VIDA DA CONGREGAÇÃO

OUTROS MÁRTIRES DEHONIANOS

Stefan Tertünte (GE)

O martírio cristão não se limita aos primeiros séculos mas é uma realidade contemporânea que necessita ser resgatada. Para nós a oportunidade surgiu por ocasião da beatificação do P. Juan Maria.

No ensejo desta festa foi divulgada uma lista de outros confrades que, de alguma forma padeceram o martírio. A vida destas pessoas já foi publicada em breves biografias no site dehoniano da Internet. Aqui agrupamos algumas destas biografias, em forma sucinta. Servimo-nos da obra do P. Bernard Bothe “Sacerdotes mártires do Sagrado Coração de Jesus”, corroborada por outras fontes.

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Vítimas do terror nazista

P. Wampach e P. Stoffels

Estou nas mãos de Deus. Um sacerdote católico deve sempre sentir orgulho em poder carregar a cruz de seu mestre. Meu consolo está na oração e na união com Deus e em teu amor por mim” (carta do P. Stoffels, do campo de concentração de Dachau à sua irmã).

O P. Joseph Benedikt Stoffels (*13.01.1885, em Itzig, Luxemburgo) e o P. Nicolas Antonius Wampach (*03.11.1919, em Bilsdorf, Luxembugo), ambos dehonianos, trabalhavam na missão luxemburguesa em Paris, sediada na Igreja de São José Operário. O P. Stoffels pode ser considerado o fundador desta missão, de modo que, em 1838, ele recebe a ajuda do P. Wampach.

O P.Bothe escreve a respeito deles:

“Em 1940, quando os alemães invadiram o Luxemburgo e muita gente fugia para Paris, os padres dehonianos passaram a prestar amparo a este prófugos e ajudaram muitos a voltar para Luxemburgo. Um jornal da época escreve: trata-se de um trabalho meramente caritativo. A Gestapo viu nisso uma rede de espionagem. Depois de muitos interrogatórios, os dois padres foram presos a 7 de março de 1941 e foram primeiro mandados para o campo de concentração de Buchenwald, e depois para Dachau”.

Oficialmente morreram de doenças: bronquite, angina... As cinzas do P. Stoffels foram mandadas a seus parentes. Nestes casos os funerais deviam ser feitos sob a vigilância da Gestapo, sem a participação da comunidade paroquial, quase clandestinamente. Isto foi a 31 de agosto de 1942.

“Somente 40 anos após soube-se que os dois padres tinham sido levados para o castelo de Hartheim, na Áustria, junto com outros dois padres luxemburgueses. O castelo fica perto de Linz, a 260 km de Dachau. Dispunha de uma câmara de gás para diversas experiências. As vítimas eram convidadas a desnudarem-se, de pois levadas para debaixo de uma ducha e morriam pelo gás que saía das mesmas duchas”. (Bothe, 21)

O castelo de Hartheim integrava o programa nazista de eutanásia. Ali, doentes e deficientes foram submetidos às mais diversas e cruéis experiências antes de morrer pelo gás. P. Stoffels, que sofria do pulmão, foi transferido como inválido a Hartheim. Mais tarde as câmaras serviram para experimentar os diferentes gases asfixiantes. Isto figura também numa carta do doutor Rascher a Himler na qual ele fala de Dachau e Hartheim (1942):

“Uma vez que o transporte de inválidos acaba sempre nas câmaras , pergunto se nestas câmaras não se poderia testar, com as pessoas ali levadas, o efeito dos diferentes gases asfixiantes. Até agora a documentação só fala de experiência com animais e dos incidentes havidos durante a produção destes gases”.

O P. Stofels foi assassinado numa das câmaras de gás em 25.05.1942 e o P. Wampach a 12.08.1942.

Na Igreja de S. José Operário, aos cuidados dos dehonianos até 1990, um monumento lembra os mártires:

“Em memória eterna..... Aqueles que sofreram e morreram pela fé, pela pátria, pela justiça e pela liberdade jamais serão esquecidos”.

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Uma resistência quase deconhecida

P. Kristiaan Hubertus Muermans (1909-1945)

“Respondendo aos apelos de sua pátria humilhada,empenhou-se em vários grupos de resistência. Em maio de 1941 caiu nas mãos da Gestapo que acabou com eles”. (Sint Unum, 1947).

O pouco que sabemos sobre o P. Muermans devemos ao P. Bothe. Nascido em 1909, P. Muermans professou em 1928 e foi ordenado em 1933, em Louvain. Por alguns anos ensinou no seminário de Tervuren. Começada a guerra, foi recrutado pelo exército belga. Em 1941 caiu prisioneiro dos alemães. Liberado em 1943, voltou para a Bélgica e retomou as aulas em Tervuren e Bruxelas.

Conforme uma carta a seu irmãos Vim, P. Kristiaan, voltando à Bélgica, engajou-se na resistência belga:

“Dedicou-se à imprensa clandestina e ajudou muitos jovens a esconder-se da Gestapo Quando a Gestapo descobriu suas atividades prendeu-o na frente de seus alunos. Depois de passar alguns dias na cadeia de Bruxelas foi transferido sucessivamente aos campos de Buchenwald, Ellrich, Harzungen e Dora, onde morreu a 16 de fevereiro de 1945, poucas semanas antes da libertação daquele campo de concentração pelos americanos”.

Sabemos que o P. Muermans morreu numa das 40 seções do campo de Mittelbau-Dora, em Bkankenburg. Em Dora produziu-se armas para o exército alemão. As armas eram fabricadas num subterrâneo: um gigantesco túnel de 20 km e 30 metros de altura. Havia 60 mil prisioneiros, tratados como escravos. Destes, um 20 mil morreram, entre eles o P. Muermans. As circunstâncias de sua morte são desconhecidas.

Cinismo da história: após a libertação do campo, os americanos mandaram os mísseis que encontraram, mais de uma centena, a engenheiros alemães no Estados Unidos para aprimorar a indústria de armas. Quando os russos chegaram, instalaram-se no campo para produzir a bomba V2. Depois transferiram quase toda a fábrica para a Rússia.

P. Muermans não deixou nenhum escrito. Seu compromisso em favor dos jovens, na resistência, custou-lhe a vida. André Jarlan, morto no Chile, assim refere-se a esse tipo de mártires:

“Aqueles que fazem viver são os que oferecem sua vida, não aqueles que atiram. Para nós, a ressurreição não é um mito, mas uma realidade. Este fato, que nós celebramos em cada Eucaristia, nos confirma que vale a pena dar a vida pelos outros” (Riccardi, il secolo del martírio).

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Vítimas da guerra

Os Dehonianos Holandeses na Indonésia

A morte de 11 confrades holandeses no campo de concentração japonês de Muntok na ilha de Banka, Indonésia, nos anos 1944/45 faz parte de uma história muito complicada. Misturam-se crimes de guerra dos japoneses contra a população civil, a queda da Holanda como potência colonialista e o movimento de independência da Indonésia, a guerra como um todo. Todos estes elementos dificultam um julgamento sobre as causas que levaram estes confrades à morte. Talvez por isso mesmo tenham caído no esquecimento.

A 15 de fevereiro de 1942, as tropas japonesas conquistam e  ocupam  Palembang, Sumatra, ilha pertencente ao então império holandês. Enquanto militares e civis holandeses se transferem para  ilha de Java, outros civis e os religiosos e padres decidem permanecer em Sumatra para dar continuidade à sua missão nas paróquias, escolas e hospitais. Após a invasão japonesa a missão não é proibida. Tudo muda a partir de 1º de abril de 1942, quando todos os europeus são recolhidos: Os homens, na prisão de Palembang, as mulheres e crianças, em algumas residências européias. Mais tarde eles devem construir dois campos de concentração.  Haverão de ficar nestes campos cerca de 17 meses. O maior problema é a alimentação escassa e a falta de medicamentos.  Só depois que alguns morrem, os médicos intervêm . Nestes campos, os internados organizam sua vida, com escola, funções religiosas, tudo dentro do arame farpado dos japoneses.

Os japoneses buscam o apoio da população local mostrando-se aliados na luta contra o colonialismo europeu. Pela primeira vez, cidadãos indonésios passam a ocupar cargos administrativos. Com o passar do tempo esta estratégia contribui para reforçar o movimento de independência  indonésio num nível não previsto nem aceito pelos japoneses. Assim, logo após o término da guerra é proclamada a independência da Indonésia. O cristianismo é apresentado pelos japoneses como religião dos colonialistas europeus e as religiões locais recebem todo o apoio. Padres e religiosos passam a ser suspeitos.

No período de julho e agosto de 1943 os japoneses passam a perseguir os colaboradores dos aliados. Muitos europeus são levados ao campo de Muntok, na ilha de Banka, uma região árida e inóspita. A ração diária de comida varia entre 100 e 300 gramas de arroz. A desnutrição enfraquece as pessoas de modo a  impedir qualquer outra atividade, até  participação nos funerais de quem morre.

Somente no campo de Muntok morrem 250 homens de um total de 942. Neste contexto, onze dehonianos não sobrevivem: P. Heinrich Norbertus van Oort, P. Petrus Matthias Cobben, P. Franciscus Hofstad, P. Isidorus Gabriel Mikkers, P. Theodorus Thomas Kappers, P. Andreas Gebbing, P. Petrus Nicasius van Eyk, P. Francisucs Johannes v. Iersel, P. Wilhelmus Franciscus Hoffmann, Ir. Mattheus Gerardus Schulte, Ir. Wilfridus Thedorus van der Werf.

Em fevereiro de 1945 os prisioneiros são de novo transferidos , desta feita para Belalau (sul de Sumatra), onde as condições são melhores.

A 24 de agosto de 1945, depois de 40 meses de internação, o comandante japonês anuncia o armistício de Manila que encerra a guerra no  Pacífico. Um sobrevivente dehoniano escreve:

“Por alguns instantes todos ficaram calados. De repente explode um “Hurra” . No nosso bloco alguém entoa logo um te Deum”.

Em sua reflexão sobre um novo conceito de mártir Andrea Riccardi escreve:

“Por que morreram? As motivações são muitas  e variam de país a país. A política une-se a motivações anti-clericais  e a meras explosões de violência e banditismo”.

Fontes: De Missiepost, December 1945/Januari 1946, p. 11-18; Andrea Riccardi, Il secolo del martirio, Mondadori 2000; Bernd Bothe, Märtyrer der Herz-Jesu-Priester; etc.

 

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Três dehonianos franceses nos Camarões

Em muitos lugares da África, os anos depois da segunda guerra caracterizaram-se pelos processo de independência nacional. Os Camarões foram divididos em dois territórios confiados pelas Nações Unidas à França e ao Reino Unido. Na parte francesa, entre 1945 e 1960 surgiram mais de 100 partidos políticos. O movimento de independência ganha força a  partir de 1950, com cenas de violência. Em 1958 a França dá independência aos Camarões.

P. Héberlé, dehoniano francês, com mais de 25 anos de Camarões, assim percebe a situação da época:

“Os camaroneses são conhecidos por seu interesse comunitário. Querem uma verdadeira emancipação. Atribuem seus problemas atuais à sua incapacidade de gerir, consequência da tutela colonialista de outrora.  Tudo o que vem do Ocidente é considerado como colonialismo aberrante, interesseiro e opressor. A Igreja católica, percebendo esta característica, passa a responsabilidade para as mãos do clero local e abandona a política ocidental, denunciando as conseqüência nefastas do laicismo e do materialismo ocidentais” (carta em “Vie cathelique” 28.8.1960).

P. Héberlé apóia estes passos. Na mesma revista ele é chamado de “defensor da liberdade africana”. Assim mesmo, ele próprio e dois outros dehonianos franceses (P. Musslin e P. Sarron) são vítimas de violência independentista.

Quando o P. Héberlé vai de férias para a França, em 1959, muitos insistem em que ele não volte aos Camarões. Numa carta de setembro de 59 ele explica assim sua insistência em voltar:

“Tive de lutar contra mim mesmo, e contra todos os meus sentimentos familiares, contra os meus. Em tais circunstâncias é preciso compreender o que significa morrer para si mesmo e renunciar a tudo para seguir Nosso Senhor e carregar sua cruz. Se voltei para a minha missão, fi-lo só para cumprir a vontade de Jesus Cristo, para estar junto das almas que Deus confiou-me e pelas quais sou responsável diante dele. Por isso, na situação que atravesso é preciso uma fé inabalável, uma confiança absoluta, uma caridade sem nódoa. Para nós padres e cristãos é o momento da provação. Deus nos prova com o fogo e com o sangue. Seja feita a sua vontade. Isto nos leva a consagrar-nos totalmente a seu serviço e a alcançar com nossos sacrifícios a sua cruz”. (9 de setembro de 1959).

A 30 de agosto de 1959 o P. Musslin foi morto em sua missão. A 29 de novembro a missão de Banka-Banfang é tomada de assalto. O P. Héberlé é primeiro atingido por uma bala, depois decapitado. O P. Sarron consegue escapar, depois é encontrado e decapitado. Junto com eles morrem um padre e um catequista camaroneses.

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Opção de solidariedade para com os pobres

P. Paulo Punt

Em dezembro de 2000 chegou este convite aos dehonianos do Pernambuco:

“O Prefeito de Tamandaré, Paulo Guimarães dos Santos, tem a honra de convidá-los para a concelebração que terá lugar a 15 de dezembro deste ano, às 18 horas, na Colônia dos Pescadores, por ocasião do 25º aniversário da morte do P. Paulo Punt. Depois da Missa haverá a dedicação da praça e inauguração do monumento em homenagem ao padre.”

Quem foi este confrade, cuja memória ficou gravada na mente dos habitantes de Tamandaré? Eis o testemunho dos padres Luis Carlos M. de Sousa e Pedro Neefs, da província BS, um texto que nos aproxima de um confrade que deu sua vida em solidariedade para com os pequenos.

Nascido em 1913, na Holanda, chegou ao Nordeste do Brasil em 1936. Ordenado em 1941, exerceu o ministério em diversas paróquias. Em 1968 o P. Paulo optou por começar um novo trabalho, no distrito de Tamandaré, estado de Pernambuco, PE, onde também exercia o trabalho de pescador de forma profissional. Olhando para a difícil situação em que viviam os pescadores, aos poucos, P. Paulo ajudou-os a se organizarem e fundou uma colônia (cooperativa profissional). Dessa cooperativa ele chegou a ser presidente mas para isso teve que obter uma licença especial porque, na época, a colônia dependia dos órgãos de segurança nacional.

Por ser uma cidade portuária, em Tamandaré havia uma forte prática de contrabando de bebidas e eletrodomésticos. P. Paulo foi tomando conhecimento disso e vendo que os pescadores poderiam ser envolvidos inocentemente e, assim, poderiam ser prejudicados, por várias vezes P. Paulo denunciou o fato às autoridades competentes e, com isso, começou a angariar inimigos e perseguições contra ele.

Tentando afastar o P. Paulo foram feitas denúncias de que ele era comunista, o que, na época da ditadura militar que havia no país, era algo bastante grave. Mas, os próprios órgãos de segurança nacional constataram que tudo não passava de infundadas denúncias.

Por várias vezes, temendo pela vida do confrade o então Provincial, Padre Pedro Neefs, tentou persuadir o P. Paulo a deixar Tamandaré porém, mesmo sabendo do risco de vida que corria, ele entendia que ali era o seu lugar.

Padre Paulo também se preocupou com a melhoria do nível educacional do povo de Tamandaré e ajudou a reconstruir a escola pública que havia na localidade e dela tornou-se diretor por vários anos.

Muito mais apostando na vida, o P. Paulo não foi percebendo a trama que sordidamente era feita contra ele... Para que sua morte não parecesse como um trabalho encomendado, os que viam e sentiam a presença de ajuda de P. Paulo junto aos pescadores, sobretudo na linha da organização e da conscientização, insinuaram a auxiliar de polícia que sua esposa o estava traindo com o padre e, inclusive, um dos seus filhos era filho do sacerdote.

15 de dezembro de 1975 era um dia festivo por causa da conclusão de curso do ginásio local. No final do dia, após todas as solenidades o assassino dirigiu-se ao Padre Paulo e desfechou 3 certeiros e mortais tiros que acabaram com sua vida terrena.

Estranhamente as próprias autoridades policiais locais se encarregaram de dar uma versão passional ao crime mas na memória do povo todos sabiam que o Amaro (nome do assassino) tinha sido usado para calar a voz do P. Paulo. O próprio juiz de Rio Formoso, Adalberto Lopes, enviou o processo a um tribunal superior em Recife porque via a presença de forças ocultas contrárias ao P. Paulo envolvendo até o prefeito, a polícia local e alguns membros de organismos federais.

Nesta história de uma vida consagrada aos pobres, aos simples e pequenos o mais importante é que as balas assassinas não conseguiram tirar o P. Paulo da memória e do coração afetuoso do povo de Tamandaré. Sinal disso foi que no dia 15 de dezembro do ano 2000, vinte e cinco anos depois, o povo voltou a reunir-se e festejar a passagem do P. Paulo no meio dele. Para expressar a gratidão, a prefeitura da cidade de Tamandaré construiu uma praça e ali colocou um busto do P. Paulo. Por ocasião da Concelebração Eucarística, realizada no próprio recinto da Colônia dos Pescadores, como expressão do que P. Paulo representou para a cidade, o pastor de uma das igrejas protestantes se fez presente à celebração e, no final, deu um testemunho insuspeito dizendo que estava há pouco tempo em Tamandaré e para conhecer o rebanho para o qual fora designado e a história da cidade teria que conhecer quem fora Padre Paulo que também era carinhosamente lembrado pelos membros da sua Igreja.