TEOLOGIA E SPIRITUALITÀ

A MÍSTICA DO CORAÇÃO

SUAS FONTES, SEU SENTIDO

Marcial Maçaneiro, scj

Introdução

Na história da espiritualidade, há experiências que permanecem sempre novas. Lembramos a aliança celebrada por Abraão, Moisés e a sarça em chamas, Elias e a presença divina no Horeb. No Novo Testamento temos Maria, serva e mãe; o encontro com o Verbo da Vida, em S. João; a conversão de Paulo; a comunhão das primeiras comunidades, etc.

Posteriormente, a história nos brindou com o exemplo dos mártires, os Pais e Mães do deserto, os místicos medievais, a arte gótica e sua teologia da luz, e vários santos modernos. Ainda hoje estas experiências nos falam. Elas mostram a novidade da Boa-Nova de Jesus, provocam encanto e despertam novos discípulos. Assim é a experiência de um Francisco e uma Clara, de um Bernardo ou uma Teresa de Ávila.

Deste mosaico precioso, destacamos aqui aquela experiência do amor divino que se revela em Cristo, especialmente no mistério de seu coração. Experiência que brotou dos Evangelhos, fez estrada e chegou até nós com um nome próprio: espiritualidade do Coração de Jesus.

Até o Vaticano II, muitas comunidades e congregações que cultivavam esta espiritualidade se referiam freqüentemente às mensagens de Sta. Margarida Maria. Isto sem esquecer a presença de outros místicos, como S. Boaventura, Gertrudes de Helfta e Matilde de Hackeborn. Outros, por sua vez, quiseram aprofundar as fontes da espiritualidade do Coração de Jesus na Escritura e na Tradição viva da Igreja. As encíclicas Miserentissimus Redemptor (1928) e Haurietis aquas (1956) nasceram desta busca.

Com o Concílio Vaticano II, surge o movimento de “volta às fontes”. Seguiram-se, então, vários estudos que visavam uma nova leitura da devoção/culto ao Coração de Jesus: no campo da Cristologia (Rahner), da Bíblia (De La Potterie) e da Patrística (Carminati)1. As antigas intuições são relidas à luz da renovação conciliar, atenta aos sinais dos tempos.

Como resultado desta “volta às fontes”, hoje podemos esclarecer as raízes bíblicas e teológicas da espiritualidade do Coração de Jesus. Mais: além de localizar tais raízes, podemos aprofundá-las em terrenos novos. Alguns traços característicos, como a reparação, a contemplação do Lado aberto e as obras de misericórdia, podem ser re-propostos no horizonte atual de nossa missão: misericórdia que se expressa na opção pelos excluídos; reparação como compromisso pela Nova Criação (justiça, paz, ecologia); o Lado aberto, recordação da humanidade ferida; o Coração como síntese do nosso seguimento a Cristo.

Nestas páginas, apresento a você algumas “notas atuais” sobre as fontes e o sentido da espiritualidade cordiana. O texto é mais intuitivo que sistemático. Não é um tratado, mas sim uma partilha. Leia, medite e participe dessa reflexão que não é só minha. É nossa, porque todos somos discípulos deste Coração que um dia nos chamou, confiando-nos o serviço da caridade e o ministério da reconciliação.

O amor, elemento central da experiência cristã

O que distingue o cristianismo das demais religiões não é, de modo absoluto, seus dogmas, seu culto ou sua moral. É a pessoa mesma de Jesus Cristo como presença reveladora de que “Deus é amor”(1Jo 4,8). É a partir do amor (ágape) que os dogmas, o culto e a moral se definem e ganham um sentido verdadeiramente cristão (inspirados no ser e agir de Jesus). Lembremo-nos que cristão quer dizer “ungido”, isto é: messiânico. Somos discípulos de um Messias e professamos uma fé messiânica: adesão à Boa-nova de Jesus, prática das bem-aventuranças, acolhida do Reino de Deus, serviço à unidade e à reconciliação, esperança de novos céus e nova terra. Sem esta compreensão messiânica do amor, a fé cristã perderia seu sentido salvífico.

a. Amor e justiça no Primeiro Testamento

Já no Primeiro Testamento, entre percalços e limites históricos, o amor vai despontando como o núcleo da fé e da fidelidade a Javé. Foi para comungar de Sua vida que Deus criou o homem e a mulher à sua imagem. Deu-lhes um sopro vital. Capacitou-os para amar e criar. Colocou-os num Jardim Prazeroso (Éden) como guardiões e cultivadores. E, mesmo com a desobediência, persiste a promessa amorosa do Criador: o perdão e a esperança da nova criação (cf. Gn 1-3). Durante toda a história de Israel este amor se desdobrou em sinais de carinho, fidelidade e libertação (cf. Sl 135).

O amor de Javé condiciona a sua justiça: castiga os pais nos filhos até a quarta geração, mas faz misericórdia até a milésima! É por seu amor fiel (hesed) que ele salva o povo do Egito e restabelece a Aliança (cf. Êx 3-19). A misericórdia, mais que uma idéia atraente, passa a ser o “conteúdo prático” do relacionamento entre Javé e o Povo de Israel. O salmo 135, que recorda os feitos maravilhosos de Deus por seu povo, tem um refrão eloqüente e glorificativo: “eterna é sua misericórdia”.

É também à luz do amor que a Lei deve ser acolhida, compreendida e praticada: “Não te prostarás diante de outros deuses e nào os servirás, porque eu, Javé teu Deus, sou um Deus ciumento”(Êx 20,5). O amor exige fidelidade e justiça. Deus e Povo se comprometem em observar a Aliança como condição para a comunhão e a vida:

Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade. Se ouves os mandamentos de Javé teu Deus que hoje te ordeno - amando a Javé teu Deus, andando em seus caminhos e observando seus mandamentos, estatutos e normas - viverás e te multiplicarás. (Dt 30,15-16)

Vida que se acolhe como dom de Javé, e se preserva na liberdade e na caridade para com os carentes do povo: os órfãos, as viúvas, pobres e estrangeiros (Lv 23,22). O direito e a justiça devem caracterizar o povo que Javé escolheu por sua propriedade (Lv 19,15; Dt 16,19; Sl 140,13-14).

Os profetas dirão: se o povo praticar o direito e a misericórdia, viverá então sob o Reinado soberano de Javé. Mas se o amor for esquecido, nem mesmo os sacrifícios legais terão sentido:

Por acaso não consiste nisso o jejum que escolhi: romper as amarras da iniqüidade, soltar as ataduras do jugo e pôr em liberdade os oprimidos, despedaçando todo jugo? Não consiste em repartires o teu pão com o faminto, em acolheres em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aquele que vês nu, e em não te esquivares daquele que é tua carne? Se fizeres isso, a tua luz romperá como a aurora, a cura de tuas feridas acontecerá rapidamente, a tua justiça caminhará à tua frente, e a glória de Javé à tua retaguarda! (Is 58,6-8)

b. Amor-ágape no Novo Testamento

No Novo Testamento, Jesus aparece em continuidade com a tradição profética. Cheio do Espírito Santo, aos enfermos ele anuncia a cura; aos simples a misericórdia; aos cativos a libertação (Is 61,1-2 // Lc 4,18-19). Esta é a maneira de Jesus declarar que Deus reina. E quando lhe perguntam se é de fato o salvador, Jesus faz das obras o seu atestado messiânico: “Ide dizer a João o que estais vendo e ouvindo: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa-Nova” (Mt 11,4-5).

No Evangelho a caridade é critério de salvação ou condenação definitivas (Mt 25,31-46). Jesus reforma a Lei (Mt 5,17-6,18); perdoa irrestritamente (Jo 8,1-11) e proclama as novas cláusulas da Aliança: as Bem-aventuranças (Mt 5,1-12; Lc 6,20-23).

Na Ceia Pascal, ele assume as conseqüências extremas de sua paixão pelo povo: “...tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”(ao extremo do amor, segundo Jo 13,1). Entrega-se a Si mesmo no pão e no vinho, e nos deixa a eucaristia como sacramento de sua Presença, para a redenção “de muitos”(Mc 14,22-25). Bendiz o Pai, lava os pés dos discípulos e os chama “amigos”(Jo 15,15). Depois, apesar do sofrimento, ele acolhe e perdoa (Lc 23,33-43). É em virtude de seu amor fiel que o sacrifício da cruz ganha força redentora. Ao terceiro dia ressuscita, visita aqueles que ama e lhes assegura o Paráclito, Espírito da Verdade para a sua Igreja (Lc 24,44-49).

O amor gratuito e operante é o que caracteriza a proposta de Jesus. Sem esta marca, Jesus correria o risco de igualar seu projeto ao projeto limitado dos zelotas, fariseus ou escribas. Poderia confundir o evangelho com alguma nova forma de legalismo, ou perder-se num messianismo fácil e populista. Com o amor, porém, tudo se ordena de modo luminoso e, por isso mesmo, mais exigente. A Lei assume seu devido lugar, resguardando a liberdade, a graça e a opção fundamental pela vida humana (“o sábado é para o homem, e não o homem para o sábado”: Mc 2,27).

Deus aparece em seu verdadeiro rosto, não como Deus da Lei ou do Templo, mas como Deus da Aliança e da Vida. Em Jesus o amor é mais que um nome. O amor se torna um projeto e um juízo: implica numa prática diária, inaugura uma nova ordem estabelecida sobre um novo mandamento, e julga todos os demais projetos à luz de sua radicalidade. O amor-ágape como práxis de justiça e misericórdia é o itinerário trilhado por Jesus na sua missão de Profeta-Sacerdote-Messias (Jo 13-15).

O Coração de Cristo

Partindo desta centralidade do amor nas Escrituras, a espiritualidade do Coração de Jesus desenvolveu-se na Mística e adquiriu maior consistência teológica. Hoje podemos situá-la em termos de cristologia e reconhecer seu valor na Igreja.

a. A cristologia do Coração

Na sua caminhada histórica, em cada época e contexto, a espiritualidade do Coração de Jesus tem sido uma memória da centralidade do amor na vida de Cristo. Daí sua atenção permanente ao “coração” do Senhor. O “coração” é o caminho pelo qual se chega ao mistério de Jesus Cristo, e também caminho de participação na missão da Igreja. Trata-se de uma espiritualidade cristocêntrica (tem Jesus como centro), e centro-crística (em Jesus, acentua o que lhe é central: seu Coração, isto é, seu amor). O coração, assim, se apresenta como “matriz” de uma cristologia que, desde seus inícios, tem valorizado a humanidade de Jesus: sua encarnação, seu relacionamento com o Pai e as pessoas, sua compaixão pelo povo, seus afetos, sua misericórdia e sua cruz.

O termo “coração” designa o mistério de Cristo em sua profundidade e totalidade. Biblicamente, leb (em hebraico) e kardía (em grego) são termos primordiais, anteriores à distinção corpo/alma. Têm um significado pessoal profundo e inteiro: remetem à toda a pessoa, enquanto sujeito responsável, capaz de amar, sentir, decidir e comungar com a beleza e a vida em sua amplitude. Mais que expressão poética, conhecer a Cristo segundo seu Coração é uma verdadeira chave hermenêutica. A partir do “coração” se contempla e se experimenta o mistério do Filho de Deus em todos os seus desdobramentos: Coração do Verbo Encarnado, Coração do Bom Pastor, Coração Eucarístico, Coração Humano-Divino, Coração de Filho amado do Pai, Coração que nos dá o Espírito, etc.2

b. A mística do Coração

Entretanto, esta linguagem e estes símbolos tradicionalmente usados não nasceram por acaso, ou por serem teologicamente convenientes. Por trás da cristologia há uma mística. Uma experiência fontal:

Nisto se manifestou o amor de Deus por nós: Deus enviou seu Filho único ao mundo para que nele tenhamos a Vida! E nós reconhecemos o amor de Deus por nós, e nele acreditamos. Deus é amor: aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele. Quanto a nós, amemos, porque Ele nos amou primeiro (1 Jo 4,10.16.19).

Esta experiência é tão decisiva para a mística cristã, que poderíamos dizer, com Karl Rahner: “se assumimos a devoção ao Coração de Jesus como evocação e adoração supremas do fundamento sobre o qual repousa o conjunto do real e a unidade de nossa vida espiritual tão diversificada, então todo aquele que encontrou Jesus Cristo já venera seu Coração, mesmo que não utilize esta palavra”3. Pois a espiritualidade do Coração de Jesus não se fundamenta em hábitos de piedade ou num único estilo de linguagem, por mais expressivos que sejam. As formas de piedade e a linguagem que usamos são elementos fundados; não elementos fundantes. O elemento fundante - que dá sentido a todo o restante - é a experiência do amor de Deus: a obra salvífica do Pai, atuada pela oblação do Messias Jesus.

É esta experiência que pede de nós uma resposta, possibilitando-nos um “sim” à oferta da salvação. Daí prestarmos atenção às nossas respostas de amor ou desamor, atentos àqueles espaços onde se nega o amor a Deus e ao próximo. Foi, aliás, desta atitude que surgiu a chamada “reparação”: resposta ao amor divino ultrajado e não correspondido, seja na Igreja, na sociedade ou na pessoa humana. Reparação que significa: restauração da face de Cristo no rosto da humanidade desfigurada, construção da unidade, instauração da justiça e da misericórida, acolhida do Espírito.

Por ser enraizada na experiência do amor (ágape), a espiritualidade do Coração de Jesus desde cedo manifestou sua predileção pelos pobres e sofredores. Tornou-se aos poucos uma mística carregada de política e uma política animada pela mística. Pois o Coração de Jesus é revelação da melhor política: a política do Reino, que acredita na força transformadora da caridade, como recorda Paulo: “a fé opera pela caridade”(Gl 5,6). Eis o itinerário de seguimento pelo qual a espiritualidade cordiana mergulha no mistério de Cristo para, a partir dali, transformar o mundo.

A encíclica Haurietis aquas, já em 1956 ressaltava as conseqüências sociais do culto ao Coração de Jesus:

O culto do sacratíssimo coração de Jesus, por sua própria natureza, é culto ao amor com que Deus nos amou mediante Jesus e, ao mesmo tempo - da nossa parte - um exercício de amor a Deus e por todo ser humano. Em outras palavras: este culto nos propõe o amor de Deus para conosco como objeto de adoração, de ação de graças e de imitação, tendo por fim levar-nos à perfeição do amor a Deus e às pessoas, pela prática cada vez mais generosa do mandamento novo, deixado pelo Divino Mestre aos apóstolos, como herança sagrada: “Dou-vos um mandamento novo, que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei”(Jo 13,34).

Que devoção mais nobre, mais suave e mais salutar, uma vez que este culto se dirige todo à caridade de Deus? Finalmente, que estímulo mais eficaz do que o amor a Cristo - que a piedade para com o sagrado Coração de Jesus cada dia mais aumenta e favorece - para levar os cristãos à prática do Evangelho, sem a qual não pode haver verdadeira paz entre os homens, como nos adverte claramente o Espírito Santo, dizendo: “a paz é fruto da justiça”(Is 32,17).4

Passo a passo, a Igreja foi explicitando em vários documentos a identidade e os valores típicos da espiritualidade cordiana. Neste processo, o conteúdo devocional (localizado numa época ou numa cultura particular) passa pelo filtro das Escrituras e encontra na caridade evangélica seu referencial mais importante. Por trás dos “afetos do doce Coração”, dos “lamentos do Coração ultrajado” e das “promessas do Sagrado Coração às almas fiéis”, estão latentes a caridade e a justiça do Reino de Deus.

Indo dos elementos fundados àquele fundante (que é o amor salvífico do Pai, revelado em Cristo, no Espírito), podemos re-dizer esta devoção em base a seu sentido evangélico original. É o que sugere a encíclica Dives in misericordia, que vê no culto ao Coração de Cristo um registro de como a espiritualidade cristã assimilou a misericórdia divina, ao longo dos tempos:

A Igreja parece professar de modo eminente a misericórdia de Deus e venerá-la, voltando-se para o Coração de Cristo. De fato, o aproximar-se a Cristo, no mistério de seu Coração, permite-nos deter-nos neste ponto da revelação do amor misericordioso do Pai, que constitui, em certo sentido, o núcleo central - e ao mesmo tempo o mais acessível no plano humano - da missão messiânica do Filho do Homem.5

c. Nas raízes do humanum

Esta experiência de misericórdia não acontece de modo periférico. Tende sempre a atingir o “coração” da pessoa: nosso universo arquetípico, centro último do humanum, onde a graça atua de modo transformador, pois ali habita “o Espírito que nos foi dado”(Rm 5,5). A experiência do amor de Deus, quanto atinge em nós este nível, deixa ali uma inscrição à qual podemos retornar freqüentemente, lendo e relendo a presença de Deus em nossa vida.

Por isso, a espiritualidade do Coração de Jesus teve historicamente um berço místico. Situou-se primeiro na esfera do mistério e da contemplação, antes de receber uma explicitação da teologia e do magistério. Primeiro a experiência fundante. Depois, então, a palavra teológica. Uma “teologia do Coração de Jesus” seria totalmente vazia sem essa experiência de amar e ser amado à maneira de Jesus de Nazaré: tendo sempre presente o Deus-Abbá com sua ternura e promovendo relações de fraternidade. Nenhum discurso teológico, por mais belo que seja, pode substituir esse dom e esse empenho.

d. Mística e política

Personalidades como Matilde de Magdeburgo, Gertrudes de Helfta, Margarida Maria, João Eudes, Padre Chevalier, Teresa Verzeri, Leão Dehon ou Charles de Foucauld são personalidades místicas - no sentido forte e genuíno da expressão. Eles viveram a “contemplação” como postura fecundadora dos demais aspectos da realidade. Uma atitude de Reino, plenamente inserida na Igreja, com fortes doses de audácia e criatividade missionária. Souberam costurar com sabedoria os fios da oração e da ação, do silêncio e do anúncio, da mística e da política, em sínteses que ainda hoje nos surpreendem! A oração, os trabalhos, o apostolado, as fundações, as tribulações e desertos, as viagens e escritos, os caminhos novos que foram abrindo. Tudo era assimilado dinamicamente, até formar uma madura síntese espiritual.

e. Discípulos e missionários

A espiritualidade do Coração de Jesus é um programa de discipulado: seguir a Cristo na Escola do Coração. Assim como Antão seguiu a Cristo na Escola do Deserto e Francisco na Escola da Pobreza, há os que seguem Jesus na Escola do Coração. É um caminho evangélico. E os que fazem tal experiência, a fazem eclesialmente. Pois o amor é essencialmente comunicação: “o amor de Cristo nos impele!” (2Cor 5,14). “O que vimos e ouvimos, o que nossas mãos tocaram, isto vos anunciamos!”(1Jo 1,3). Daí os títulos de missão típicos das Congregações e movimentos do Coração de Jesus: Servas, Missionários, Missionárias, Oblatos, Apóstolas, Discípulas, Mensageiras, etc. “De fato, como compreender o amor de Cristo por nós, senão amando como Ele, por obras e em verdade?”6

f. Alcance psico-afetivo

Algo a ser repensado com sensibilidade pastoral, é o alcance psico-afetico desta espiritualidade. Examinando o testemunho de vários místicos, encontramos um retrato psicológico muito intenso, seja do Cristo contemplado, seja do próprio sujeito. Certamente a linguagem nos parecerá romântica. Mas não se falaria tanto de “afetos ardentes”, “paixão”, “coração suave” e “fornalha de amor” se isto não fosse significativo. Além disso, as expressões revelam também o lado realista do cotidiano, com seus conflitos e desafios: humildade/humilhação, renúncia a caprichos individuais, esforço para seguir a vontade de Deus, apostolado em situações difíceis, incompreensões sofridas no interno da Igreja ou da própria comunidade.

Há um sentimento de comunhão com o Coração ferido de Jesus, ao qual o místico procura consolar/reparar. Oferecendo-se gratuitamente, o sujeito encontra a graça do próprio consolo. Sem exigir nada, mas por “puro amor”. Decodificando esta linguagem, encontramos alguns sinais de gratuidade pessoal, capacidade de atravessar crises e, enfim, refazer-se. Afinal, consolar e ser consolado, oferecer e receber misericórdia é uma experiência que refaz. É algo que reorganiza a pessoa sem disfarçar as crises, tendo inclusive efeitos terapêuticos. Resulta num sentido à dor cotidiana, passando do vazio à esperança. Resulta em reconciliação a nível histórico (dos fatos) e a nível afetivo (das emoções). O erro seria reduzir a espiritualidade a este aspecto. Contudo, é honesto reconhecer aqui certos elementos psicologicamente positivos.

O desafio atual é reintegrar este componente psico-afetivo e mesmo terapêutico, sem cair no subjetivismo ou em experiências emocionais desordenadas, que não favorecem amadurecimento ou ficam excluídas de um caminho de discipulado.

Por outro lado, é bom lembrar que a experiência de cura-restauração está incluída na visão bíblica de misericórdia. Provar as misericórdias do Senhor é exatamente ser resgatado, liberto e curado por Deus. A cura atesta a ação libertadora de Javé (Êx 15,26) e comprova a eleição messiânica de Jesus: ele cura, porque foi ungido para manifestar o reinado de Deus sobre o mal e a morte (Mc 1,34). Suas curas são um sinal evidente do Senhorio de Deus, criador e mantenedor da vida. De tal modo que, nos primeiros séculos do cristianismo, Jesus era invocado sob o título soteriológico de archiátros: “arqui-médico” ou “médico primordial” da humanidade enferma7.

Verificando a situação fragmentada de tantas pessoas, seja pela perda de sentido, seja pelas carências sofridas, é oportuno retomar a cura como experiência da graça - oferta do Coração de Cristo e ação de seu Espírito em nós. Aliás, é isto que sugere João ao dizer “olharão para Aquele que transpassaram”(Jo 19,37). O texto reteme à imagem paralela da serpente erguida no deserto, à qual os hebreus feridos olhavam e eram curados. Curados, não de qualquer mal, mas do veneno que destruia sua vitalidade interior (o sangue, na visão judaica), levando-os depois à morte física. Não por acaso, a mística judaica chama Moisés de “médico” (e não só “legislador” como costumamos recordar). Se isto se aplica a Moisés, mais ainda pode ser atribuído ao Cristo Transpassado, por cujas chagas fomos curados (cf. Is 53,5).

g. Um Coração para os jovens

Neste sentido de cura/reconciliação, duas experiências podem ser lembradas. Uma, é o exercício de meditação - usado em certos retiros - em que, num momento de oração dirigida, o orientador propõe a “troca de corações” com Cristo. Isto se inspira em Ezequiel, onde Javé promete retirar nosso coração endurecido, pondo em nosso peito “um coração novo e um espírito novo”(Ez 36,25-26). Seguindo um roteiro de oração - e meditando em clima celebrativo - muitas pessoas testemunham a graça do perdão, da retomada de forças e do reviver de carismas. Este exercício leva a uma acolhida mais existencial do sacramento da reconciliação, com frutos que se extendem no cotidiano da pessoa.

A segunda experiência que cito, é o acampamento de jovens realizado na igreja do Sagrado Coração, em Paray-le-Monial (onde viveu Sta. Margarida Maria). Ali, a comunidade francesa Emmanuel promove encontros juvenis, com ampla participação. Os jovens acampam ao redor da igreja. Formam tendas de oração, leitura da Palavra e partilha. Um dos pontos altos é a retomada da história pessoal em chave de perdão: acolher-se para ser transformado por Deus, já que a graça toca mais eficazmente o que assumimos e lhe apresentamos para ser tocado. Vários testemunhos narram um encontro com o Coração de Jesus, chamado de “bondoso”, “compreensivo” e “misericordioso”.

Muitos descobrem o seu Coração na figura do bom-pastor ou à luz das parábolas da misericórdia (Jo 10 e Lc 15). Assim os jovens superam feridas, resgatam o sentido de suas relações (nem sempre sadias) e se sentem mais inteiros para os compromissos pastorais e familiares. Eles fazem uma experiência de saúde afetiva, no encontro com o Coração de Cristo.

O amor como oblação

Outro valor da espiritualidade cordiana é a constante memória do amor de Cristo, entendido e proposto como “oblação”. Focalizar a Cristo na ótica do coração é despertar para a gratuidade e a oferta, que constituem a oblatividade típica do amor evangélico.

a. Oblação: simplicidade e memória da aliança

Na Torah, a oblação é uma das ofertas que se pode apresentar a Javé:

Se alguém oferecer a Javé uma oblação, a sua oferenda consistirá em flor de farinha, sobre a qual derramará azeite e colocará incenso. E a trará aos filhos de Aarão, que são sacerdotes; tomará dela um punhado de flor de farinha e de azeite e todo o incenso, e o sacerdote os queimará sobre o altar, como memorial, oferenda queimada de agradável odor para Javé. A parte restante da oblação pertencerá a Aarão e seus filhos, parte santíssima dos manjares de Javé. (Lv 2,1-3)

Trata-se de um sacrifício não cruento, feito dos frutos da terra (flor de farinha), ungido (azeite) e perfumado (incenso). Além disso, a oblação tinha um caráter de justiça e de partilha: era oferta a Javé, em solidariedade com a tribo sacerdotal, que usava uma parte da oferenda para seu sustento. Podemos dizer que se tratava de uma oferenda de simplicidade: oferta de coisas acessíveis, menos dispendiosas que o sacrifício de touros e carneiros. A oblação, assim, é oferenda dos simples, e manifesta a simplicidade de coração daquele que oferece.

A oblação é também “memorial” da Aliança entre o Povo e Javé. Por isso, quando a oblação era feita com o oferecimento de pão, nunca se usava fermento. Em vez do fermento, temperavam a farinha de trigo com sal, chamado “sal da Aliança”(Lv 2,11-13). A ausência de fermento é recordação da primeira Páscoa e um convite à fidelidade. Há um nexo entre Aliança-oblação-fidelidade. Somente assim esta oferenda será “agradável” a Javé.

Aliança e fidelidade são inseparáveis. Isso exige coerência entre o altar (ritual) e o coração (disposição interior): “Sacrifício a Deus é um espírito contrito, coração contrito e esmagado, ó Deus, tu não desprezas... Então aceitarás os sacrifícios de justiça em teu altar”(Sl 50, 19.21). A oblação - como qualquer outra oferta - deve ser feita em atitude de reconhecimento, fidelidade e gratidão para com Deus. Os salmistas e profetas insistem nesta disposição interior de conversão. Somente assim, a oferta ritual será legítima, porque é fundamentalmente oferta do coração: “Quem pode subir à montanha de Javé? Quem pode ficar de pé no seu lugar santo?... Quem tem mãos inocentes e coração puro”(Sl 25,3-4). “Convertei-vos e abandonai as vossas transgressões! Criai um coração novo e um espírito novo!”(Ez 18,30-31).

b. A kênosis do coração

Jesus caminha na trilha dos profetas e aparece, no Novo Testamento, como expressão máxima da “oblação cordial”. Em todos os momentos Jesus transpira esta atitude pessoal de entrega e obediência generosa. Vive sem reservas. Jesus é inteiramente para o Pai e os irmãos. Desde a encarnação, passando por cada palavra, cada gesto, encontramos um Cristo solidário com as pessoas, na constante busca de fidelidade ao Pai. Jesus vivencia “cordialmente” a oblação, como disposição permanente de sua vida. A carta aos Hebreus resume numa frase essa kênosis de Jesus: “Eis que venho, ó Pai, para cumprir a tua vontade”(Hb 10,7).

Esta oblação fecunda toda a práxis de Jesus: o relacionamento filial com Deus, a sensibilidade e a compaixão para com o outro, a solidariedade, os gestos de perdão e de cura. Daí a prática de uma amor despojado e gratuito, um “amor-sem-lucro”, especialmente em relação aos últimos: os excluídos, fracos, enfermos, aleijados e pecadores, que nada poderiam oferecer em troca (às vezes nem mesmo a gratidão: cf. Lc 17,11-19).

Jesus assume o amor gratuito e sem fronteiras como prática autêntica do Judaísmo. É assim que ele avalia a Lei e as tradições, e se esforça por educar os discípulos à mesma atitude. Quer ver seus seguidores praticando o amor com a mesma generosidade (cf. Jo 13,35). É o que aprendemos das “parábolas da misericórdia”: o bom samaritano (Lc 10,29-37), o filho pródigo (Lc 15,11-32), a ovelha desgarrada (Lc 15,4-7), a dracma perdida (Lc 15,-10) e o bom-pastor (Jo 10,1-18). De um lado, estas parábolas mostram as duras exigências da caridade evangélica. Por outro lado, os textos são marcados pela festa e pela alegria, experiência feliz de quem sabe praticar o amor com generosidade: “Alegrai-vos comigo, porque encontrei minha ovelha perdida!”(Lc 15,6). Sem dúvida, a experiência da caridade sintetiza todas as bem-aventuranças: “Se compreenderdes isso e o praticardes, felizes sereis!”(Jo 13,17).

c. Nossa oblação na oblação de Cristo

Paulo exalta o lugar central da caridade na vida cristã (cf. 1Cor 13) e propõe a “oblação” como disposição para o seguimento de Cristo: “Exorto-vos, pois, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como oblação viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual”(Rm 12,1). “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus: esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo”(Fil 2,5.7).

Esta exortação de Paulo nos alerta para uma exigência muito atual: hoje, numa cultura com crise de gratuidade, onde o culto do Capital exige para si total dedicação e obediência, provocando exclusão e miséria, é urgente repensar temas como “oblação”, “misericórdia” e “gratuidade”. Assim como a Redenção é eficaz na medida da oblação de Cristo e da gratuidade de Deus8, também a evangelização será tanto mais eficaz quanto mais a vivenciarmos oblativamente: liberdade, entrega, obediência generosa à Palavra; capacidade de conviver com limites, perdão, superação de preconceitos; atenção solidária àqueles que “não têm preço” aos olhos do mundo, porque nada valem em sua pobreza.

Aqui a espiritualidade do Coração de Jesus mostra sua face profética. Pois nos remete ao essencial do evangelho, ao início e fim de todo o seguimento a Cristo: o amor. Amor que desafia nossas seguranças; amor que, na missão concreta, se problematiza e pede novas soluções de justiça e caridade; amor que vai orientar nossas posturas éticas e políticas; amor que se traduz em contínua solicitude pastoral. O amor evangélico é simples enquanto inspiração, mas tem a virtude de problematizar nossas práticas e valores. Pois nada que se refere ao amor pode ser resolvido superficialmente. Como disse Paulo: “a caridade de Cristo nos constrange...” (2Cor 5,14).

O transpassado: contemplação e solidariedade

A espiritualidade cordiana, além do que vimos, considera com muita atenção o Cristo Transpassado. É uma resposta ao apelo de João: “contemplarão Aquele que transpassaram”(Jo 19,37). O evangelista vê no Lado aberto de Cristo, de onde “saiu sangue e água”(19,34) um sinal profético: Jesus é o Cordeiro da nova páscoa que, com sua oferta, renova a Aliança e cumpre a Redenção. A literatura patrística posterior, bem como a mística, se referem com freqüência a esse sinal9.

Por ser uma intuição bíblica, enraizada na Aliança e nos Profetas, a contemplação do Transpassado e do Coração aberto permanece como algo típico da espiritualidade cordiana. Trata-se de um convite do evangelho, aliás muito significativo, quando o relemos no contexto histórico atual. Vivemos um momento de globalização e de novos empenhos pela humanidade e pelo planeta. Contudo, ressurgem largamente os conflitos, as injustiças e exclusões, por razões religiosas, étnicas ou econômicas. Nossos povos são continuamente atingidos pela fome, exílio e violência. A contemplação do Transpassado - presente nos transpassados de hoje - é uma atitude evangélica que comporta solidariedade e esperança.

Contemplação profética: reconhecer o amor de Deus nos seus sinais

Já veio a tarde. Aqui e ali se achegam algumas sombras. No Calvário, entre dois marginais, está exposto o Cristo Senhor, desfigurado pelas feridas. Esquecido e machucado. Um dos soldados lhe transpassa o lado. É o hábito romano de aplicar um golpe final, garantindo a morte dos condenados. Ali, diante do Transpassado, entre algumas mulheres, está João. Os olhos se voltam para aquela imagem escandalosa do Mestre crucificado. O que seus olhos contemplam é, ao mesmo tempo, trágico e revelador. De um lado a obscuridade e a tristeza. De outro, o significado oculto daquelas chagas, marcas da oferta redentora do novo Cordeiro. Como em outros episódios - porém de maneira desconcertante - João é desafiado a ver, crer e anunciar (os “verbos teológicos” de João):

Um dos soldados transpassou-lhe o lado com a lança, e imediatamente saiu sangue e água. Aquele que viu dá testemunho, e seu testemunho é verdadeiro; e ele sabe que diz a verdade, para que também vós creiais. Pois tudo isso aconteceu para que se cumprisse a Escritura, que diz: ‘Nenhum osso lhe será quebrado’. E ainda, em outra escritura: ‘Olharão para Aquele que transpassaram’ (Jo 19,34-37).

Inserido no drama da condenação de seu Senhor e Amigo, João voa alto com seu “olhar sacramental”. Num eco irresistível dos antigos Profetas ele vê o Transpassado e conclui: este homem injuriado, aniquilado até a morte, é o Cordeiro perfeito e sem mancha, cujo sangue jorra para a libertação do Povo (cf. Êx 12,21-22.46; 24,8 // Jo 19,33-37). Na cruz acaba de se cumprir a profecia de Zacarias: “Naquele dia haverá para a Casa de Davi e os habitantes de Jerusalém uma fonte aberta, para lavar o pecado e a mancha”(Zc 13,1; tb. Ez 36,24-26).

Naquele ícone desfigurado, João vê o sinal mais eloqüente da misericórdia de Deus. Naquilo que parece não ter sentido, seu olhar lê Revelação. Naquele que nenhuma beleza expressava, João contempla a glorificação do Filho de Deus. Pois é ali, no Crucificado-Transpassado que Deus manifesta a insensatez de sua ágape, ultrapassando nossa lógica com uma misericórdia sem limites. Amor de “paixão”. Amor débil e louco: manikós eros - na linguagem da Igreja bizantina. Amor que surpreende, porque é amor incondicional, fiel até as últimas conseqüências: “...amou-os até o fim!”(Jo 13,1). Ao ponto de esvaziar o Coração.

O Lado aberto e o Coração transpassado sintetizam a kênosis que Jesus viveu ao longo de toda a sua vida. É por isso martyrion: testemunha o amor divino de modo claro e interpelativo.

Com a oferta do coração a Aliança está selada. Escrita em “sangue e água”(1Jo,5-6). Nova e definitiva: “Tudo está consumado”(Jo 19,30). O Santuário fechado do templo de Jerusalém não tem mais sentido. Ao romper-se o coração de Jesus, rasgam-se as cortinas que ocultavam a Deus: “então o véu do Santuário rasgou-se de alto a baixo”(Mt 27,51). Não há mais muros, nem véus. Agora os simples e desqualificados, os que antes viviam excluídos da casa de Deus, podem entrar na intimidade do Senhor e experimentar sua ternura! Podem ingressar no coração do Pai através do coração aberto do Filho. “A abertura do coração é a entrega, feita para uso público, daquilo que se tem de mais íntimo e pessoal. O espaço aberto e desocupado pode ser freqüentado por todos”10.

Uma vez transpassado pelo povo (Is 53,5), este Coração acolhe a todos os que se achegam. É acesso para o coração da Trindade. Todos podem entrar e ali permanecer, para experimentar a bondade do Pai e as alegrias do Consolador.

Contemplação solidária: os transpassados de hoje

Como vimos, o Coração de Cristo esvaziou-se por inteiro. O sinal bíblico do Lado aberto, portanto, indica o aniquilamento interior e total. Aniquilamento do “coração”, em sentido antropológico. Resultado de todo um processo de liberdade e entrega. A vontade, as atitudes, os sentimentos, escolhas e esperanças estão, agora, no deserto da cruz. Jesus tem uma “alma crucificada”. Incompreendido pelas massas; traído por um discípulo; negado por um amigo; despido e humilhado publicamente. “Homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento” - como profetizou Isaías (Is 53,3). “Cordeiro que se conduz ao matadouro”(Is 53,7). Uma outra tradução diz “familiarizado com a enfermidade”. Pois o Transpassado tem as feridas da humanidade doente, ou seja: não-salva, carente de redenção11.

A paixão-amor de Jesus pelo povo terminou como paixão-padecimento do próprio Cristo. Na cruz as posições se invertem: Ele, que distribuiu vida e misericórdia, agora está carente de vida e misericórdia. Ele, que acolheu a sofredores e fracos, agora sofre uma humilhação sem defesa. Ele, que curou a tantos, está agora ferido e sem saúde. Jesus desce aos subterrâneos da debilidade. Nada do que é humano lhe escapa (2Cor 5,21). E um pouco antes de dar a vida e ser transpassado pela lança, ele faz a experiência do Salmista: “Do mais profundo, a vós eu grito!” (Sl 129,1).

No silêncio perplexo do Pai irrompe o grito do Filho: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”(Mc 15,34). Um grito em três dimensões:

- dimensão cósmica: porque é um grito solidário com toda a Criação, “que geme e sofre as dores do parto” esperando, ansiosa, o dia da Libertação (cf. Rm 8,20-22).

- dimensão histórica: recolhe em si o clamor dos escravos (Êx 3,7), a súplica dos exilados (Sl 136), o lamento dos enfermos e fracos (Sl 85), o grito dos órfãos e deserdados (Lm 5,2-3).

- dimensão messiânica: pois é grito do Servo Sofredor, Messias crucificado.

Jesus é presença de um Deus não só palavra, mas de um Deus que assume nossa carne e, assim, sua palavra se converte em grito. Na cruz, não se pode separar grito de Deus e grito do povo. Ambos estão crucificados na pessoa de Jesus. Os evangelhos o demonstram, com a frase: Eloi, Eloi, lemá sabactháni! (Mc 15,34). Este grito é uma transcrição do Sl 22,2. Feita, não em hebraico, mas em aramaico: a língua não-oficial, portanto não-litúrgica, usada pela gente simples. Esse grito situa Jesus entre os últimos, nas periferias do sistema e do poder. Jesus está literalmente excluído. Extra muros. Fora da cidade. Seu Reino não é desse “sistema” (kósmos: Jo 18,36). Ele escolheu estar com os de fora, os não-cidadãos, desprovidos de direito e proteção. Jesus se coloca entre os que são vítimas e, com eles, clama ao Deus das Promessas.

Olhando o Transpassado, recordamos o grito por ele dado, minutos antes. O mesmo Jesus padece uma paixão em dois atos: primeiro, a humilhação, a dor e o grito (crucificação); depois o silêncio, a morte e o Lado aberto (transfixão). A contemplação do Transpassado educa nossos olhos para ver os transpassados de hoje; educa nossos ouvidos para ouvir os clamores de hoje. Jesus continua misteriosamente presente nos transpassados que clamam com voz quase emudecida, denunciando a ausência de Deus, de dignidade e de pão. Gritos de muitos que sofrem a morte prematura, executados na cruz das guerras, da subnutrição, das políticas injustas e da miséria.

Discernir a cruz do povo na cruz de Cristo - e a cruz de Cristo na cruz do povo - preserva a contemplação do Transpassado da alienação. Se alguém está longe da periferia, em algum palácio cômodo de Jerusalém, banqueteando-se com os “de dentro”, basta abrir os ouvidos: vai escutar o grito do Crucificado e logo saberá onde fica o Calvário. Do mesmo modo, importa ouvir os clamores da gente sofrida (os “de fora”) e logo se saberá onde estão os crucificados da História. A realidade é ainda mais exigente, quando a injustiça ultrapassou a medida suportável e os transpassados sequer gritam… Pois a fraqueza e a desesperança já os calou.

Contemplação pascal: o Transpassado ressuscitou!

Para a fé cristã a cruz sempre foi e será um paradoxo: de uma morte nos vem a Vida. Por isso a cruz - como todo o mal visto desde a fé - desafia nossa esperança. É preciso mergulhar no Mistério para admitir esse paradoxo morte-vida. Pois, por mais que sejam gritantes os sofrimentos e a experiência do mal, não fazemos profissão de fé na morte. Mesmo diante do Crucificado-Transpassado. A morte é uma realidade mentirosa. Pretende ser a última, mas não é. Diz-se forte e definitiva, mas é fraca e nada consegue definir. Descobrimos que o drama de Jesus, no palco da História, tem um terceiro ato, escatológico e surpreendente: a Ressurreição.

O processo injusto que culminou na morte de Jesus não é o horizonte final da fé e da práxis do cristão. Ninguém se arriscaria crer e viver perante um deus morto, pois seria um não-crer e um não-viver. Em verdade, o horizonte último de nossa fé é a Vida. Seja a Vida oculta e latente sob as feridas do Crucificado-Transpassado, seja a Vida possível e sufocada sob a dor de tantos outros transpassados, nossos irmãos. Com a certeza da Ressurreição sempre haverá uma chama de esperança ali onde a morte procura reinar, mas a Vida permanece em sua sede de ser suscitada e re-suscitada. Aliás, importa lembrar, é somente neste horizonte definitivo da Ressurreição que a Cruz pode ser bem compreendida. Somente a Ressurreição é “definitiva”: porque define a cruz (lhe dá limites), define nossa fé (em que cremos) e define nossa práxis (o que praticamos). É nesta moldura de Ressurreição que contemplamos, finalmente, o Transpassado.

Jesus Transpassado é o cordeiro pascal, preparado ao longo de 33 anos para restaurar a vida do povo e a Aliança em Israel. Sua oblação é uma “oferta de semente”, destinada a gerar frutos de esperança e redenção. Ele resgata o povo das mãos da morte e dá um sentido novo à história humana. Esta “oferta para a vida” faz da oblação de Cristo um evento pascal, distinto dos demais sacrifícios do Antigo Testamento. Jesus é morto como resultado de sua fidelidade ao Deus da Aliança, seu Pai12.

Sendo um sacrifício novo, distinto dos demais, realizado sobre o altar da fidelidade e da aliança, a morte redentora de Jesus é também “definitiva”: a partir dela, nenhum outro sacrifício humano, nenhuma outra morte, pode ser aceita. O sacrificio de Cristo nega, supera e condena todas as formas de sacrificialismo que a injutiça poderá instaurar ao longo da História. É morte que derrota a morte. É um grande “não” escatológico, pronunciado com violência contra as demais mortes.

A espiritualidade do Coração de Jesus encontra no Transpassado-Ressuscitado uma luz nova: a luz da ressurreição. Pois a contemplação do Coração transpassado era muito marcada pelo dolorismo, explicitando pouco o sentido pascal que a própria transfixão possui. Tanto é, que muitos autores consideravam os Padres da Igreja e os místicos medievais os primeiros exemplos de contemplação do Transpassado (os quais meditavam sobretudo a paixão e morte de Jesus). Porém, este olhar para o Transpassado começa antes, com os primeiros discípulos de Jesus, e é uma experiência claramente de ressurreição:

À tarde do mesmo dia, o primeiro dia da semana, estando fechadas as portas onde se achavam os discípulos, por medo dos judeus, Jesus veio e, pondo-se no meio deles, lhes disse: ‘A paz esteja convosco!’ - Tendo dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos, então, ficaram cheios de alegria por verem o Senhor. Ele lhes disse de novo: ‘A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, também eu vos envio’. Dizendo isso, soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei os Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados, lhes serão perdoados; aqueles aos quais retiverdes, lhes serão retidos’ (Jo 20,19-23).

O Transpassado, aqui, é o Cristo vivo e ressuscitado. Suas chagas remetem à cruz, mas não se fixam nela como se fosse o último ato do Mistério Pascal. O primeiro ato (morte) e o segundo (lado aberto) são coroados por um terceiro: a ressurreição. Para João, a ferida do Lado recorda a cruz; mas é também prova de que o crucificado ressuscitou!

Reconhecer no Transpassado o Jesus que agora vive, é algo decisivo para a fé dos discípulos. É o que demonstra Tomé: ausente da comunidade naquele momento, negou-se a crer no testemunho dos demais e necessitou fazer pessoalmente a experiência. Também a ele Jesus anuncia a paz, envia e mostra as chagas das mãos e o lado aberto. Assim ele pôde assimilar a cruz e recuperar sua fé no Messias Jesus:

Põe aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos! Estende tua mão e põe-na no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crê!’ Respondeu-lhe Tomé: ‘Meu Senhor e meu Deus! (Jo 20,27-28)

A comunidade dos discípulos realiza a primeira experiência eclesial de contemplação do Lado aberto (após a experiência pessoal de João). Nesta experiência a cruz é interpretada à luz da ressurreição e as promessas de Jesus são plenamente cumpridas. Ele lhes assegura os dons pascais que sustentarão o testemunho da comunidade: a paz; a alegria; o Espírito; o perdão; a missão; a fé.

Mais: a cena nos ajuda a olhar para trás, e perceber que há um sentido nos eventos vividos antes, desde os anúncios da paixão até a manifestação do Transpassado aos apóstolos. No evangelho de João, o Transpassado concede aos discípulos um “primeiro pentecostes”, anterior àquele narrado por Lucas. Já na cruz, Jesus não morre, mas “entrega (ou dá) o Espírito”. A “água” que jorra de seu coração aberto é sinal visível deste Dom (cf. Jo 19,30.34). Isto é esclarecido pelo próprio evangelista:

Jesus disse em alta voz: “Se alguém tem sede, venha a mim. E beba aquele que crê em mim! - Conforme a palavra da Escritura: de seu interior jorrarão rios de água viva”. Ora, ele falava do Espírito que deviam receber aqueles que tinham acreditado nele; pois não havia ainda Espírito, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado. (Jo 7,37-39)

Assim, a contemplação do Coração aberto é anunciada por sinais, situa-se na cruz e se projeta até a ressurreição. Séculos mais tarde, esta passagem sinal-cruz-ressurreição é feita por Gertrudes de Helfta, Margarida Maria e outros, numa experiência coerente com o relato de Jo 20,19-23. O Cristo que estas mulheres contemplam é ao mesmo tempo o Transpassado e o Ressuscitado. Cristo lhes mostra suas chagas e o lado aberto. Não esconde o realismo da cruz, mas é uma presença viva e portatora de esperança: Ele se aproxima, fala e expõe seu Coração palpitante (imagem de um amor vivo).

Hoje, não usamos as mesmas imagens que Gertrudes ou Margarida Maria. Contudo, o Evangelho continua nos convidando à contemplar o Coração do Ressuscitado. Para isto, nada mais inspirado que o roteiro proposto pelo próprio João, o discípulo do Coração de Jesus por excelência. É ele quem presenciou o sinal pascal do Cordeito transpassado, quem se alegrou por reconhecê-lo vivo na comunidade e, finalmente, quem profetizou sua manifestação gloriosa:

Eis que Ele vem, glorioso, sobre as nuvens! E todos o verão, até mesmo os que o transpassaram. (Ap 1,7)

Um sentido que se renova

Nestas páginas falamos do “coração”. Tocamos pouco a pouco em seu mistério, até desvendá-lo como Coração Transpassado. De um lado, sinal do amor louco de Deus, que desconcerta e se oferece à contemplação. De outro, provocação da misericórida do Pai, que nos envia aos transpassados da História, para os curar e resgatar, como fez Jesus.

Assim, a espiritualidade cordiana, tão conhecida em suas expressões tradicionais, mostra seu vigor evangélico e sua permanente novidade. Pois não toca em questões periféricas da fé, mas tem a graça de nos comunicar o que é essencial ao cristianismo: o amor-doação de Deus, visível no Coração do Filho Jesus. Espiritualidade, portanto, cheia de densidade:

- Densidade evangélica: sendo eminentemente cristológica, a espiritualidade cordiana revela o que constitui o “coração” do Redentor: sua oblação amorosa, visível na fidelidade ao Pai e no serviço aos irmãos. Na espiritualidade do Coração de Jesus encontramos uma “suma” de todo o evangelho.

- Densidade mística: que nos põe face-a-face com o Amor divino, não para ser especulado, mas para ser experimentado. Esta tem sido a marca forte da espiritualidade cordiana ao longo da História: o testemunho de diversos homens e mulheres, místicos, que viveram a caridade em sua beleza e vigor, como amor experimentado e amor partilhado. Hoje tentamos recuperar essa experiência. É isto que faz de uma espiritualidade algo genuíno e historicamente significativo.

- Densidade pascal: desde João, conhecemos este Coração como “fonte de vida e ressurreição” (litania do Coração de Jesus). Enfim os transpassados do mundo podem erguer-se do meio da dor e reavivar sua esperança! Jesus realiza a vitória da vida sobre a morte. Vitória do irrefreável eros divino contra a thánatos absurda. E desta vitória participam todos os que, fiéis como o Servo Sofredor, souberam resistir à morte com sua justiça e sua bondade.

- Densidade, enfim, apostólica: toda experiência de amor deve ser experiência de partilha. O amor exige ser comunicado. A espiritualidade cordiana nos faz ver os desertos, onde a caridade ainda não foi semeada. Desertos que interpelam nossa prática e interferem em nossos discernimentos. Sobretudo numa realidade de pobreza radical, onde a falta de projetos históricos e utópicos nega não só o pão, mas também a esperança.

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Bibliografia

BERNARD, C.: Le Coeur du Christ et ses symboles, Paris, Tequi, 1981.

CARMINATI, A.: È venuto nell’acqua e nel sangue, Bologna, EDB, 1979.

DE LA POTTERIE, I.: Il mistero del Cuore trafitto, Bologna, EDB, 1988.

DE MARGERIE, B.: Histoire doctrinale du culte au Coeur de Jésus, Paris, Mame, 1992.

GAIDON, M.: Un Dieu au Coeur transpercé, Paris, St.-Paul, 1980.

RAHNER, K.: Teologia del Cuore di Cristo, Roma, ADP, 1995.

TESSAROLO, A.: Theologia Cordis, Bologna, EDB, 1993.

1 Recordando estes autores, cito: RAHNER, K.: Teologia del Cuore di Cristo, Roma, ADP, 1995; De La POTTERIE, I.: Il mistero del Cuore trafitto, Bologna, EDB, 1988; CARMINATI, A.: È venuto nell’acqua e nel sangue, Bologna, EDB, 1979.

2 Cf. Gaudium et spes, n. 22

3 Citado em VV.AA.: Coração de Jesus e espiritualidade de Reparação, S. Paulo, Loyola, 1989, p. 27.

4 Haurietis aquas, ed. em português, pp. 33-34 e 38. Cf. AAS 48(1956)), p. 345 e 350.

5 Dives in misericordia, ed. em português, n. 13. Cf. AAS 72(1980), p. 1219.

6 Congregação dos Padres do Coração de Jesus (dehonianos): Constituições, n. 18.

7 Cf. DUMEIGE, G.: “Le Christ médecin”, in Dictionnaire de Spiritualité, vol. X, c. 892-893, Paris, 1980.

8 Cf. Lumen gentium, n. 3.

9 Cf. CARMINATI, A.: È venuto nell’acqua e nel sangue. Publicado em português pelas Ed. Paulinas: “Ele veio pela água e pelo sangue”.

10 BALTHASAR, H.U.: Mysterium salutis, III-6, Petrópolis, Vozes, 1974, p. 90.

11 Tanto salus (em latim), quanto yashá (em hebraico), significam ao mesmo tempo salvação e saúde. Quando Deus opera a salvação, oferece ao ser humano a graça de ser liberto, resgatado, refeito e curado. A pessoa volta, assim, ao shalom original: reencontra-se com a beleza e a paz da primeira criação. Por isso, toda ação salvífica é também re-criação pelo poder de Deus, que faz novas todas as coisas. Temos aqui uma visão integral da salvação, que atinge a inteireza da pessoa: de sua psique a seu corpo, de seus desejos às suas relações, de sua dimensão individual à qualidade de membro do Povo eleito.

12 Novamente Lumen gentium, n. 3.