Vida da Congregação

O TEMPO DA PRESENÇA SCJ

NA ARQUIDIOCESE DE YAOUNDÉ

Alban Pascal Noudjom Tchana (CM)

Escolhi intitular este trabalho desta forma: O tempo da presença SCJ na Arquidiocese de Yaoundé. O meu objectivo com estas linhas é tentar o melhor de que for capaz, mostrar as razões que levaram os SCJ à Arquidiocese de Yaoundé, como se fez a implantação das diversas comunidades e, em seguida, como é vivida esta presença nas diversas localidades onde nos encontramos. (Nota: Anteriormente a nossa presença nos Camarões limitava-se às dioceses de Foumban e Nkongsamba).

Tentarei, assim, responder às seguintes questões:

- a quando remonta a presença dehoniana na Arquidiocese de Yaoundé?

- a quem a devemos? Quais são as razões que a justificam?

- como é vivida esta presença nas diversas comunidades e sectores paroquiais?

Uma das preocupações que, a meu ver, determinou esta presença foi a da fidelidade às intuições do nosso carisma. Esta preocupação exprime-se, nas nossas Constituições segundo duas modalidades. A primeira expressão encontro-a nos números 26, 27, 28. Dizem assim: “Sacerdotes do Coração de Jesus, vivemos hoje no nosso Instituto a herança do Padre Dehon. Somos religiosos consagrados ao Senhor pelos votos com uma espiritualidade reconhecida pela Igreja - a do Fundador.

Como todo o carisma na Igreja o nosso carisma profético coloca-nos ao serviço da missão salvífica do Povo de Deus no mundo de hoje.

Desejando viver na intimidade do Senhor, procuramos os sinais da sua presença na vida dos homens, onde actua o seu amor de salvação”.

A segunda expressão encontra-se no número 87 das Constituições:

“Chamados a fazer frutificar o carisma do Padre Dehon, queremos participar nesta acção do Espírito. Responderemos à exortação de Cristo: ‘Pedi ao senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara’ (Lc 10, 2). Estaremos presentes, também, nas diversas iniciativas da Igreja em favor da pastoral das vocações”.

Aqui está o que estas duas exigências me permitem entrever: a obrigação, para o dehoniano de ir aonde quer que seja necessário, como apóstolo e como pastor, para pregar o reino de amor trazido pelo Coração de Jesus; depois, esta outra obrigação que está intimamente ligada à primeira e que exige uma pastoral vocacional, que possa garantir a continuidade dessa missa de apóstolos ao serviço dos Coração de Jesus. O apostolado ao serviço da Igreja, primeiro; a pastoral das vocações, como consequência da primeira obrigação que requer uma posteridade para perpetuar a obra.

Como veremos a seguir, serão estas duas preocupações que irão mobilizar os nossos Padres na perspectiva de uma presença na Arquidiocese de Yaoundé.

Todos sabemos que um texto, qualquer que ele seja, retira a sua credibilidade e o seu valor da sua relação com a história da realidade dos factos no tempo. Pensei que, para falar em concreto, é muito pouco basear-se apenas em documentos escritos; considerei bom poder recorrer directamente a três fontes humanas, três idosos que foram actores ou, ao menos, testemunhas no momento em que se estudava este projecto missionário. Encontrei-me, para isso, o Pe. Léon Kamgang e o Pe. François Siou. Enviei ao Pe. Félicien, pároco em Mfou, um questionário a que ele teve a amabilidade de responder. Para ser honesto, com todos estes elementos à disposição, procedi simplesmente a um exercício de montagem, à construção de um puzzle. Procurar as diversas fontes e ordená-las, foi esse o meu trabalho. Lamento muito que o Pe. Zerr já cá não esteja: teria obtido dele numerosas informações. Ele foi, como veremos, o impulsionador da nossa presença aqui.

A quando remonta a nossa presença aqui? A que razões e circunstâncias se deve? Penso que para uma aventura destas se requer a lupa do historiador. É o que vou tentar fazer.

O Pe. Goustan Le Bayon observa no seu livro que em 1910 os Sacerdotes do Coração de Jesus eram numerosos na Alemanha. É justamente para uma colónia alemã que o Padre Dehon se volta, para os Camarões, onde vê um vasto campo missionário. De 1910 a 1911, estabeleceu-se uma troca de correspondência entre o Padre Dehon e os palotinos que tinham, sob a direcção de Dom Vieter, a responsabilidade do Vicariato Apostólico dos Camarões. Conclusão destas diligências: a Congregação para a Propagação da Fé entrega aos dehonianos a missão de Adanaoua. Esta parcela vai de Bonaberie. no litoral, passa por Adamaoua e vai até ao lago Tchad. A este território atribuiu-se o nome de Prefeitura Apostólica de Adamaoua. Em 1912 os dehonianos chegam a Douala. Em 1914 começa a Primeira Guerra Mundial e os combates não são favoráveis aos alemães.

Em virtude do princípio estabelecido na Conferência de Berlim (1884-1886), segundo o qual a evangelização deveria ser assegurada por padres ou religiosos naturais dos países colonizadores, os padres alemães são convidados a sair. É depois dessa saída que irão fundar na Espanha. São substituídos por dehonianos de origem francesa. Esta saída em massa dos padres alemães vai provocar um défice ao nível dos padres disponíveis para a missão e uma redução do campo missionário SCJ no que se chamou Vicariato Apostólico de Foumban. Este Vicariato abrange metade de Adamaoua e estende-se até Bonaberie. Dom Plissoneau e Dom Bouque, ambos dehonianos vão suceder-se à frente deste Vicariato. Em 1955 o Vicariato de Foumban passa a ser a diocese de Nkongsamba. Em 1964, Dom Bouque passa o testemunho ao clero diocesano. A 16 de Agosto de 1964 Dom Ndongmo torna-se o primeiro Bispo nativo da nova diocese. Suceder-lhe-á Dom Kkuissi a 29 de Janeiro de 1973. É então que tem início o período de confronto directo e aceso entre ele e os dehonianos. Aí está a parte da história que era necessário conhecer para compreender a questão.

Quando de uma reunião dos Bispos em Bamenda, o Arcebispo Zoa diz a Dom Thomas Nkuissi: “Se algum dia ouvir dizer que os Sacerdotes do Coração de Jesus estão na Arquidiocese de Yaoundé, saiba que foi a meu pedido”. Ao que Dom Nkuissi respondeu: “Pode ficar com todos eles, se quiser”.

Esta pequena história soube-a pelo Pe. Siou. Outro facto ainda ilustra o estado a que tinham chegado as relações entre ele e os dehonianos. Dom Nkuissi tinha dado 48 horas ao Pe. Goustan Le Bayon, para fazer as malas e deixar a sua diocese, ele que tinha chegado aos Camarões como missionário aos 25 anos e aí tinha passado toda a sua vida. Recorde-se que, na altura, estava com 75 anos. O Pe. Le Bayon queria continuar missionário, quando deixou a diocese de Nkongsamba e foi para a diocese de Douala. Aí recebeu de Dom Victor Tonye a nomeação para vigário da catedral. Depois criou a paróquia do Congo. Pediu então a ajuda de um confrade para trabalhar com ele em Douala. Ora, ir para Douala podia ser interpretado com “fugir às dificuldades”. Por isso, a ideia de ir semear para outro lado foi posta “no frigorífico”. O Pe. Le Bayon regressou então à França, onde foi encarregado de uma paróquia na sua diocese de origem, mais precisamente Kevin. Servem estes pequenos incidentes para ajudar a perceber o contexto e as circunstâncias que presidiram ao surgir da ideia de um “outro lado”. É preciso, no entanto, notar que esta ideia de ir para outra diocese não era nova. Dom Lambert Van Heghen, Bispo da diocese de Bertoua já havia solicitado a presença dos nossos padres. O mesmo se diga do Bispo da diocese de Kumbo e de Douala. Regressando à diocese de Nkongsamba, verificamos que com Dom Nkuissi a questão é ambígua: não gostava dos dehonianos, quer que saiam da sua diocese e, ao mesmo tempo, não quer que se estabeleçam noutro lado. Outro erro na diocese de Nkongosamba consistia em considerar a Congregação como propriedade privada da diocese. Sob esta perspectiva, não lhe assistia o direito de ir para onde quer que fosse sem autorização do ordinário do lugar.

O tempo foi passando, enquanto a pouco e pouco ia amadurecendo na mente do Pe. Zerr o desejo de ir fundar noutra diocese. Quando terminou o seu mandato de Superior Regional, em 1978, entendeu que era a altura de procurar outras paragens, de se abrir a outras perspectivas, a fim de divulgar o nosso carisma. De regresso das suas férias, decidiu partir para a diocese de Yaoundé, onde já tinha entrado em contacto com Dom Zoa. Foram-lhe feitas três propostas: Mvan, Nkongoa, Nkilzock. O Pe. Zerr preferiu Nkongoa, uma vez que esta paróquia era a seu gosto e dispunha já de uma residência construída por um padre alemão. Aí se fixou em setembro de 1978. O Pe. João Bosco van den Berg juntou-se-lhe dois meses mais tarde, visto que não convinha deixá-lo só.

Quando Dom Nkuissi soube que o Pe. Zerr se tinha fixado em Yaoundé, encontrou o novo Superior Regional e disse-lhe: “Com que direito fostes para a Arquidiocese de Yaoundé?”. Ao que ele respondeu: “Somos uma Congregação internacional, razão pela qual não estamos ligados a nenhuma diocese. Temos o direito de nos fixarmos noutros lados, sem prejuízo das dioceses em que trabalhamos”.

Reclamava assim o respeito pelo estatuto das Congregações religiosas aprovado pela Santa Sé a 24 de fevereiro de 1969, estatuto que concede aos Institutos Religiosos implantados em território de missão “o direito de conservar a sua índole própria e a sua legítima autonomia, a faculdade de abrir casas ad normam juris e de promover vocações para a sua própria família religiosa”1.

O Pe. Siou refere outro atrito, este com o Pe. Bernard Nkuissi. Quando o Pe. Nkuissi foi transferido para Kousseri, ao Norte dos Camarões, pediu para encontrar-se com o Pe. Siou.

“Eu parto - disse ele - mas tenho um reparo a fazer-vos: vocês não deviam ter saído da diocese de Nkongsamba”.

O Pe. Siou respondeu-lhe: “Nós somos livres de ir para onde quisermos, onde pensamos que seja melhor para a nossa Congregação”.

Em resumo, podemos dizer que a vontade de fundar na arquidiocese de Yaoundé nascia do desejo de nos abrirmos a novas perspectivas (apostolado, pastoral das vocações) e da preocupação de afirmar o carácter internacional da Congregação que, devido a mal entendidos acumulados, tendia a ser tida como propriedade privada da diocese de Nkongsamba. Foi Dom Zoa quem primeiro pediu a presença dos Sacerdotes do Coração de Jesus na sua arquidiocese; depois foi o Pe. Zerr que, em 1978, concretizou essa presença.

Antes de partir para Yaoundé, foi necessário clarificar as coisas. É que fundar em Yaoundé podia parecer, como observa o Pe. Siou, um refúgio, um tubo de escape. Por isso era necessário encarar essa presença numa perspectiva positiva: se se fundava em Yaoundé, não era para fugir às dificuldades na diocese de Nkohgsamba, mas porque o nosso carisma de Congregação internacional requeria a nossa presença também noutras dioceses.

“Não se funda - diz o Pe. Siou - por despeito. Funda-se porque se quer que o Reino do Coração de Jesus e os Sacerdotes do Coração de Jesus sejam conhecidos noutras partes, para além da diocese em que fomos pioneiros. Não é bom fechar-se num só lugar; aí corre-se o risco de asfixiar. É preciso ir por outros caminhos que ofereçam novas perspectivas de apostolado e de vocações. O Padre Dehon, mesmo imprudentemente, ia para outras partes. É preciso ir para onde nos chamam, com os meios de que dispomos. Ir para outros lugares é uma atitude evangélica; toda a vida de Cristo é constituída por pequenas partidas”.

Uma vez na arquidiocese, vejamos como se fez a implantação dos nossos primeiros confrades. Donde vem o desejo de abrir um escolasticado em Yaoundé?

No dia 1º de outubro de 1979, abre-se o noviciado em Ndoungué, na presença dos Bispos, Dom André Wouking e Dom Thomas Nkuissi. Já antes de 1980, data da Primeira Profissão do primeiro grupo de noviços, se colocava a questão de saber para onde iriam aqueles que iam professar. É então que se entra em contacto com a Província do Zaire (nova República Democrática do Congo). O projecto apontava para o estabelecimento de um escolasticado em Kinshasa, na paróquia de Cristo Molobeli2. Construem-se, então quatro quartos para alojar, em Outubro de 1980, três neo-professos. Mais tarde coloca-se a questão da Teologia. Os dois primeiros estudantes de Teologia vão fazer comunidade com os CICM em Ngoya. Aos fins de semana juntam-se aos confrades ou em Nkongoa ou em Nkilzock. Após debate com o Zaire (nova RDC) decidiu-se para Yaoundé para a casa de Teologia. Porquê Yaoundé? Devido às estruturas existentes e às já projectadas. Na altura estava já em projecto um instituto católico, existia o Seminário Maior, o Instituto de Teologia de Ngoya e a grande confusão que enfrentam as Congregações para conseguirem instalar-se na cidade. É assim que se chega ao projecto da compra de uma casa em Yaoundé.

Em 1984, o Pe. Léon Kamgang sucede ao Pe. Siou. Aproveitando a passagem do Pe. Lesenne, jesuíta, pela Casa Provincial de Nkongsamba, o Pe. Léon Kamgang fala-lhe da sua preocupação de conseguir um terreno em Yaoundé para os jovens religiosos em formação. É então que ele lhe fala de uma casa que os jesuítas possuíam e que não estava a ser utilizada. O terreno e a casa custavam 50 milhões. Tratava-se de uma propriedade de 2000 m2, que herdou o nome da Casa André Prévot. Em 1985, é lançada a ideia de um consórcio constituído pelos scheutistas, pelos missionários do Coração de Jesus e pelos Sacerdotes do Coração de Jesus. Todos pretendem que seja em pleno coração da cidade, porque se diz que Ngoya é no mato e não oferece grandes perspectivas de apostolado. Há um terreno de meio hectare. Cada Congregação deve entrar com 50 milhões, sem contar com as despesas de construção. O total perfaz cerca de 300 milhões de Fcfa. O Pe. Léon irá opor-se à realização de tal projecto. Defende a ideia de deixar a casa de Teologia em Ngoya. A ideia abra caminho e acaba por afirmar-se. Os primeiros escolásticos dehonianos trocam a Casa André Prévot pelo Instituto de Ngoya. São cerca de 50 km entre ida e volta. Prevendo o número de estudantes, pensou-se comprar um terreno em frente da Casa A. Prévot para poder construir mais quartos. O Pe. Léon considerou mais económico e prático procurar um terreno nas proximidades do Instituto em Ngoya. Após debate, muitos consideram necessário vender a Casa André Prévot e com o produto da venda adquirir um terreno em Ngoya. Mais uma vez o Pe. Léon entende que é bom manter a Casa André Prévot e comprar outro terreno em Ngoya, uma vez que, segundo ele, é necessária a presença na cidade. Só na cidade melhor se poderá dar a conhecer o nosso carisma. Esta perspectiva valeu-lha a fama de homem inconstante e irreflectido, etc. Mas por fim, acaba-se por optar pela compra de um terreno em Ngoya, mantendo a Casa André Prévot. Será o Pe. Cyprien Mbuka, então Superior da comunidade dos scheutistas a ajudar o Pe. Léon a comprar o sítio onde nos encontramos. O primeiro Superior dos escolásticos na Casa André Prévot será o Pe. Lapaw. Depois da instalação em Ngoya, o primeiro Superior será o Pe. Carlos Biasin, assistido pelo Pe. Félicien, professor de Sagrada Escritura e o Pe. Georges. O primeiro grupo de escolásticos foi de três: Engelbert, Lutété e Leonard. O Pe. Carlo gostava de lhes chamar os três “mosqueteiros”3. Esta referência serve para realçar o crescimento do número de escolásticos. Em dez anos passou-se de um número 3 a 22 estudantes de Teologia. É justo referir que, a partir de 1877, os jovens da Província de Moçambique vieram aumentar o carácter internacional da comunidade. A este grupo de estudantes de Teologia juntam-se dezoito estudantes de Filosofia. Nas alegrias como nas provações de cada dia vivemos acompanhados pelos nossos formadores este ideal de vida alegre que nos propõe Cristo através do nosso carisma. Estamos bem conscientes de que o futuro da vida religiosa dehoniana em África dependerá também de nós.

Que dizer da paróquia de Elig-edzoa?

A paróquia inicialmente estava entregue aos Padres das Missões Estrangeiras. Agora eles estão em Ngousso. Como se explica então a nossa presença em Elig-edzoa?

Segundo um princípio muito caro a Dom Zoa, cada Congregação que se fica na sua diocese devia assumir uma paróquia. O local, na altura, não era o actual. Um domingo, um jornalista detém-se em Elig-edzoa para a sua missa dominical. De regresso ao seu trabalho, redigiu um artigo para o semanário Cameroun Tribune e dá-lhe este título: “O diabo e o bom Deus em Elig-edzoa”. O bom Deus, porque lá se celebrava a Missa. O diabo, porque, enquanto se celebrava a Missa, outros tocavam com volume muito alto músicas de amor. Com um recorte do jornal na mão, o Pe. Léon foi ao delegado do Governador de Yaoundé. Este concedeu-lhe um terreno não propriamente em atenção à Igreja, mas antes ao à vontade deste confrade que não desistia de o importunar.

Que dizer da nossa presença em Mfou?

A nossa presença em Mfou data de 1979-80. Podemos fazê-la coincidir com o nascimento da missão paroquial dedicada a “Maria Mãe de Deus”. O primeiro pároco foi o confrade holandês Pe. Cornelius van den Berg. A paróquia conta cerca de 1.400 cristãos com mais de 20 anos. Abrange quatro bairros da cidade e nove aldeias no mato. O que Dom Zoa pedia aos nossos Padres era uma pastoral de proximidade, que requer que se vá ao encontro das pessoas. É uma paróquia que mexe. Mexe pelos seus movimentos e confrarias de jovens que são 8, pelos seus grupos de adultos que são 9. O Pe. Felicien, actual pároco, citava como dificuldade o estado lamentável das relações homem-mulher, o número exíguo de matrimónios, as numerosas uniões irregulares, os filhos abandonados. A seu ver, estes campos pastorais continuam devido ao peso aparentemente insuperável dos usos e costumes.

Abordemos agora o último ponto, para ver como foi vivida a presença dehoniana na arquidiocese de Yaoundé: a relação com o povo e a relação com a hierarquia.

A relação com a hierarquia local

De acordo com o que me dizem o Pe. Léon e o Pe. Siou, a relação no seu tempo com o falecido Dom Zoa foi de sua iniciativa. Foi a seu convite que viemos para Yaoundé. Ele estava muito ligado aos Sacerdotes do Coração de Jesus. Conhecia o nosso carisma e foi isso com certeza que o levou a dizer aquilo que disse a Mons. Thomas Nkuissi. Apreciava muito a nossa pastoral que nos torna tão solidários e próximos das pessoas a quem vamos. Foi favorável à nossa fixação em Ngoya que, na altura, dependia da sua dioceses. Foi ele que deu todas as autorizações necessárias. Tudo isso porventura devido à nossa atitude para com ele. Alguns exemplos concretos.

O Pe. Léon tinha conseguido o terreno de Miguel Arcanjo de Elig-edzoa e deu o título de propriedade a Mons. Zoa; conseguiu o de Ntem-assi e deu-lhe o título de propriedade. Conseguiu o terreno de Nkolebogo e fez o mesmo. Igualmente em Mfou, o Pe. André Gravejat conseguiu um terreno e deu-lhe o título de propriedade. E de todos estes gestos aparentemente normais Mons. Zoa disse: “Vocês Sacerdotes do Coração de Jesus são formidáveis”. Um dia mandou chamar o Pe. Léon e disse-lhe: “Não há ninguém como tu, estrangeiro, tu que és bamiléke4, para me conseguir as coisas para a arquidiocese”. E fez-lhe num outro encontro esta confidência: “Enquanto eu estiver em Mvolye5, tu estarás a meu lado”. O que a mim pessoalmente me impressiona em tudo isto é verificar como a impressão ou a ideia que as pessoas podem fazer de uma Congregação inteira depende do comportamento positivo de um ou dois indivíduos.

Muito recentemente em Ndoungué, perguntei ao Pe. Léon o que é que, no seu modo de ver, pode ser considerado como contributo específico dos dehonianos na arquidiocese. Respondeu-me que sinceramente não há, que saiba, um contributo específico que nos possamos atribuir. A oração das sextas-feiras, a adoração eucarística, tinha já sido instituída pelos Padres espiritanos. No entanto, disse-me que se formos perguntar a um cristão qualquer qual a diferença entre os Sacerdotes do Coração de Jesus e os demais, ele dirá seguramente que nós somos devotados à nossa missão, que puxamos as pessoas para a espiritualidade e para a devoção. E logo depois recordou-me o reparo que muitas vezes se faz aos Sacerdotes do Coração de Jesus de serem rigorosos e austeros. Acontece, diz ele, sem que nos demos conta; basta uma boa impressão que se dá, um testemunho a favor da forma séria e empenhada como nos entregamos à vida religiosa e à pastoral.

Na arquidiocese de Yaoundé, estamos presentes em três cidades: Yaoundé, Mfou e Ngoya. Fazemos uma vida religiosa em comunidades de 2, 3 ou mais elementos. As nossa duas principais ocupações são o apostolado paroquial e a formação teológica dos jovens religiosos em Ngoya. Há algum tempo a casa alojou também os estudantes de Filosofia que não puderam ir para a RDC devido à situação política daquele país. Mas a casa para nós estudantes de Filosofia, como sempre nos recorda o Padre Provincial, continua a ser a de Kisangani. Enquanto esperamos que a situação se normalize, filosofamos no Instituto Mukasa. Em resume, são estas as formas que reveste a nossa presença na arquidiocese. Os dehonianos tentam propor aos homens e às mulheres, aos jovens um caminho de vida na espiritualidade do Coração trespassado. É esta a nossa forma de amar esta porção do mundo em que nos encontramos, de a curar dos seus males, de participar no ideal da reconciliação dos homens. É nessa procura do Sint Unum que nos afirmamos como discípulos do Padre Dehon. Sem gestos espectaculares, levamos uma vida normal, mas densa. A pouco e pouco, nós escavamos, como gosta de dizer o Pe. Siou, o nosso pequeno canteiro na arquidiocese. Nkongoa, Nkilzock, Yaoundé, Ngoya, Mfou: são os campos que cultivámos. O fruto deste trabalho mede-se pelo número de vocações que enchem já as casas de formação a princípio consideradas grandes demais.

Perguntei ao Pe. Siou por que motivo não fizemos nós em Yaoundé a experiência de uma obra com a do Pe. Bernard Groux (a JED)6. A sua resposta edificou-me. É que eu tive direito a um curso gratuito e prático de Teologia pastoral. Ele parte do princípio que é a vida que determina a orientação ou as opções apostólicas a tomar. Está convencido de que uma obra pensada segundo um esquema racional não resiste à prova do tempo. Diz que durante o seu mandato de Superior Regional não se viu confrontado com uma situação especial de jovens em dificuldade que pudesse levá-lo a uma iniciativa dessas. Esta resposta relacionei-a com o que dizia o Pe. António, quando se pensou em elaborar o projecto de um grupo de famílias que participassem do carisma dehoniano. O seu pensamento resumia-se nisto: deixar que nasça das pessoas o desejo de viver a nossa espiritualidade. Não é a nós que compete tomar a iniciativa de fundar semelhantes grupos. O nosso dever é ajudar o seu nascimento, caminhar com eles, orientar, se for o caso, as suas aspirações, para que se desenvolvam ainda mais.

No fim dos nossos encontros, arrisquei-me a pedir a estes anciãos um conselho para nós novas gerações que estamos a dar os primeiros passos na vida religiosa. O Pe. Léon pede-nos muito simplesmente que abramos os olhos para vermos com sabedoria aquilo que fazem os mais velhos. Que aprendamos com as suas acções tanto positivas (para melhorar), como negativas (para evitar cair naquilo que foi para eles um obstáculo). Que partilhemos em tudo a convicção de Cristo e que vivamos da sua vida. Que sigamos sempre o caminho do Padre Dehon ao empreender o “aggiornamento” necessário. O Pe. Siou, por sua vez, convida-nos a trabalharmos sobre o ser e não sobre o ter; isso fez-me imediatamente recordar, a mim estudante de Filosofia, o meu curso de metafísica. Aquilo que nos ajudará amanhã, disse ele, será aquilo que somos e não aquilo que temos. Poderemos, continua ele, dispor para a nossa pastoral do material mais sofisticado, mas sem uma personalidade honesta e uma ascese de vida rigorosa, só nos prejudicamos. Humildade e simplicidade: duas palavras que resumem o seu conselho:

A humildade ajudar-nos-á a entrar na pastoral como crianças. Pôr-nos-á ao abrigo das falsas razões que nos dão a nossa bagagem intelectual, a nossa Filosofia e a nossa Teologia, as nossas lógicas complicadas e os nossos esquemas racionais que muitas vezes nada têm a ver com a realidade que as pessoas vivem. A simplicidade evitar-nos-á a ditadura da razão que por vezes exercemos muito facilmente sobre estes pobres cristãos que mal aprendem o abc e o catecismo elementar que lhes ensinamos. Dar-nos-á a coragem de nos sentarmos na casa dos ricos, mas também na cubata dos pobres. Vendo e ouvindo os pobres aprenderemos que é uma ilusão pensarmos que temos razão só porque estudámos muito. Confrontados com as realidades das pessoas, com as suas misérias, aprenderemos a verdadeira homilia, aquela que toca no coração das pessoas, que não é bem aquela que tiramos da literatura da especialidade na véspera à noite, mas sim aquela que vão directamente ao encontro das experiências felizes ou dolorosas que elas vivem.

Gostaria de terminar este trabalho com estas breves palavras do Pe. Alphonse Huisken aos noviços, quando era Superior do noviciado em 1977. Era a festa do Coração de Jesus. “Se nós (os velhos) somos o crepúsculo da Congregação, vós (os jovens) sois a aurora”.

A mim pessoalmente esta pequena frase disse-me muito. Registei-a no meu diário daquele ano. Ela fez-me compreender a seriedade com que devia assumir a minha formação de jovem dehoniano, se queria que a chama do nosso carisma fosse transmitido às futuras gerações. E ainda hoje ela me fala da responsabilidade com a qual devo encarar a presença de tudo aquilo que vai desfilando à minha frente: as pessoas, os bens colocados à minha disposição e muitos outros.

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1 Le Bayon Goustan, Les prêtres SCJ et la naissance de l’Eglise au Cameroun, p.139

2 Em francês é a paróquia “du Christ qui parle pour...”

3 Cf. revue Scolasticat Ngoya, n. 3, 1991

4 É uma tribo do Oeste dos Camarões. Mons. Zoa era do centro. Por motivos puramente políticos, sempre se quis opor estas duas tribos.

5 Mvolye é um bairro da cidade de Yaoundé. É lá que reside o Arcebispo Jean Zoa. É também o bairro por excelência onde se situa a maior parte das comunidades religiosas.

6 É uma obra diocesana confiada aos Sacerdotes do Coração de Jesus pela diocese de Bafoussam. JED (Jovens em dificuldade)