TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE

PODE-SE OFERECER OS SOFRIMENTOS A DEUS?

Charles Delhez, sj

Há, na linguagem espiritual cristã, uma expressão que foi muitas vezes utilizada: oferecer o sofrimento. Assim, o Apostolado da Oração convida os seus membros a começar o dia com o oferecimento das suas alegrias e dos seus sofrimentos. A expressão não será feliz, na medida em que não se pode oferecer senão coisas boas. Ora, o sofrimento é mau por definição. “Não se oferece coisa alguma má, dizia um canceroso entrevistado por André Sève. Cristo não ofereceu os seus sofrimentos ao Pai, ofereceu-Lhe aquilo em que Se tornava nesses sofrimentos: alguém que ia, como bem diz S. João, até ao extremo do amor, até ao cume do amor que nos salvava...” (La Croix, 20 de Abril de 1988).

Existe, portanto, um perigo em falar deste modo. Dum ponto de vista religioso, Deus poderá ser visto como um sádico e, dum posto de vista psicológico, há o risco de alimentar uma mentalidade dolorista. Ter-se-á de reconhecer que a espiritualidade cristã nem sempre se livrou desta praga. Num jornal paroquial, fomos encontrar um editorial intitulado “É fecundo”. Começava por esta afirmação: “Creio que o sofrimento foi concedido por Deus ao homem num grande propósito de amor e de misericórdia”. Cá está uma valorização do sofrimento que não é aceitável. Seria necessário não esquecer a oração de Cristo no Jardim das Oliveiras: “Abba, Pai, tudo Te é possível, afasta de Mim este cálice!” Mas acrescenta (quanto tempo terá sido preciso para que pudesse pronunciar esta segunda frase?): “Todavia, não se faça como Eu quero, mas como Tu queres” (Mc 14, 36), vontade que não é que Cristo sofra, mas que vá até ao fim da sua missão de amor.

De facto, nesta atitude espiritual do oferecimento, há um nexo implícito ou não. O que é agradável a Deus é o amor que pode inclusivamente situar-se no coração do sofrimento. Tal foi a atitude de Cristo.

A liberdade transfigura o destino

Por vezes tudo parece escapar-nos. Somos apanhados numa situação inextricável, cujos dados não controlamos. É o caso de Jesus, na noite de Quinta feira Santa. É cercado por todos os lados pelo inevitável. Irá deixar-Se abater, cair no desespero ou revoltar-Se ou atirar o seu “ou vai ou racha”? Mas para quê? Porquê esforçar-se em vão? Os dados estão lançados. Nada mais Lhe restava que o sabor amargo, rasto de cinzas. Ou então saberá Ele dar sentido ao que Lhe cai em cima?

Ei-lo apanhado na grande malha da história. Vai fazer nascer um cântico de amor. Durante a última refeição, ouve-se-O dar graças e cantar os salmos. Toma a sua vida entre as mãos, como se toma o pão, e dá-a aos seus amigos: “Isto é o meu corpo entregue por vós”. A sua morte torna-se um dom. O que poderia ter sido um escândalo torna-se oferenda a Deus. Aquilo que deveria ter provocado a separação definitiva torna-se sinal de amizade. Com Jesus, a morte muda de sinal. Aquilo que parecia não passar de uma fatalidade torna-se expressão do amor. “Não há maior amor do que dar a vida pelos amigos! (Jo 15, 13).

Mesmo quando tudo parece escapar-nos, resta-nos sempre a liberdade de dizer não ou de dizer sim, de se revoltar ou de consentir, de odiar ou de amar. Nem sempre se podem mudar as circunstâncias e os acontecimentos, mas podemos sempre mudar-nos a nós mesmos, converter o olhar, transfigurar a vida graças ao amor.

Dando sentido à sua vida, Jesus reencontra o sentido de toda a vida. Esta é para ser dada e não para ser destruída. A vida deixa de ser bela por ser mais longa, mas por ser oferecida. Poderíamos pensar que teria sido mais útil para Jesus continuar a sua missão. Ora, paradoxalmente Ele conseguiu que se tornasse tal, aceitando que se pusesse termo à sua missão.

Não nos encontramos já na lógica do rentável mas do gratuito. O que constitui a beleza de um presente não é a sua utilidade, mas aquele que o faz e o amor que nele põe. “Jesus oferece, naquela noite, a obra-prima da sua vida, marcada com o seu sangue. Naquela quinta-feira, Jesus juntou todos os seus dias num único ramalhete para o oferecer aos homens sob o olhar do Pai” (Mons. Jacques Noyer, Bispo de Amiens - La Croix, 8 de Abril de 1993).

“Apesar do ‘sem sentido’…”

“É errado pensar que o sentido pode encontrar-se em qualquer lado, independentemente daquele que sofre...”. É ao homem que compete dar sentido aos acontecimentos que o afectam, para manter em aberto a sua história. A questão a colocar não é: qual é o sentido desta provação? Mas sim: Como dar sentido à minha vida, apesar do ‘sem sentido’ desta provação?

A fé não elimina da vida do cristão a sensação de que certos acontecimentos da sua vida são inexplicáveis, insensatos. Mão quero como sinal senão a última palavra de Jesus, antes de morrer, segundo os Evangelhos de Mateus e de Marcos: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?”... Não, decididamente, a fé não retira a sem-razão de certos acontecimentos, o sentimento de que certos acontecimentos da minha vida melhor seria que nunca tivessem acontecido. A fé permite, isso sim, não deixar-se fascinar por estes sentimentos de estupidez e de absurdo, pelos “buracos negros”. Permite encontrar agora e sempre novos recursos para a luta em prol do sentido da vida” (Xavier Thévenot, Souffrance, bonheur, éthique; Molhouse, Salvator, 1990, pp. 28-30).

Uma utilização sobrenatural do sofrimento

Arlete, dezesseis anos, tem leucemia. Na altura era uma doença incurável. No coração dessa doença que ela sabe ser mortal, descobre um Deus que a ama e que a espera. Põe-se a espalhar alegria por todas as enfermarias do hospital. Volta-se para aqueles que sofrem e restitui-lhes o gosto de viver. A sua vida ganha sentido, quando a morte já lhe estende a mão.

Um dia, no entanto, não consegue controlar a sua dor e grita. A imagem de menina corajosa sofre um rude golpe. Na oração da noite, revendo o seu dia, não pode orgulhar-se de si mesma: “Pois é... Não sou uma santa! E se eu não pude - desta vez - sofrer “em silêncio”, ofereço-Te ter berrado. É tudo!” (J’offrirai d’avoir gueulé, lettres et notes d’Arlette, apresentadas por Joseph Brosseau, Ed. Ouvrières, 1968, p. 133). Em vez de se abespinhar e de revolver em todos os sentidos a sua humilhação, apresenta-se a Deus, oferece-se tal como é: não como heroína, campeã do sofrimento estóico, mas como alguém que “se desmanchou”.

Quando a dor física ou moral nos aperta, torna-se o nosso único horizonte. Somos tentados a nada mais ver senão a ela e de nada mais falar senão dela. O “oferecer” é tomar uma prioridade por outra, continuar a fazer dela o objecto dos nossos pensamentos e do nosso amor. O horizonte permanece aberto. O que já tinha sabor a morte tornou-se lugar de uma misteriosa comunhão.

Jesus queria amar até ao fim. Quando o sofrimento se apresentou, não recuou. Tomou-o entre mãos para fazer dele uma expressão do seu amor. Ofereceu-o: é por vós que eu o aceito. Isto é o meu corpo entregue por vós, o meu sangue derramado por vós (cf. Lc 22, 19-20).

Porque oferecida, porque suportada pelos seus discípulos, a cruz escandalosa tornou-se fecunda, muito mais do que os milagres que tinha realizado. Na Cruz é o amor de Cristo que nos salva e não só o seu sofrimento.

Jesus colocou o sofrimento ao serviço do amor. O mal nada perdeu da opacidade do seu mistério, mas pode agora ganhar sentido, à luz da ressurreição. Era isso com certeza que a filósofa Simone Weil queria significar ao dizer que não se trata de procurar um remédio sobrenatural para o sofrimento, mas uma utilização sobrenatural do sofrimento” (Simone Weil, La Pesanteur et la grâce, Presses Pocket, p. 96).

Há nesta atitude de oferecimento bem entendida qualquer coisa de fecundo. Sofro, precisamente porque já não consigo encontrar um sentido. “Não me queixo de sofrer, mas de sofrer por nada”, dizia o fisiologista Claude Bernard (1813-1878). Por que me mina este cancro? Por que é que o meu filho morreu? Não há resposta para perguntas destas. A tentação do absurdo espreita aquele que o mal atingiu em cheio. Se não consegue dar um sentido ao seu sofrimento, “diz-se que sofre por nada; sofre não apenas com o sofrimento, mas com o absurdo do sofrimento” (Jaez Guino, Mon testament philosophique, Paris, Presses de la Renaissance, 1997, p. 245). E Jean Guitton ilustra esta verdade com uma consulta ao dentista. Se nada se compreende do porquê da operação cirúrgica e da sua utilidade, a dor física só pode ser maior.

Não é caso, claro, para correr atrás do sofrimento. Mas quando ele se apresenta, que havemos de fazer? Aumentá-lo, transformando-o em ódio, em rancor, em desespero? Ou fazer dele uma expressão, dolorosa é certo, do amor? O poeta indiano Tagore chegará a escrever: “A lição mais importante a aprender, não é que o sofrimento existe, mas que depende do homem transformá-lo em alegria”. E o Teólogo Jean-Pierre Jossua refere esta máxima: “Para aquele que está na tristeza há três caminhos abertos: aquele que se encontra no nível normal chora, aquele que se encontra mais acima cala-se, aquele que se encontra no topo faz da sua tristeza um cântico” (Jean-Pierre Jossua, Lettres sur la foi, Cerf, Paris 1980, p. 146).

Inocular amor

Quando se fala de oferecer o sofrimento, não se trata de o acrescentar ao de Cristo, mas de o associar ao d’Ele, quer dizer, viver com Ele, no mesmo espírito com que Ele viveu o d’Ele. Ele salvou o mundo “inoculando” amor no próprio coração do sofrimento, lá exactamente onde ódio, inveja, revolta facilmente se instalam. Não acrescentamos, portanto, o nosso sofrimento ao d’Ele; aceitamos que na cruz Ele já o tenha tomado sobre Si.

Um sofrimento “oferecido” já não é sofrimento. Torna-se amor. Encontra fecundidade, a do amor. Ganha sentido, um sentido que porventura só compreenderei muito mais tarde, quando puder fazer a releitura da minha vida. Verei então toda a trama secreta. Perceberei que no fio das minhas escolhas eu delineei uma história magnífica. Surpreendido, descobrirei os frutos. O mundo, com efeito, será salvo pelo amor, mais forte do que a morte. “Sofrer com amor, dizia um ermita, não é sofrer, é amar”.

Batem-nos à porta tantos sofrimentos, sem que os tenhamos escolhido. O lema espiritual ‘oferece a Deus os teus sofrimentos’, escreve Xavier Thévenot, precisa de uma operação de clarificação. Como se disse, o poder desta fórmula é notável: “ela descentra de si mesma a pessoa sofredora e fá-la compreender num instante que aquilo que tem saber a morte nela pode tornar-se o lugar duma permuta com Cristo que a ama”. Tudo pode ser então transfigurado.

Algumas linhas do filósofo Gabriel Marcel podem ser um feliz comentário a esta atitude espiritual: “Eu estaria muito mais inclinado a dizer, ao contrário, que, em princípio, o sofrimento é mau, mas que a alma humana, em determinadas circunstâncias, (...) pode livremente, quero dizer por um acto livre, transformar esse mal não propriamente num bem, mas num princípio susceptível de irradiar amor, esperança e caridade. É preciso ainda que a alma dolorosa se abra mais aos outros, em vez de se fechar em si mesma ou na sua ferida” (Gabriel Marnel, La dignité humaine et sés assises existentielles, Paris, Aubier, 1964, pp. 142-143).

Enquanto caminhamos cá em baixo, enquanto não for alcançada a vitória final, não escaparemos ao sofrimento. Ele está aí. É preciso combatê-lo claro. Só se o recebe de caras. Não sairemos sem sofrer. Mas evitando-o sistematicamente, corre-se o risco de passar ao lado de valores essenciais.

Essa é a audácia quase escandalosa do cristão: o sofrimento que se afigurava caminho sem saída pode tornar-se caminho de salvação. Podemos alcançar Cristo que, por amor, “tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores” (Mt 8, 17). Pelo seu amor, vivido até sobre uma cruz, salvou os homens. Já o Antigo Testamento tinha percebido que o sofrimento do justo pode ser salvador para os próprios injustos. O Cântico do Servo sofredor (Isaías) proclama isso mesmo: “Pelos seus sofrimentos, o Justo, meu servo, justificará a muitos e tomará sobre Si as suas iniquidades (Is 53, 11b). Do íntimo da sua revolta, Françoise Verny escreveu: “Associando-me a Ele, confiro um valor às minhas pequenas misérias, torno o mal, se não compreensível, ao menos tolerável, porque se inscreve num plano divino e desemboca na misericórdia” (Françoise Verny, Pourquoi m’as-tu abandonné?, Grasset 1998, p. 159).

A raiz de todo o sofrimento é a recusa do amor. Para que o mal cesse os seus estragos, é indispensável atacá-lo na raiz, inoculando amor. Sem amor, a nossa humanidade acaba. Com ele, tudo é possível. Jovem, Teresa de Lisieux queria ser tudo, tão grande era o seu desejo de amar a Deus e de chegar a todos os homens. Um dia, na oração, compreende que o essencial era o amor. Amar onde não há amor. No coração da floresta ou na capela do seu Carmelo, numa cozinha ou num escritório, criando os próprios filhos ou dedicando-se aos dos outros.... “A minha vocação, por fim encontrada, a minha vocação é o Amor!...” , exclama ela. Amando, ela estaria no coração deste corpo que é a Igreja. Esta vocação irá vivê-la no seu leito de sofrimento. Com 24 anos, morrerá de tuberculose, doença na altura incurável.

O amor é de tal forma grande, que pode residir na mais pequena coisa, na mais pequena palavra, no gesto aparentemente mais insignificante. E isso está ao alcance de todos, até mesmo do enfermo retido no seu leito de hospital ou da pessoa deprimida. O trabalho mais duro, mais mecânico ou mais solitário, se é feito com amor, transfigura a nossa terra e cobree-a de luz.

Ama, mesmo que não te sintas bem na tua pele, que ainda não possuas aquilo que desejas ou que os teus problemas ainda não estejam resolvidos. Mesmo que te encontres na pobreza, ou na miséria, ama. Ama também quando fazem troça de ti ou és escarnecido. Ama, mesmo quando não há resposta e te julgas ignorado. Ama, mesmo que o sofrimento físico ou moral venha beijar as praias da tua vida. Se amas onde te encontras, um fruto há-de amadurecer em qualquer parte.

Pierre Theilhard de Chardin escrevia a sua irmã Margarida gravemente enferma: “Ó Margarida, minha irmã, enquanto eu, dedicado às forças positivas do universo, corria continentes e mares, apaixonadamente ocupado em ver subir todas as cores da terra, tu, imóvel, estendida, metamorfoseavas silenciosamente em luz, no mais profundo de ti mesma, as piores sombras do mundo. Aos olhos do Criador, diz-me qual de nós terá a melhor parte?”

O mal não pode resistir indefinidamente aos avanços do amor. O túmulo não pôde conter Aquele que tanto tinha amado. As lágrimas não podem banhar sem fim o rosto daqueles que aprenderam com Jesus a arte de amar. Daquilo que era um instrumento de suplício, Jesus fez um trono de amor. Deste “vale de lágrimas” não fará Ele um Reino de alegria?

No crisol do sofrimento

No momento em que se passa pelo sofrimento, este pode parecer absurdo e levar à revolta. Mas, quando se sai dele e se olha para trás, fazendo o balanço dessas semanas ou desses meses que pareciam estéreis, descobre-se por vezes que afinal de contas, a provação foi benéfica. Fez-nos sair de nós mesmos e do nosso egoísmo. Purificou-nos.

Encontrar um sentido para o sofrimento, é também vê-lo como um tempo de crescimento. “E, de derrota em derrota, ele crescia” (R. M. Rilke). A crise que dá origem ao sofrimento pode ser salutar e suscitar um enriquecimento de humanidade.” As coisas mais exigentes são muitas vezes as que trazem as mais profundas satisfações, os invernos rigorosos preparam as mais belas colheitas” (Léo Missinne, Vers une vieillesse pleine et hereuse, St-Augustin 1998, p. 81), escreveu Léo Missinne. Um vitivinicultor explicou-me um dia que o melhor vinho não é aquele que provém de vinha plantada em terreno plano, mas nas encostas, onde as raízes têm dificuldade em abrir caminho no solo pedregoso. “Quanto mais a vinha sofre, disse-me ele, melhor é o vinho”. Mas ao contrário da vinha, em que o resultado é automático, a transformação do sofrimento em lugar de crescimento é, no homem, fruto da sua liberdade.

“Do caminho dos sofrimentos, sai-se com o coração ferido ou bronzeado” (Xavier Emmanuelli, L´homme n’est pas à la mesure de l’homme, Presse de la Renaissance, 1998, p. 51), confidenciava alguém um dia a Xavier Emmanuelli, um dos fundadores dos Médicos sem Fronteiras. O verdadeiro risco do sofrimento, de facto, consiste em fazer-nos renunciar ao bem: “Não queres sofrimento, portanto não queres amar” - dizia uma personagem de Claudel. Mas o sofrimento pode também ser o lugar de uma purificação, de uma verdadeira criação e, à sua maneira, contribuir para o bem. As dores da criação serão sempre dolorosas, mas são para a mãe ocasião para amar e o filho só terá mais valor a seus olhos.

Quanta solidariedade, frente às catástrofes naturais, e quantos gestos de simpatia, quando alguém sofre. Quando se faz o balanço de uma guerra, pode-se verificar que ela também permitiu actos de heroísmo, gestos de amor, pensamentos nobres. Uma oração encontrada sobre o Judeu piedoso no campo de Treblinka exprime isso mesmo de maneira desconcertante : “Senhor, quando vieres na tua glória, não Te lembres apenas dos homens de boa vontade. Lembra-Te também dos homens de má vontade. Mas não Te recordes das suas crueldades, das suas sevícias, das suas violências. Recorda-Te dos frutos que produzimos, devido àquilo que nos fizeram. Recorda-Te da paciência de uns, da coragem de outros, da camaradagem, da humildade, da grandeza de alma, da fidelidade que despertaram em nós. E faz, Senhor, que os frutos que produzimos sejam um dia para sua redenção”.

Se há um momento para se revoltar contra o mal, também o há para consentir nele e para deixar germinar o bem que ele permite. Não é, obviamente, razão para querer o mal em vista do bem, mas quando ele aí está, ainda há um bem que é possível. Se nunca se pode escolher o mal, é preciso, no entanto, reconhecer que ele pode ser ocasião de um bem maior. Felix culpa - feliz falta - canta a Liturgia pascal a propósito do pecado do homem que lhe valeu tal Salvador. Assim, do sofrimento o homem pode fazer a expressão do seu amor, e da cruz Deus pode fazer nascer uma fonte viva.

Que fiz eu?

O sentido do sofrimento não será nunca uma resposta clara à questão “Porquê eu?”, mas à questão “que fiz eu?”. É bom, portanto, de quando em vez, reler a nossa história e fazer dela um cântico de acção de graças. Passada a fase bem compreensível do questionamento doloroso e até da revolta, poderemos regozijar-nos pelo caminho percorrido.

Marcel Auclair, num texto espantoso põe S. Bernardete a cantar uma verdadeira ladainha de acção de graças no momento da morte. Mostra-nos assim que a santidade é uma transfiguração do quotidiano: o azedume transforma-se em acção de graças. Tudo aquilo que a nossos olhos é motivo de revolta torna-se lugar do encontro com o Deus misterioso. Esta oração não é para ser compreendida, é para colher no coração de quem a viveu: “Pela miséria do Pai e da Mãe, pela ruína do moinho, pela prancha da desgraça, pelo vinho da fadiga, pelas ovelhas ranhosas, obrigado, meu Deus! (...) Obrigado, obrigado! Porque, se houvesse na terra criança mais ignorante e mais imbecil, tê-la-íeis escolhido a ela... (...) Obrigado, por isso, por ter sido Bernardete, ameaçada de prisão por Vos ter visto, olhada pelas multidões como um animal curioso, esta Bernardete tão ordinária, que ao vê-la se dizia ‘É isto...’ (...), por este corpo digno de comiseração que me destes, por esta doença de fogo e de fumo, pela minha carne apodrecida, pelos meus ossos cariados, pelas minhas irmãs, pela minha febre, pelas minhas dores surdas ou agudas, obrigado, meu Deus! E por esta alma que me destes, pelo deserto das securas interiores, pela vossa noite e pelos vossos clarões, pelos vossos silêncios e pelos vossos relâmpagos, por tudo, por Vós presente ou ausente, obrigado, Jesus!” (Marcel Auclair, Bernardette, Bloud et Gay, Paris, pp. 232, 241 e 242).

No sofrimento pode-se também viver aquela solidariedade espiritual entre os vivos, que a fé cristã chama ‘Comunhão dos Santos’. “É o dogma que eu prefiro, na Igreja católica”, declarava Françoise Dolto, a psicanalista das crianças. “Uma só pessoa que sofre contribui para ajudar outras pessoas em qualquer parte da terra, não sofre por nada... e, graças à oração de outras pessoas, um amigo pode ser confortado” (em François Vayne, Comblée de grâce, Paris, Nouvelle Cité, 1988) Janine Chanteur, mãe de uma filha deficiente mental, conta no livro “Les petits enfants de Job” a sua passagem da revolta à fé: “Eu já não esperava da fé que fosse uma receita de consolação: ela não invoca o desgosto, situa-o; é muito. Uma esperança se levanta, enquanto se torna mais luminosa a corrente que liga cada um a todos. A Comunhão dos Santos: durante muito tempo pensei que se tratava da família dos canonizados. Entrevejo outra coisa: nós abraçamo-nos todos, pequenos e grandes, vivos e mortos, ateus e crentes, deficientes ou bem constituídos. Somos a pirâmide que constrói o Reino. Quando um de nós fraqueja, ela vacila, quando aceitamos o nosso lugar, construímo-la “ (Janine Chanteur, Les petits enfants de Job - Chronique d’une enfance meurtrie, Seuil 1990, p.112).

Mais tarde, quando reler a sua experiência, ela poderá dizer com verdade: “Deus esperava-me junto da minha criança doente. Não tinha ordenado nem permitido a sua doença. Isso sei-o agora. O mal é uma consequência cujas causas nós não compreendemos. Não é uma prova senão no nosso ponto de vista, sem que Deus a tenha querido ou permitido” (Janine Chanteur, livro citado, p. 119). O livro termina com as reflexões de Ana, outra filha de Janine, que, ao dactilografar o manuscrito, descobriu esse mundo interior que se mantivera oculto “O que eu hoje sei, é que a felicidade não é feita de alegrias. É feita também de muitas provações” p. 126).

Para terminar, podemos evocar aquilo que noutros tempos se chamava os “pequenos sacrifícios” e que Teresa de Lisieux nos seus manuscritos autobiográficos chama “práticas”. Uma vez mais repetimos que não se trata de valorizar o sofrimento em si mesmo. O tempo dos flagelantes passou. Mas, quando o encontramos no caminho, pode haver uma maneira positiva de o viver. Citemos este pequeno episódio que vale ouro: “ A Irmã Noël estava a cavar o jardim. Absorvida entre o silêncio e a oração, não se apercebeu de que os pés tinham gelado nos socos. Enquanto a Irmã Maria Cecília trata dela, mais do que nunca nela cresce o desejo de tomar parte no sofrimento esmagador suportado por tantos seres humanos. Não é porventura justo querer partilhar não só a vida mas também o sofrimento daqueles que pagam as consequências do mal cometido por outros? A Irmã Noël escolheu transformar o mal do frio em amor; terá aniquilado nela um pouco do mal do mundo; terá tomado um pouco do sofrimento daqueles que se revoltam contra o frio. Tomou a sua parte misteriosa... Não devemos deixar-nos vencer pelo mal, devemos ao contrário carregá-lo para impedir que ele continue o seu curso deletério pelo mundo (Cf. Emmanuelle-Marie, Op. Marie Madaleine há encore quelque chose à dire - l’utopie de Béthanie, Nouvelle Cité, Paris, 1986, pp. 126-131).

É possível tomar sobre si um pouco do mal do mundo e transformá-lo em amor, a fim de salvar, com o Crucificado, a humanidade inteira. Irão as contrariedades da vida encontrar-nos de mau humor, rabugentos e resmungões contra a sorte e contra o céu, ou passaremos por elas tendo no coração um amor mais forte do que a morte?