O SÉCULO DO MARTÍRIO

André Tessarolo (IS)

O martírio não é capítulo exclusivo do cristianismo antigo. O Papa Wojtyla o propõe como realidade contemporânea, que se cruza com sua própria experiência de jovem operário, quando partilhou perigos e angústias de tantos companheiros de trabalho; martírio presente, ainda, em sua experiência de jovem sacerdote, quando presenciou o sacrifício de tantos homens e mulheres que, por causa da fé, arriscavam perder o emprego, ser encarcerados ou, até mesmo, condenados à morte.

Daqui provém sua solicitude e sua insistência em que se resgate a memória dos mártires de nosso tempo. Na encíclica Tertio millennio adveniente, já em 1996, podia-se ler: “Em nosso século retornam os mártires, tantas vezes anônimos, como militi ignoti (combatentes desconhecidos) da grande causa de Deus. No término do segundo milênio, a Igreja se faz novamente Igreja dos mártires. Não podemos deixar perder-se o testemunho deles!” (TMA nn. 37 e 43).

Dando continuidade a este apelo de Karol Wojtyla, muitas Igrejas locais fizeram uma cuidadosa pesquisa para recuperar testemunhos autênticos e, no Vaticano, foi constituída a Comissão dos Novos Mártires. Esta comissão, já no começo do ano 2000, tinha elencado mais de 12.000 casos de cristãos que deram a vida por causa da fé, ao longo do século XX. Uma síntese significativa destes fatos encontra-se no livro “O século do martírio” (Il secolo del martirio, ed. Mondadori, 2000) de André Riccardi. Aliás, nesta publicação se inspira o presente artigo.

O Papa voltou a este assunto no contexto do Grande Jubileu, particularmente na solene celebração de 7 de maio de 2000, no Coliseu. Na ocasião, o Papa conduziu um culto intencionalmente ecumênico: associou aos mártires dos primeiros séculos todos os outros que - provindo de Igrejas diferentes (católicos, ortodoxos, protestantes) - testemunharam juntos a mesma fé, nas prisões e campos de extermínio, redescobrindo o sentido verdadeiro e fecundo do ecumenismo.

Neste contexto ainda, o Papa não poderia esquecer os muitos “mártires anônimos”, vítimas de violência homicida pelo simples fato de pertencerem a outra etnia, cultura ou corrente política. Perseguições marcadas por ódio feroz, desencadeadas por ideologias aberrantes e fanáticas como o comunismo soviético (na Rússia) e o racismo nazista (na Alemanha). Dois movimentos que ainda impressionam, por sua furiosa obstinação e pelas enormes perseguições que promoveram. A primeira, flagelou a “Santa Rússia” com devastações e deportações sem fim; a segunda, marcada pela adoração de seu “líder” (führer), efetuou-se como programa de eliminação física e extermínio do povo hebraico, sem contar as humilhações sofridas pelos que se negavam obedecer cegamente às ordens. Dois fenômenos arrasadores, que deixaram uma esteira de morte e devastação, mas muitas vezes mantidos às ocultas ou até mistificados por alguns que se dizem “intelectuais”, mas são incapazes de um discernimento histórico conseqüente.

Foi a este silêncio farisaico que o Papa quis reagir, convidando-nos a resgatar a memória dos novos mártires. O historiador André Riccardi - fundador da Comunidade de Santo Egídio (Roma) - acolheu o convite do Papa: valendo-se da documentação coletada pela Comissão vaticana para os novos mártires, ele nos brindou com o belo volume “O século do martírio”, que traz o subtítulo: “um holocausto cristão” (ed. Mondadori, 2000).

Este livro não pretende ser uma nova “história da Igreja do século XX”. Quer apenas prestar um serviço à memória de tantos homens e mulheres, mortos pelo simples fato de serem cristãos. A narração é ampla e bem documentada pelas duas entidades indicadas (Comissão vaticana dos Novos Mártires e Comunidade de Santo Egídio); depois enfoca vários países e diferentes momentos do século passado, fornecendo um panorama vasto e complexo do fenômeno. Neste artigo, nos limitamos a expor as principais características da perseguição religiosa na Rússia e Alemanha. No que toca a outros países, assinalamos apenas alguns dados essenciais.

O século soviético

Terminada a introdução, o livro nos abre seu primeiro capítulo: “O século soviético”. O autor não usa meio-termos. É muito explícito. A política anti-religiosa da URSS não visava só a eliminação de certos abusos na conduta dos cidadãos, mas pretendia erradicar toda e qualquer prática religiosa da sociedade (p. 27). Era preciso forjar - a todo custo! - o chamado homem soviético, ao qual não era consentido ter convicções ou comportamentos estranhos à cultura política soviética. Certamente, a religião não fazia parte desta cultura… Daí a necessidade - ditada pelo Partido Comunista - de eliminar todo e qualquer traço de religião.

O instrumento que os bolcheviques mais usaram para “purgar” a sociedade das influências da religião, foi a morte. E os crentes, de qualquer credo religioso, se tornaram o terreno preferido no qual o “partido absoluto” se divertia, dando vasão ao seu sádico furor. Ao longo de aproximadamente 70 anos (1917-1989), esta carnificina generalizada deixou cifras impressionantes. Quase todos os monges ortodoxos - sobretudo os que se ordenaram sacerdotes antes de 1917 ou logo depois deste ano - foram perseguidos. Os suplícios eram monstruosos. Entre 1917 e 1941, 300 bispos foram submetidos a medidas restritivas e mais de 250 foram assassinados. Segundo a Comissão de Reabilitação Civil do Patriarcado de Moscou (Igreja Ortodoxa Russa), até 1941 cerca de 350.000 pessoas sofreram repressão por motivo de fé. Só no ano de 1937 ocorreram 150.000 casos de repressão, dentre os quais 80.000 fuzilamentos (p. 34). Alexander Jakovlev - presidente da mencionada comissão - nos dá a cifra de membros do clero ortodoxo (monjes e sacerdotes) condenados à morte de 1917 a 1980: 200.000 religiosos. As prisões também são muitas: no espaço de apenas dois anos (1937-1938) foram presos 165.000 religiosos, dos quais 105.000 acabaram fuzilados.

Igual destino tocou também a sacerdotes e bispos, tanto do clero católico como de outras confissões religiosas. Apesar de serem números gerais (pedindo detalhes ulteriores), os cálculos revelam uma perseguição de massa e indicam a exata opção política do governo soviético: anular a Igreja, eliminando seus líderes espirituais (p. 33). “Religião e comunismo - afirma Bucharin - são incompatíveis, quer na teoria, quer na prática”. Por isso, a luta anti-religiosa atingia a todas as religiões: “É uma luta decisiva contra o pope (guia espiritual), seja este chamado de pastor, padre, rabino, patriarca ou papa; luta igualmente contra Deus, seja este chamado de Javé, Cristo, Buda ou Alá”(p. 30).

Um dos lugares de maior sofrimento para os fiéis russos no período da perseguição, foi a Ilha de Solovki, no Mar Báltico. Era conhecida como o modelo de todos os lager (campos de deportação). Esta prisão foi construída sobre os restos de um antigo mosteiro do século XV, ambiente de renomado vigor espiritual em toda a Rússia: o lugar que outrora falava de Deus, cheio de capelas, ícones e monges em prece, foi adaptado como área carcerária. Tornou-se um dos lugares de martírio mais terríveis conhecidos na História (p. 35). Se antes da revolução de 1917 o santo mosteiro brilhava aos olhos do visitante como um lugar “de beleza radiante”, é descrito mais tarde por Olga Jafa - deportada para este mesmo lugar 25 depois - com as seguintes palavras: “Ao entardecer, o barco-a-vapor chegou a Solovki. Eles nos levaram por uma ponte e, após 25 anos, pude rever aquela ilha de radiante beleza. Mas… meu Deus! Como tinha mudado! Não havia mais a cúpula, nem a cruz… Naquele espaço quadrangular surgia um outro tipo de beleza solene, talvez mais elevada e inspirada, que falava de seu longo e glorioso passado e de um destino coroado pelo martírio. Solovki tinha se tornado o reino dos infelizes”(p. 35).

Neste “reino dos infelizes” a vida era muito dura, ainda mais com o gélido clima polar. Em 1920 o mosteiro foi adaptado como campo de concentração para os prisioneiros da guerra civil. Em 1923 foi transformado em lager para fins especiais.

De 1920 a 1939 o local hospedou mais de um milhão de detidos. Assim, o grande santuário tornou-se meta de peregrinação forçada para bispos, padres, monges e leigos. Os deportados pertenciam a diferentes confissões religiosas: o mufti muçulmano da mesquita de Moscou, o arcebispo-primaz da Igreja Ortodoxa da Geórgia, o exarca católico Fedorov, etc. No mesmo lager se encontrava o administrador apostólico dos católicos de rito armeno, monsenhor Akop Bakaratian, acusado de fundar uma associação anti-soviética e de haver “celebrado em segredo ritos teológicos (sic) e religiosos”(p. 36). Os bolcheviques quiseram transformar este “santuário do obscurantismo” num lugar onde os cidadãos que cometeram crimes contra o regime “fossem re-educados” e estimulados a uma “nova vida” (assim dizia o Mensageiro da Carelia).

E, contudo, no campo de concentração se continuava a rezar. Em 1929 foram proibidas as celebrações em público. Então um sacerdote teve a idéia de celebrar dentro da barraca, de teto muito baixo, onde só se podia permanecer de joelhos. Mesmo assim, eram vários os sacerdotes que vinham rezar ali, todos os dias. Neste ambiente de sofrimento, se criava um clima de fraternidade entre os diferentes fiéis: católicos e ortodoxos, polacos e russos, etc.

Uma testemunha daqueles dias anotou: “Somando os esforços, trabalham juntos um bispo católico ainda jovem e um bispo ortodoxo, velho de idade mas forte de espírito… Quem de nós tiver a sorte de sobreviver, deverá dar testemunho do que vemos agora: o renascer da fé pura dos primeiros cristãos, a união das Igrejas na pessoa de bispos católicos e ortodoxos, união no amor e na humildade”(p. 37).

Como Solovki, também outros campos de concentração espalhados pela longínqua Sibéria tiveram fases diversas. Um dos períodos mais duros aconteceu a partir de 1922, com 6.000 pessoas incluídas na repressão. Em 1923 as prisões diminuíram para 2.469. Mas depois, de 1931 a 1932, os comunistas fizeram uso massivo da violência, provocando numerosas vítimas entre os fiéis ortodoxos, católicos, luteranos, muçulmanos e budistas. Breve intervalo aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando o exército foi destinado a combater a invasão alemã. Depois, sob o comando de Krushev, enquanto o campo político se distendia, recrudescia a aspereza contra a religião. Mas também este personagem se esvaneceu rápido, como um meteoro que passa, e a prática religiosa foi retomada gradativamente, apesar das dificuldades.

Finalizamos estas linhas sobre a persequição promovida pelo comunismo soviético, evocando a figura comovente do arcebispo Josef Slipyj - metropolita de Leópolis para os católicos de rito ucraniano (na Ucrânia ocidental). Eleito sucessor de Andrej Szeptyckyj - metropolita precedente - em 1 de novembro de 1944, o arcebispo Slipyj foi aprisionado poucos meses depois, em abril de 1945. Com ele foram à prisão mais dois bispos, vinte padres, dois diáconos, três seminaristas e cinco leigos. Ele mesmo nos conta, sobre seu encarceramento em Kiev: “Eles me submeteram noite e dia a contínuos interrogatórios. Fui reduzido a condições tão deploráveis, a ponto de literalmente não me agüentar de pé.

Quando me levavam de um juiz a outro, tinham que segurar-me para que eu não caísse ao chão. Certamente, a fome, as poucas horas dormidas e os intermináveis e contínuos interrogatórios podem destruir um homem ou levá-lo à loucura… Para mim, foi uma graça divina ter podido resistir àqueles tormentos”. No Natal de 1954 o arcebispo Slipyj foi condenado a oito anos de trabalho forçado, na Sibéria. Na ocasião, ele escreveu aos fiéis de sua diocese: “Distante de vocês milhares de kilômetros, no frio das geleiras polares, como me seria possível atravessar os ventos da nevasca? Mas um coração cheio de amor não conhece barreiras, nem confins… Ao menos em pensamento, posso voar além dos gelos eternos e das florestas arrasadas, para lhes comunicar a Boa-Nova do nascimento de Cristo e exortar o zelo de todos pela festa que celebramos. Enquanto isto, suportamos nossos sofrimentos e dores. Aqui nesta tundra gelada, quero oferecer a Deus, por todos vocês, meus sacrifícios e penas. Quero erguer minha prece com palavras apropriadas, de modo que todos - repletos de fé inabalável nas promessas de Cristo - possam contemplá-lo resplandecente no Presépio, mesmo se vocês não se encontrem numa igreja, estando em casa ou em qualquer outro lugar”(p. 56).

A idolatria nazista

Outra página negra da luta anti-religiosa no século XX é assinada pelo Partido Nazista Social-Democrata alemão, guiado por Adolf Hitler, cujo ideólogo era Alfred Rosenberg, autor de O mito do século XX. Já em 1937 o ministro alemão para assuntos religiosos - Hans Kerrl - mostrou quanto o movimento nazista era incompatível com a fé cristã: “Nosso Partido se fundamenta em um cristianismo positivo, que é o nacional-socialismo. O verdeiro cristianismo é representado pelo Partido. O führer é, pois, o protagonista de uma nova revelação”(p. 63).

A luta anti-religiosa nazista começou logo que Hitler alcançou o poder (1933). Sua expressão foi o terrorismo da SS - a Guarda de Repressão: terrorismo não casual, mas sistemático e contínuo, visando eliminar fisicamente todos os que eram considerados um obstáculo às intenção do partido. Aos 30 de junho de 1934 fizeram a chamada “noite dos facões” (ação violenta contra um partido rival), dando pretesto à eliminação dos católicos, à supressão da livre imprensa e à suspensão do ensino religioso nas escolas.

Além disso, é publicado um decreto “para a defesa do Partido e do Estado” que autorizava todo tipo de arbitrariedades, a dano dos cidadãos. Começa daí uma série de perseguições, violências, prisões, deportações e condenações à morte, que só se concluirão com o fim do regime nazista, em 1945. São conhecidas as deportações arbitrárias dos cidadãos suspeitos, sobretudo as deportações em massa dos judeus de Varsóvia, Praga, Viena, Roma, etc. Tudo isto culminou no Holocausto (Shoà, em hebraico) que eliminou milhões de indivíduos - entre os quais 6.000.000 de hebreus - nas famigeradas câmaras de gás.

Em relação à Igreja católica, Hitler usa eventualmente outro método. Enraivecido com a oposição ideológica da Igreja, promovia campanhas escandalosas: acusava padres e religiosos de abusos sexuais, ou de tráfico de valores ao exterior - como aconteceu ao provincial dehoniano Stanislaus Loh, que foi condenado e morreu na prisão em 1941 (cf. Dehoniana n. 3, Ano 2000, p. 107-112).

Com a divinização de seu chefe e da raça ariana, o nazismo superou qualquer outro fanatismo nacionalista, mesmo entre os mais exaltados. A propósito, é chocante a declaração da enfermeira alemã que dava assistência aos “experimentos médicos” em Dachau, um dos campos de concentração, e que injetou ácido fênico nas veias do carmelita Frei Tito Brandsma. Ela mesma nos conta: “Quando fiz 16 anos, fui a Berlin como enfermeira da Cruz Vermelha. Lá tivemos que jurar que considerávamos Hitler o nosso deus e assinamos um ato de repúdio às práticas da Igreja. Além disso, todos os judeus deveriam ser exterminados. Assim iniciava a nossa formação”(p. 65).

O neo-paganismo nazista logo provocou preocupações entre os bispos católicos. Entre os que protestaram contra o iníquo regime, destacam-se Dom Faulhaber, cardeal de Munique; Dom Preysing, arcebispo de Berlin; Dom Galen e outros. O Papa Pio XI publicou a encíclica Mit brennender Sorge (= Com urgente preocupação) em 1937, onde declara que a fé cristã não pode admitir a divinização de uma raça ou de um Estado. No ano seguinte, quando Hitler visitava a Itália, o mesmo Papa Pio XI se retirou a Castel Gandolfo e declarou sua tristeza ao ver em Roma “a insígnia de uma outra cruz, que não era a cruz de Cristo” (falava da cruz-suástica, símbolo do nazismo).

Importa lembrar, ainda, que o clero alemão daqueles tempos foi um dos grupos mais perseguidos. Nos doze anos de regime hitleriano, 12.000 sacerdotes sofreram ameaças e perseguições. A diocese de Paderborn é um exemplo: dos seus 1.400 padres, 868 entraram em conflito com o partido nazista, 67 passaram anos no cárcere e 23 foram enviados a campos de concentração. O mesmo aconteceu em Trier. Recentemente, publicou-se o “Martirológio da Igreja na Alemanha - Século XX”. O volume registra 164 sacerdotes, 60 religiosos, 6 pessoas consagradas e 118 leigos, todos mortos sob o regime nazista, por causa da fé. Apesar dos muitos cristãos que cederam ao nazismo - tomados pelo medo ou por indignas motivações - há uma longa lista de figuras corajosas e exemplares.

Destas figuras, é impressionante o testemunho do teólogo luterano Dietrich Bonhöffer. Ele afrontou a legislação nazista, que decretava a raça ariana como única e oficial: era o “parágrafo ariano” da Lei, imposta a todos os cidadãos e instituições. Quando a sua Igreja aceitou este parágrafo, o pastor Bonhöffer protestou publicamente. Para ele, o anti-semitismo era absurdo: “Do ponto de vista evangélico, excluir da nossa Igreja os fiéis de origem hebriaca é algo impensável!”. Resistindo publicamente ao racismo e testemunhando contra “as traições da Igreja”, morreu condenado à forca em 1945, depois de um processo-farsa. O médico assistente da execução declarou: “Nos meus quase 50 anos de carreira, nunca vi um homem morrer com tanta resignação”(p. 79).

Outra figura emblemática é Pe. Bernard Lichtenberg, prepósito da catedral de Berlin. De 1933 até sua morte, testemunhou uma contínua resistência ao nazismo. Presidente da Liga Católica Alemã pela Paz, denunciou os nazistas antes mesmo que estes chegassem ao poder. Por este motivo, Goebbels quis vê-lo linchado. Mas o sacerdote replicou, acusando Goebbels de difamação. Em 1935 - quando vieram a público as atrocidades praticadas no campo de concentração de Esterwegen - padre Bernard foi pessoalmente ao chefe da Gestapo (a temida polícia de investigação nazista) e entregou-lhe uma nota de protesto. Na manhã seguinte à “noite dos cristais” (ataque noturno efetuado contra os judeus), a polícia nazista cercou a catedral para abafar a voz do audacioso sacerdote. Ele, porém, não podia calar-se diante dos fatos. À tarde, abriu o ofício litúrgico com estas palavras: “O que aconteceu na noite passada, todos nós sabemos. O que acontecerá amanhã, não podemos saber. Mas o que ocorreu hoje, nós presenciamos: lá fora, queima a Sinagoga… Também ela é casa de Deus!”(p. 77).

Preso em 1941, ele declarou no julgamento que preferia obeder a Deus, que aos homens. Afirmou que a deportação dos judeus é inconciliável com a moral cristã e pediu que fosse levado junto com eles. Denunciou as violências que sofreu na prisão nazista, e acrescentou: “Para mim, ter ficado entre os muros da prisão foi um perigo cheio de graças. Agradeço a Deus, por não ter caído em desespero. Há horas em que até um padre é tentado a desesperar-se”(p. 78). Depois de dois anos de duro cárcere, Pe. Bernard Lichtenberg morreu de exaustão e fraqueza, quando era transferido para o campo de concentração em Dachau. Era o dia 3 de novembro de 1943.

Muitas vezes e em circuntâncias diversas, o martírio uniu no mesmo testemunho cristãos de Igrejas diferentes. É o caso, por exemplo, dos quatro eclesiásticos que foram presos, na primavera de 1942, em Lubeck (Alemanha). Karl Friedrich Stellbrink, pastor luterano, foi encarcerado por causa de suas pregações de protesto. Junto, foi preso o seu amigo católico Johannes Prassek, vice-pároco do Sagrado Coração. Em seguida, foram levados mais dois padres da mesma paróquia. Em julho de 1943 foram condenados à morte. Enquanto esperavam a execução, clamaram juntos: “Fidelidade eterna a Cristo, nosso Rei”. Ao lado destes, recordamos também M. J. Metzger, pioneiro do ecumenismo e animador do movimento de resistência anti-nazista Rosa Branca, que agrupava católicos, luteranos e um ortodoxo. Foram decapitados em 1944: o ecumenismo que praticavam era considerado contrário ao nazismo.

Outro testemunho de envolvimento ecumênico nos vem do padre italiano Roberto Angeli. Prisioneiro em Dachau, escreveu-nos a experiência vivida na Barraca n. 26 daquele campo de concentração: “em meio a presbíteros católicos de vários países, com pastores protestantes e padres ortodoxos - todos sacerdotes em estado puro, sem poderes, nem aparências ou privilégios, desgastados pela fome e frio, torturados pelo piolho e pelo terror, sem nenhuma dignidade senão aquela invisível do sacerdócio - aprendemos a captar o essencial da vida e da fé”(p. 75).

A perseguição continua

As perseguições bolchevique e hitleriana - que acabamos de citar - são sentidas ainda hoje e, no caso de algumas pessoas da época, constituem uma lembrança viva. O fenômeno, contudo, não se restringe à Rússia e à Alemanha. Ainda no curso da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) os alemães ocuparam nações do Leste e Oeste e, assim, exportaram a outros países a perseguição aos hebreus e à Igreja católica. Neste artigo, não alongamos os detalhes. Basta citar o caso da Polônia, com seus 108 mártires beatificados por João Paulo II (Varsóvia, 13-06-1999). Outro nome polaco, um símbolo para o Povo de Deus, é São Maximiliano Kolbe, chamado “mártire voluntário da caridade”.

Em 1945, apenas encerrada a II Guerra, a perseguição nazista dá lugar à bolchevique e começa um novo calvário para os países do Leste Europeu: Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Países Bálticos, etc. Enquanto em Roma se celebrava o Concílio Vaticano II, nestes países a situação religiosa era bem outra… Um retrato dramático daquele tempo se resume nestes nomes:

- Aloísio Stepinac, bispo, várias vezes prisioneiro sob o regime comunista, morto na Zagábria em 1959.

- Josef Mindszenty, arcebispo de Esztergom (Hungria), perseguido em 1961 e morto em 1975.

- Josef Beran, arcebispo de Praga (Tchecoslováquia), aprisionado e morto em 1961, em lugar desconhecido.

- Stefan Wyszynski, arcebispo de Varsóvia, sofreu várias tensões sob o governo comunista na Polônia, morreu em 1981.

Um caso particular foi a perseguição religiosa na Espanha, durante a chamada “Segunda República” (1936). A repressão era ligada tanto à ideologia comunista quanto ao movimento anarquista, agressivamente anti-católico (tornamos ao assunto, quando apresentaremos o Pe. Juan Maria de la Cruz, primeiro dehoniano beatificado).

Martírio nos países de missão

Na história do martírio recente, ocupam várias páginas os casos de perseguição em território missionário. Um caso emblemático, é aquele dos mártires de Alto Alegre (Brasil), cujo centenário celebrou-se no começo de 2001 (cf. L’Osservatore Romano, 12-03-2001, p. 4). Constam entre os primeiros mártires do século XX: 4 missionários capuchinhos da Lombardia (Itália), 7 Irmãs de Maria Rubatto e mais de 200 fiéis, massacrados pelos índios. Neste caso, o martírio é freqüentemente ligado a movimentos anti-colonialistas, que viam nos missionários estrangeiros um impecilho à plena independência. De fato, muitas destas missões eram apoiadas por países estrangeiros que pretendiam estender o seu poder colonial e comercial. Ainda que o Vaticano tenha alertado os missionários a não se envolverem em questões políticas, nem sempre isto foi possível.

Numa situação semelhante, registrou-se o primeiro grupo de mártires na China, em 1900. Diversas potências européias, com o pretexto de difundir sua colonização em Pequim, abriram “delegações”. Embora consideradas “civis”, tais delegações serviam como canal para se introduzir o comércio, a cultura e a influência política ocidental. Os chineses reagiram violentamente. O ataque foi chamado “Revolta dos Boxers” e era considerado uma reação pública contra a “penetração européia”.

Além do cerco às delegações européias em geral, os alvos mais atingidos foram os missionários e os próprios católicos chineses. Relatório das mortes: 5 bispos, 31 religiosos europeus, 100 religiosos chineses, 190 pastores protestantes com suas famílias e 30.000 fiéis chineses, na maioria católicos. Sabemos que foi um testemunho livre e total, porque o Edito Imperial que decretou a perseguição (01-07-1900) garantia a vida aos chineses que renegassem a fé cristã. Estes fatos tiveram conseqüências negativas por vários anos seguidos. Depois, quando houve a invasão japonesa na área (1937-1945), a situação se agravou ainda mais.

Olhando os países vizinhos, citamos: 600 cristãos mortos na Coréia (1901), vários mártires na Oceania (1904), o massacre dos missionários do PIME (1941), etc. Discurso à parte merecem os mártires da África, onde a perseguição explodia quase sempre durante as guerras pela independência do território local. Particularmente violenta foi a perseguição ocorrida no Congo em 1964, na qual morreram 28 missionários dehonianos, entre eles Dom Joseph Wittebols - bispo de Wamba - e o Pe. Bernardo Longo, cujo processo de beatificação já foi encaminhado.

Memória e profecia

O estudo das perseguições e martírios do século XX nos desvenda uma face nova do cristianismo contemporâneo. Histórias simples ou complexas, mergulhadas no contexto vivido pelos povos em questão. Algumas constituem casos pessoais, muito diferentes entre si. Mas juntas, formam um grande mosaico: falam das dores e esperanças de pessoas que, a seu modo, retratam a fé e os crentes do nosso tempo. Conhecendo suas histórias, podemos nos perguntar: Como viveram aqueles momentos? Quê sentimentos traziam no coração? Quais as perspectivam que nos abrem? Contudo, o que sofreram em situações tão desumanas não pode resumir-se numa única resposta.

Podemos colher deles a vida espiritual bem cultivada, que os sustentava em situações dolorosas e lhes alimentava um resto de esperança.

Falando de esperança, o arcebispo Benjamim - metropolita ortodoxo de Petersburg - escreveu na prisão estas palavras, numa carta ao seu vigário episcopal: “Eis que me vem a possibilidade de sofrer por amor de Cristo! Sofrer é duro, pesado… Mas a medida de nossas forças é compensada pela abundante consolação divina. É difícil atravessar estas águas revoltas do Rubicão e entregar-se todo à vontade de Deus. Mas quando damos o passo, nos sentimos cheios de consolação”(p. 40).

De fato, a narrativa destes mártires conjuga fraqueza e vitória: “Exatamente em condições de fraqueza, estes cristãos manifestaram uma particular força moral e espiritual: servindo ao próximo e à Igreja, não renunciaram à fé ou às suas convicções para preservar a segurança e assegurar a própria sobrevivência”.

Ao contrário: manifestaram um vigor inesperado, em momentos de grande risco e estrema debilidade. Trata-se de um dado real do cristianismo recente. Nós, que somos cristãos do século XXI, deveríamos refletir atentamente sobre tais fatos, para descobrir qual seria a “força” da fé que hoje vivemos.

Com certeza, refletir sobre o martírio é compreender, sob nova luz, o mistério de Cristo morto e ressuscitado. A memória destes mártires não deve ser uma “biografia de heróis”, mas sim a história de vidas provadas na fé, atingidas pela violência e iluminadas pelo dom da esperança, que é uma virtude teologal. Muito sugestiva a esse respeito, é a palavra A. Riccardi na abertura do livro O século do martírio.

O autor fala de André Jarlan, morto pela polícia chilena em 1984, em um confronto na periferia de Santiago: “Foi encontrado com a cabeça reclinada sobre a Bíblia, aberta à página que ele estava lendo: Das profundezas, ó Senhor, eu grito: escuta o meu clamor! (Sl 129).

André Jarlan arriscou sua vida, ao partilhar as graves tensões que pesavam no bairro onde morava. Uma de suas últimas cartas ilustra a idéia que um cristão tem da vida, uma vida voltada ao testemunho: Há quem tire a vida do outro… Mas só produz vida, quem oferece vida - escreveu. Para nós a ressurreição não é um mito, mas uma realidade.

Este é o evento que celebramos em cada Eucaristia: nos confirma que vale a pena dar a vida pelos outros e nos compromete a fazê-lo”.

(Tradução do italiano: Marcial Maçaneiro)