a autoridade clerical dos Padres, pensou que tudo devia partir da sua autoridade. Era não ter em conta os jovens da União Católica: esta associação mariana reunia antigos alunos dos Irmãos desde 1878; durante as reuniões mensais mostravam ter recebido uma formação cristã de bom nível. Estes “jovens” de 20 a 30 anos eram funcionários ou professores da Missão. Em seguida, organizaram a oração dominical das quatro paróquias, pregando quando necessário.

Durante os primeiros quatro meses, após a partida dos Padres, alguns deles tiveram oportunidade, por motivos de trabalho ou de relações familiares, de percorrer os campos em volta da Capital. Encontraram comunidades católicas desamparadas; por vezes o professor, que era ao mesmo tempo o catequista e o orientador da oração dominical, tinha saído à procura de um ordenado; noutros sítios, a pressão das comunidades protestantes era forte demais para aliciar estes cristãos sem Padres. Pesavam sobre eles as acusações de serem traidores, de conivência com os inimigos do país... Os jovens reuniram-se no princípio de Outubro, decididos a responder às necessidades que haviam percebido. No seu jornal8, o secretário Isidoro Tamahatafandry escreveu: “Os seus corações estavam ardentes de compaixão, porque se davam conta de que era seu dever e sua responsabilidade lançar-se nesta tarefa e levá-la a cabo. Afinal, eram , na sua maioria, os primeiros baptizados de Anatananarivo. Conheciam bem a vida cristã e eram daqueles que tinham recebido a melhor formação. Viam a vontade de Deus e não podiam tornar inútil o bem que d’Ele tinham recebido”.

Chamaram Vitória Roasoamanarivo e alguns notáveis e reuniram com o Ir. Rafael, sob a direcção de Paul Rafiringa, responsável eleito do grupo. Nesse tempo em que já não havia Padres [16(64)], consideram este trabalho de animação como substituto da confissão e da penitência e colocam-se sob a protecção da Santíssima Virgem. Tendo tomado algumas medidas de organização, ouvem Vitória pedir-lhes que colaborem com o Irmão, a que m convida a entender-se com eles: “Se não formos capazes de nos entender, a nossa religião será destruída”. Iniciou uma acção de mediação que se manterá por muito tempo, não hesitando, nas discussões, em colocar frente a frente os dois partidos e a espremer o abcesso a fim de avançar sobre bases sãs.

Estabelecido o princípio, a reunião seguinte permite fixar um certo número de regras para as visitas: serão feitas em nome de Vitória e do seu cunhado - único filho católico do Primeiro Ministro -, para marcar a especificidade católica; serão gratuitas; estruturar-se-ão as comunidades locais através da eleição de um responsável.

Trata-se de uma missão na Igreja e para estes jovens, no quadro do seu movimento, de um compromisso ao mesmo tempo entre eles e para com os outros, “como um voto”, diz o seu jornal [15(63)].

Começa a aventura: sábado após sábado, reúnem-se para fazer o relatório das suas visitas; domingo após domingo ei-los cedinho pelos caminhos num raio de 15 a 20 km em redor de Anatananarivo, muitas vezes a pé, outras vezes de liteira “pour se donner du poids”. O trabalho consistia em visitar as comunidades, despertá-las, fortificá-las, instruí-las, olhar pelo funcionamento das escolas, apoiar os professores, animá-los, promover a catequese não só de crianças mas também de adultos, principalmente dos catecúmenos. Terão assim que baptizar e, bem cedo, preparar também para o matrimónio e receber o consentimento.

Mas há comunidades mais distantes e para visitá-las são necessários vários dias. Numa reunião, o presidente diz que o enviado de uma comunidade situada a 45 km está à porte, aguardando um delegado. Consultam-se e designam um membro que deve partir para o campo. “Vicente aceitou e partiu”. O secretário acrescenta: “Graças a Vós, Senhor todo-poderoso, que destes ao vosso servidor um coração amante, obediente e corajoso. Ele não pensou na distância, nas fortes chuvas de Verão nem na sua nomeação como um imprevisto; como soldado do Senhor, não deu importância a esses inconvenientes mas somente à visita que se lhe pediu que fizesse”9.

Outros serão designados para deslocações mais distantes, quer no Norte quer no Sul da província central, a fim de levar às comunidades isoladas tranquilidade e certeza de não estarem abandonadas10. Acrescente-se a tudo isso a correspondência epistolar com o Sul (Ambositra a 250 km da Capital) onde um catequista monitor mantém eficientemente a sua comunidade.

Em contrapartida, no Betsileo, depois que o responsável pela Escola Normal onde se formavam os professores, Pierre Ratsimba, deu um notável testemunho de fé corajosa, as comunidades foram reduzidas ao silêncio, devido à vontade do governador de acabar com a “oração francesa”. Pierre Ratsimba vai refugiar-se em Imerina, onde durante quinze meses participa na actividade da União Católica.

A acção dos jovens foi-se estruturando pouco a pouco. Para garantir uma continuidade no trabalho, repartem entre eles dois a dois os antigos distritos dos Padres. Acima de tudo, por iniciativa de Vitória, vão dilatar a sua associação. Até aí a sua acção devia-se apenas ao seu ardor generoso, mas era indispensável que gozassem de uma autoridade. A 25 de Janeiro de 1884, Vitória propôs que, nas quatro paróquias da Capital, se elegessem os membros da União Católica aos quais se juntariam alguns adultos prestigiados. Assim os jovens seriam por todo o lado os representantes da Igreja e a sua actividade seria autenticada. Perante o Ir. Rafael, eleito pelos cristãos e tendo uma larga esfera de animação espiritual, eles possuem, conferida pelos crentes, uma missão eclesial para os campos. Numa Igreja dos leigos é a comunidade que pela eleição delega a sua autoridade.

O grupo vai prosseguir a sua missão com perseverança. Quando recomeçam as operações de guerra - porque houve períodos de negociação -, todos se empenham em reforçar os seus sectores e Vitória irá também visitar em pessoa em domingos sucessivos nove comunidades. Será preciso que de vez em quando o responsável do grupo, Paul Rafiringa sacuda um pouco os seus colegas que afroixam e relance as conferências que eles fazem uns aos outros para se animar e recordar os valores sobre que se fundamenta a sua acção.

Cada sábado vê os jovens voltarem a encontrar-se para o balanço das suas visitas, para preparar os tempos litúrgicos, para organizar as colectas em favor dos soldados, para melhor articular o seu trabalho e o dos representantes locais.

É inegável que o carisma e o sorriso de Vitória foram decisivos para esta constância na acção. Mas é facto que, sem a acção dos jovens, nem ela nem o Ir. Rafiringa teriam podido levar a bom termo a animação da Igreja.

Quando após a assinatura do acordo de paz (Dezembro de 1885 - Março de 1886), os Padres puderam voltar a celebrar a Eucaristia de que os cristãos tinham fome, encontram uma Igreja viva, estruturada, cujos animadores tinham descoberto e porto em prática a sua missão de baptizados.

Os elementos da sua espiritualidade

Em boa verdade, os “jovens” não utilizam a palavra missão que não tinha correspondente em malgaxe. O termo francês mission era certamente conhecido e designava o conjunto da obra a que se dedicavam os Padres, os Irmãos e as Religiosas. Mas se compulsamos o material catequético11 então em uso, apercebemo-nos de que o conceito de “missão” nunca é entendido como uma tarefa a que todo o crente é chamado. Tanto a propósito do Espírito Santo ou da Igreja na explicação do Credo, como na apresentação das festas da Epifania ou do Pentecostes, a missão não aparece como um dever da vida cristã. Não faz parte da doutrina ensinada. Mas, em contrapartida, parece que pertenceu ao domínio da espiritualidade, no apelo feito aos cristãos para que dêem a conhecer a sua fé e procurem atrair os não cristãos (e protestantes...). Esse foi, aliás, um elemento da formação dada nas associações católicas, como o demonstra a reacção dos jovens no início da aventura: têm consciência de serem dos primeiros baptizados da Igreja (HUC 11, p. 61) e é a eles que é confiado aquele “negócio de Deus”, segundo a expressão repetidas vezes utilizada. É a Igreja a que pertencem e que lhes compete fazer viver: recebem o encargo do “povo de Deus”12, como diziam. A sua associação é uma componente da Igreja, não só porque foi reconhecida pelos Padres, mas pela fraternidade que nela existe. Declaram-se abertamente “católicos romanos”, que é a diferença que os distingue dos protestantes e assinala ao mesmo tempo o seu apego ao Papa13, mas é também o meio de sublinhar que, pertencendo a uma Igreja universal, recusam ser identificados com a “oração francesa”, como os acusam os adversários. No quadro do ensino recebido, esta Igreja é, para eles, o único meio de salvação, o que explica o olhar que lançam sobre as Igrejas protestantes e a sua vontade de evitar toda e qualquer imitação das mesmas, não só a nível do uso dos cânticos.

Para alimentar a sua fé, dispõem, além do “Manual do Cristãos” em malgaxe, da tradução dos quatro Evangelhos e das “Epístolas e Evangelho dos Domingos acompanhados de explicações”. Lendo algumas intervenções conservadas pela HUC, verificamos que estes textos lhes são familiares e que os citam de cor, como integraram também numerosos exemplos tirados do Antigo ou do Novo Testamento.

Em princípio, em cada reunião havia o hábito de depositar cada um o seu óbolo na caixa comum. Mas muitos são pobres e como diz o secretário: “não é que não queiram dar, mas não têm dinheiro, sendo a maior parte deles necessitados” (HUC 228, p. 155) Isso não impede que sejam feitos frequentes apelos; e vemo-los cotizarem-se, quando um deles é enviado “em missão”.

Entreajudam-se também no tocante à oração. Catorze meses após o início (23 de Agosto de 1884), o secretário intervém: “O trabalho que nós fazemos é muito bom; damos o melhor de nós próprios para glória da Igreja católica, mas vemos nos usos da Igreja e sabemos pela nossa fé, pela história da Igreja e pala Sagrada Escritura, que é o trabalho associado à oração que resulta. Vemos na história de S. Domingos que numa situação de provação para os cristãos ele se voltou para Maria e Ela ensinou-lhe o Rosário. Quando o pôs em prática, realizou-se o que pedia. Li-vos a passagem14. A Sagrada Escritura diz o mesmo acerca de Judite. Depois da leitura, os membros da UC reagiram e baixaram a cabeça; tomavam consciência de que Deus nunca abandona os que não desesperam. Decidimos pôr em prática o Rosário vivo, repartindo os mistérios na próxima semana” (HUC 201-202, p. 144). O que se fez.

Sabemos que o Rosário vivo é uma invenção de Paulina Jericot (aí por 1827) que se divulgou na Igreja: constituir um grupo de 15 pessoas pelas quais se distribuem as quinze dezenas do Rosário, recebendo cada qual um mistério a meditar na recitação durante um mês: assim todos os dias o Rosário era rezado pelo grupo.

Esta insistência na oração (individual num quadro colectivo), marcou assim o grupo. Note-se também, pela mesma altura, a proposta de relançar a Propagação da Fé nas paróquias da Capital, seguindo o sistema imaginado por Paulina Jericot. Desde 1873, os Padres tinham implantado esta Obra de que a Igreja malgaxe era beneficiária, mas que, pela oferta dos seus membros, lhe permitiam participar no esforço missionário mundial (nos Anais da Propagação da Fé, a partir de 1880, encontra-se assinalado o esforço de Madagáscar). Reavivar esta humilde colecta era marcar a pertença à Igreja católica.

No trabalho de animação dos jovens, vê-se também dar um lugar importante à leprosaria da Missão. Fundada em 1873, tinha sido a primeira tentativa de acolher os leprosos rejeitados pela sociedade. Oferecia-se-lhes um tecto e terra para aqueles que ainda podiam trabalhar: garantia-se assim a subsistência de cerca de cem pessoas.

Quando os Padres saíram, um Pastor protestante, pensando no abandono a que estes infelizes iam ser votados, foi levar-lhes uma oferta e prometeu repeti-la todas as semanas pessoalmente ou através de alguém. Mas, alertados para as suas obrigações por Vitória que tinha feito um giro pelos campos, os “jovens” tomaram a peito visitar cada domingo os leprosos: decidiram que todos, dois a dois, iriam sucessivamente rezar com eles e visitar nas suas moradas aqueles que eles muitas vezes chamavam o “tesouro de Deus”. Esta preocupação pelos mais desprotegidos encontramo-la numa saída comum (25 de Janeiro de 1885), durante a qual, com Vitória, vão dar realce, numa aldeia próxima, ao baptismo de três leprosos, que um deles havia preparado: “as pessoas das redondezas admiravam-se de nos ver ocuparmo-nos dos leprosos” (HUC 262, p. 171).

Todas as semanas, em princípio, cada um dos “jovens” fazia uma exortação aos colegas, Isidoro, o secretário, guardava o texto num dossier que desapareceu, mas o seu sucessor copiou dois no meio dos relatórios. Nesta palavra pública exprime-se aquilo que era suposto poder tocar no coração dos jovens. Assim, François Randriamamahatra, por exemplo, depois de ter recordado a festa de S. Pedro e S. Paulo celebrada na semana, insiste no apostolado, apoiando-se na palavra de Jesus: “Eu vim trazer o fogo à terra” (Lc 12, 49). Tendo evocado o exemplo dos dois Apóstolos em quem o Espírito Santo queimou aquilo que os retinha ( o medo, no caso de Pedro, a vanglória, no caso de Paulo), dirige-se aos companheiros: “Este fogo ardia já em nós, porque recebemos o Deus Espírito, mas é necessário avivá-lo... Por isso coloco a questão a cada um de vós...”.

Coloco-vos então a questão a cada um de vós, União Católica: Tomas tu parte nesta transmissão do fogo do Senhor, que já arde em ti? Se ele não arde bem e sobretudo se não passa de uma chama mortiça, tens de o fazer brilhar alto e claro. Sim, tens sempre parte nesta tarefa, a fim de cumprir a palavra do Senhor: “Eu vim trazer o fogo à terra...”, mas sobretudo actualmente. E porque digo “sobretudo actualmente”? Porque tu és do pequeno resto ao qual o Senhor faz levar o seu fogo para queimar tudo o que é impuro nesta pátria que é a tua: eliminando do coração dos homens o amor daquilo que é vão e fazendo reinar o amor a Deus somente. Não restas senão tu para levar a grande chama que secará o que é húmido para o fazer arder: és tu que hás-de fazer arder o amor de Deus no coração daqueles que diminuíram de zelo e de ardor, quer devido a falsos temores, frutos da sua imaginação, quer devido à procura de uma glória sem fundamento e sem garantia. Numa palavra, foi a ti especialmente, a ti somente, que o Senhor confiou a sua Igreja nestes dias em que Ele a purifica e põe à prova.

Que podes então fazer para te mostrares digno deste grande encargo e para bem te desempenhares desta missão inelutável? Torna mais claro no teu coração o fogo trazido pelo Senhor, avivando o teu amor a Deus, cumprindo com perfeião aquilo que tens a fazer, com a ajuda de Deus. Não tenhas em conta a tua pessoa, não te queixes das dificuldades; sobretudo não te deixes desanimar, trabalhando na vinha do Senhor; porque segundo a palavra de S. Paulo: “ Deus concorre em tudo para o bem daqueles que O amam” (Rm 8, 28) (HUC 307-310, p. 197-199).

Esta citação relativamente longa parece exprimir aquilo que os jovens viviam e queriam viver. A partida dos missionários tinha certamente sido para eles apelo a lançarem-se, mas é a sua condição de cristãos (“nós recebemos o Espírito Santo”) que os convida a se deixarem transformar para transformar os homens. Não consiste a sua missão em transmitir o fogo trazido pelo Senhor, para que ele se ateie e arda no coração dos outros?

Verifica-se que esta espiritualidade dos jovens cristãos malgaxes não se desenvolveu automaticamente: é vivida e traduz-se por reacções ou reflexões que se vão fazendo à medida que decorre a sua acção. Conscientes do seu lugar na Igreja e daquilo que receberam, empenham-se na animação da comunidade como uma das formas de assumir a sua condição de crentes. À partida, acrescentam mesmo que o seu trabalho é uma substituição da acção do Padre que eles não podem substituir e portanto - sem o dizerem - que “a caridade cobre uma multidão de pecados” (Tg 6, 20).

É em relação a Deus que eles se situam, é dos “negócios de Deus” que eles se ocupam; é Deus que dirige a sua actividade através da sua Igreja e quando um ou outro é escolhido para uma missão, não podem recusar, uma vez que, pela voz dos outros, lhes é dado um sinal de Deus.

Reconhecem-se fracos e têm necessidade de despertar e ser despertados; pelos seus amigos, o Presidente vai visitar cada um dos membros para lhes recordar as suas obrigações.

Não esquecem a oração. Há, com certeza, a oração da Igreja que eles animam e dirigem ao domingo, quer na cidade quer no campo; mas sentem a necessidade duma oração pessoal que, através do Rosário vivo, se apoiará na dos outros.

Compreenderam que o serviço de Deus passa pela preocupação com os mais pobres. A sua solicitude para com os leprosos é uma pedra de toque e a visita sucessiva que lhes fazem todos os membros parece-lhes emblemática.

No fundo, podemos porventura resumir melhor uma vida cristã inspirada no Evangelho, fundada sobre Deus e orientada para os outros? Com a preocupação pelos outros e a sua relação com Deus (6, 1-7; 11), donde brota a verdadeira caridade (7, 12), para pôr em prática as duas exortações missionárias sobre o sal e a luz (5, 13-16) não é acaso levado à prática o cerne do sermão da montanha (Mt 5, 20-48)?

A história não se ficou por aí. Ao regressarem os Padres, o Bispo irá convidá-los a saber aproveitar o dinamismo dos leigos; nos oito anos que se seguem sem aumentar significativamente o número dos missionários (48 a 51) o número dos baptizados duplicará... E ao eclodia a segunda guerra franco-malgaxe, os leigos vão novamente animar a sua Igreja: encontramos entre eles muitos daqueles que tinham trabalhado em 1883-1886.

A colonização irá quebrar este impulso. Os Malgaxes tornam-se “sujets” franceses e já não há motivo para lhes deixar criatividade e iniciativas. Os Padres são, aos olhos da administração, os únicos responsáveis pela sua Igreja. Só em 1914 reaparecerão os movimentos juvenis. Para os incentivar recordar-se-lhes-ão os antepassados que de colaboradores tinham passado à categoria de auxiliares.

Por conseguinte, tendo permanecido vivo o sentido missionário, muitos cristãos deslocados por emigração ou por motivos administrativos foram os iniciadores de novas comunidades. Não é raro ainda hoje que um professor, um enfermeiro enviado para uma região distante faça nascer uma pequena igreja... É que aquilo que têm no coração não é diferente do que tinham os seus antepassados.

(Do periódico: Aspectes du christianisme à Madagascar, n. 48, Fianarantsoa, 2000)

1 Designam-se por “jovens”, ainda que tenham entre 25 e 35 anos; na sociedade malgaxe é-se “pessoa reconhecida” a partir dos 40 anos.

2 Pietro Lupo: Le Catholicisme à Madagáscar à la fin du XIXéme siècle - Les Laïcs - Documents 1883-1886, multigraphie. Secrétariat de la Conférence Episcopale de Madagascar, Tananarive 1977. O texto da História da União Católica encontra-se em malgaxe. Traduzimos as citações que apresentamos.

3 Quando da segunda guerra franco-malgaxe, repete-se a mesma experiência da Igreja dos leigos. Possuímos o “diário” mantido por aquele que foi eleito “Prefeito da Igreja”, Paul Ratiringa; um manuscrito de 800 páginas, em que o responsável registava os acontecimentos, as reuniões, as informações recebidas, as conversas e palestras que ele tinha feito. Este texto foi estudado pelo Pe. Lupo para a sua tese na Sorbonne e publicado: Une Église de laïcs à Madagascar. Les catholiques pendant la guerre coloniale de 1894-1895 d’après l’Histoire-Journal de Paul Ratiringa (1894-1895) Editions de Centre National de la Recherche Scientifique, Paris 1990.

Pode ler-se também François Noiret: Pierre Ratximba (1894-1919). Le fondateur oublié de l’Église de Fianarantsoa (Madagascar) Karthala - Paris et Ambozonlany - Anatananarivo, 1999. Este cristão malgaxe participou durante 18 meses na aventura dos “jovens”, quando teve de se refugiar em Anatananarivo. É uma bela figura de cristão.

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4 Cf. B. Hübsch ( Sob a direcção de), Madagascar et le christianisme. Histoire écumenique, ACCT, Édition Ambozontam - Karthala, Paris 1993.

5 P. Lupo, Les laïcs, p. 16.

6 Lupo, Les laïcs, p. 19 et Document 2, p.220.

7 Victoire Rasoamanarivo (1849-1894) foi beatificada a 30 de Abril de 1989 por João Paulo II em Anatananarivo. Sobre a maneira como Victoire é apresenta na HUC, ver B. Hüsbsch, Victoire et jeunes hommes. Aspects du Christianisme à Madagascar (Revista do Instituto Superior de Teologia de Ambatoroka - Anatananarivo, nova série, I. 8, pp. 345-358 - 1986).

8 Para citar a HUC, indicamos novamente as páginas do manuscrito, o segundo algarismo é o da paginação do Pe. Lupo, Les laïcs.

9 “Dois de nós foram designados por todos. Eles aceitaram, uma vez que uma eleição por parte de todos era uma designação por Deus: não se a podia recusar”. (HUC 120, p. 111).

10 “Depois da leitura da partilha, diz o secretário, cada um manifesta a sua alegria: ninguém se lamentou das distâncias a percorrer, mas cada um prometeu trabalhar no lugar para onde foi nomeado segundo a vontade de Deus.

11 Cf. B. Hübsch, “La mission dans la catechèse à Madagascar” (1865-1957), em Iconographie, catéchisme et missions, Actes du colloque d’Histoire missionnaire de Louvan-la-Neuve (Stembro 1983), CREDIC Lyon, 1984.

12 A expressão aparece duas vezes (HUC 149, p.121; e 219, p. 151). Por exemplo: “Todos nós fomos designados e eleitos pelas nossas paróquias para dirigir o povo de Deus, de forma que sempre que há algo a fazer ou a propor aos cristãos, falamos disso aqui diante de todos para reflectir dobre o que é bom fazer. É o que querem os cristãos de nós eleitos e é o que permite melhorar a nossa acção. O nosso papel é difícil e nós devemos examiná-lo em conjunto.

13 “Que é a Igreja?”, lê-se no pequeno catecismo. “É o conjunto dos cristãos que obedecem ao Papa”.

14 O secretário leu uma pequena obra sobre as Festas de Santa Maria publicado alguns anos antes. A tradução católica do livro de Judite tinha saído em 1878.