P. DÉHON NO "SÃO JOÃO.

Anotações cotidianas de 1886-1888.

P. André Bourgeois scj.

De 1878 a 1893 dois pólos da vida e da atividade do P. Dehon são o Instituto São João e a Casa do Sagrado Coração ou, melhor dito, a direção do colégio, de uma parte, e de outra, a administração e animação da Congregação, "a pequena Obra", cuja retomada em 1884, não estava isenta de problemas.

A fundação do "São João" sabe-se, esteve sempre, estreitamente ligada à da Congregação mesma; pode-se dizer que ela foi, senão a ocasião e a razão, pelo menos, no pensamento e na vontade do bispo que a autorizou, a condição e como uma espécie de proteção, de cobertura e de justificação externa. "Não era ali que eu punha meus atrativos e minha vocação, escreverá, mais tarde o P. Dehon; eu o tinha fundado apenas para preservar o que viria depois" (NHV 896). Entretanto, foi ainda devido às necessidades do colégio e à vontade do Bispo Thibaudier de o salvar que a Congregação mesma sobreviveu e teve, rapidamente aprovada, sua ressurreição jurídica.

Distinto juridicamente da obra mesma, o Instituto São João, durante o tempo em que o P. Dehon permanece seu superior, aparece praticamente como uma das "casas", a primeira e a mais importante dentre aquelas sobre as quais tem responsabilidade. Durante 15 anos, o P. Dehon, no plano diocesano, é sobretudo, sem embargo de qualquer coisa, o diretor do Instituto e o Bispo o adverte com insistência e às vezes, firmemente. As "Notas sobre a história de minha Vida" guardam traços destas advertências, e isto é importante para apreciarmos a vida e a atitude do P.Dehon como transparecem em suas "Notas Cotidianas".

Já em 1881, ele o adverte, por intermédio do Vigário Geral, Mons. Mathieu, que "a obra fundamental do momento é o Instituto": " esta é a missão que eu dou", escreve o Bispo.

E ao P. Dehon diretamente, a 10 de agosto: "Não perca de vista que, neste tempo de luta em que vivemos, o Colégio é sua trincheira. Dedique-se, antes e acima de qualquer coisa a torná-lo forte e resistente". E novamente a 19 de agosto, a Mons. Mathieu: "Acho que devo insistir em que, nos dias maus que atravessamos, manter o São João, proporcionar-lhe uma boa direção, condicionar-lhe progresso indispensável impõem obrigações que devem deixar no espírito e na vida do P.Dehon pouco espaço para outras preocupações e outros trabalhos".( NHV 847-848).

Em outubro de 1882, sempre por intermédio do Mons. Mathieu, nova chamada à ordem: "Oxalá ele não esqueça que o São João é sua grande tarefa, sua missão de obediência que sempre esteve em meu espírito e em minha vontade, condição para o início da outra obra cuja realização religiosa, caridosa, responsável e vigilante, lhe garantirá, talvez, o merecimento da fundação definitiva daquela que retém o primeiro lugar no seu pensamento e no seu coração. Se quiser ir a Canaã, tem que passar pelo deserto!" ( NHV 872).

É preciso trazer à tona esses apelos e colocá-los no quadro geral dos anos 1832-1833, os anos da "via crucis", antes do "consumatum est" para a obra, anos também difíceis para uma fundação escolar confessional, de modo particular, ameaçada pela nova política republicana.

Compreende-se que o bispo esteja inquieto, e se mostre severo e exigente, mas esforçando-se para ser benevolente"( NHV 872).

Mas, circunstâncias particulares à parte, o problema da sobrecarga de trabalho e de preocupação era real. Em dezembro de 1884, o P. Dehon pede um sucessor: "Seria para mim uma grande graça se Vossa Grandeza me substituísse e me deixasse reparar todo o meu passado, no silêncio e no esquecimento". A isto o Sr. Bispo respondeu, na margem: "Deus quer o contrário para o presente e provavelmente para o futuro" ( NHV 901). A última tentativa foi feita em janeiro de 1886, na véspera da grande retomada das "Notas Cotidianas".

O P. Dehon solicita "um ano de retiro". "Impossível, responde o Bispo. E acrescentou: "O senhor está hoje, no caminho querido por Deus. O senhor realizou uma grande obra no São João; teve seus defeitos como os tem inevitavelmente. O senhor fez a obra mais bela senão a mais necessária que se fez na diocese até agora".

Certamente essas são palavras reconfortantes e encorajadoras mas que não conseguem mudar em nada a situação de fato. O P. Dehon deve caminhar. E o P. Dehon caminha, enfrentando ao mesmo tempo, de qualquer modo, até 1893, a administração e a direção do seu grande colégio, a animação e o desenvolvimento da sua Congregação, sem dúvida ainda bastante reduzida, embora já bastante envolvida, sem falar das diversas atividades pastorais na diocese e fora dela.

Quando aos 20 de novembro de 1893, "deixa o Instituto para morar na casa do Sacré ñ Coerur" anotará: "Dia de sacrifício...Estou com o coração pesado e os olhos cheios de lágrimas. É uma etapa na minha vida. Durante estes 16 anos, quantas graças recebidas mas também, quantas faltas cometidas. Eu era assediado pela tentação de desânimo mas sempre devotei um amor confiante ao Coração do Bom Mestre..."( NQT 20.11.93). Graças, consolações, defeitos e provações, os biógrafos sustentam, mas algumas destas últimas, graças também à má vontade, são particularmente dolorosas.

Para os anos 1886-1888, as "Notas Cotidianas", com certeza, não são suficientes para que se possa ter uma idéia completa da personalidade e da atividade do P. Dehon no colégio São João. De outro lado, entretanto, ainda são interessantes para se fazer um retrato mais ou menos real do homem, do padre e do religioso.

No conjunto, antes de tudo, a casa se apresenta próspera, "visivelmente abençoada", ele anota a 4 de outubro de 1886. A cada ano registra um número crescente de matrículas ao ponto que em 1887- quando matriculou "60 novatos pelo menos", o ciúme do liceu e dos seus simpatizantes ficou superexcitado e os seus jornais fizeram alarde disto" ( 4.10.87). Exteriormente, foi renovada a fachada e foram feitas outras construções. O P. Dehon lamenta que a casa não tenha uma característica própria, como um sinal religioso, simples e digno, de preferência, no estilo do cristianismo primitivo" ( 30.1.87). ..Enfim, tudo significava um "avanço" e também "a fonte de cuidados temporais e de medo lancinante, nos dias de pagamento" ( 5.5.87).

No tocante à atividade escolar, essa não vai mal. Alguns aborrecimentos nos exames de 1886: " sem dúvida foi uma punição, comenta, porque a casa realmente tinha sido pouco fervorosa nesse ano" (20.7.86); mas em 1887 ele anota brevemente: "Sucessos exteriores. Sucessos nos exames" (29.7. 87).

Mesmo como Superior, não se descuida de acompanhar pessoalmente os exames trimestrais e até aproveita essas ocasiões para refrescar sua memória: história natural, história contemporânea, história da literatura, e um pouco de filosofia. Para ele é esta a ocasião de fazer algumas observações de caráter pedagógico, e psicológico e também de reflexões espirituais e pastorais que demonstram suas verdadeiras preocupações. Assim esta nota sobre a bela matrícula de 1886, constata que há alunos demais nas aulas profissionalizantes; e diz, nela, que acredita reconhecer nisto "a ação do demônio que afasta dos estudos clássicos alguns alunos chamados ao sacerdócio "( 5.10.86).

Costumava expor e desenvolver essas preocupações por ocasião da distribuição dos prêmios que preparava cada ano, as quais compilou, mais tarde num volume intitulado: "A Educação e o ensino segundo o ideal cristão". Nós o vemos também trabalhando na redação do discurso de 1886, de 21 a 19 de julho, sobre a "História do Departamento" e o Sr. Bispo felicitando-o, a 6 de agosto. Aproveitava essas ocasiões para refletir seriamente sobre a "necessidade de uma revolução moral" que não virá sem grandes acontecimentos dirigidos, pela Providência. É por esse modo de pensar que podemos dizer, com segurança, que o P. Dehon era um homem do seu tempo.

É mais tocante ainda e talvez mais significativo sentir o impacto destas preocupações diante da visão das coisas e da ação do P.Dehon como superior. Sua ambição é formar "almas energicamente comprometidas" não apenas "conservadoras mas verdadeiros cristãos". "Hoje sinto fortemente minha responsabilidade, escreve, em fevereiro de 1886. Está nas minhas mãos uma grande parte do valor e da dignidade de toda uma geração da classe influente desta região". E por valor entende "valor moral", valor cristão, sentimento religioso e verdadeira piedade.

A vida pós-escolar, o preocupa particularmente porque a "influência do meio é dissuasiva " ( 21.4.86). Em l886 começam a aparecer os frutos da Instituição... Os antigos alunos voltam...

Muitos são autênticos cristãos, os outros pelo menos mantêm-se estáveis (17.11.86).

E aqui essa observação situa cronologicamente a história da Igreja da França e a vida do P.Dehon. Mas isto também fazia parte da missão que o seu bispo lhe havia confiado. Como quer que seja, chamava à ordem seus "antigos" alunos: "reunião cordial e bastante cristã, anota, útil, mas alguns...em número muito reduzido; "ubi sunt novem alii..."( onde estão os outros nove...? ( 20.9.86 e 24.9.88). Entre eles, alguns tornaram-se padres e cuja vocação ele acompanhou no São João mesmo e a primeira missa, como a de M. Mercier aos 23.12.88, deixa a marca como um dia de graça para a casa, uma consolação para mim e um motivo de edificação para os alunos", escreve.

Pode-se ver, é evidentemente como padre e com padre do Sagrado Coração que o P. Dehon entende sua responsabilidade e exerce sua função. O "espírito", as disposições, essas são as suas preocupações constantes. Poderá parecer que ele se interessa particularmente por retiros, confissões e comunhões. Deixa entrever a temperatura do ambiente dos alunos, com altos e baixos: "Boas disposições, dias de graça, sensível volta para a vida de piedade..." ; ou o contrário: "Não encontro ainda a piedade que eu queria ver...Os alunos estão sensibilizados...uma mudança equivalente a um milagre...os meninos profundamente tocados pela graça...Comunhão confiante...".

Com certeza nem tudo é cor de rosa. "Muitos são levianos, alguns chegam mesmo a ser grosseiros e mal educados" (16.6.86). "Muito poucos são acessíveis ao sentimento do amor de Nosso Senhor." (2.6.86). Aos 6 de junho escreve que mandou de volta dois alunos que se mostravam "corrompidos e corruptores" e novamente, a 13 de março de 1887, "nesses dias foram efetuadas muitas dispensas de alunos"...

Pequenos acontecimentos cotidianos, pequenos dramas escolares...Mas o P. Dehon sente isto profundamente. "Há pouco que se pode fazer, em profundidade, nesta geração, escreve, em uma tarde de desânimo ( 16.5.86) e novamente a 6 de junho de 1886: "Quão pouco se pode fazer em profundidade neste pequeno mundo para o soerguimento da França!"

Pessimismo, decepção, desânimo! Um pouco, sem dúvida, ao fim de um dia ou de uma semana difícil. O P. Dehon anota, mas isto não dura muito. A realização de uma bela primeira Comunhão, três dias depois, foi suficiente para ele escrever "Dia de graça para a casa. Nosso Senhor deve estar feliz, hoje. Aqui ele é amado por um sem número de corações infantis".

Pode-se até sorrir desses reviravoltas aparentes. A simplicidade dessas notas os justificam. Nada, talvez, revele melhor a alma do seu autor, suas preocupações, suas áreas de sensibilidade, seus pontos de fraqueza pelos quais possa talvez ser apanhado ou surpreendido e, por vezes, enganado. Entretanto, é fora de dúvida que sua consciência e sua atividade como educador e como superior do colégio estão imbuídas da única preocupação de fazer com que Nosso Senhor seja amado, embora esteja certo de que os meninos são mais sensíveis ao temor de Deus do que à força do amor" (9.6.86). Aproximando-se do cume de suas reflexões, escreve, em janeiro de 1888: "O pensamento reparador não deve ser estranho aos nossos alunos. Serve-lhes de ajuda e significa para eles uma graça e o caminho querido por Deus". Talvez alguém gostasse de explicações atenuantes; mas, ao menos, essa é a sua convicção. "O pensamento reparador se me afigura sempre como nossa graça, anotava ele, na véspera; a conclusão lhe parecia normal: visto que Nosso Senhor nos enviou e nos confiou estes meninos...

P. Dehon sempre pensa e age como Padre do Sagrado Coração ou ao menos, tenta. Quer se tratasse de sua visão dos homens ou do mundo, de sua ação política e social ou do seu cargo de superior e de educador, essa unidade interior e prática da vida espiritual pessoal e da ação apostólica, do pensamento, da palavra e da ação, merece ser destacada e acompanhada ao longo de sua vida e do seu "journal" (diário).

Fundou e dirigiu o São João por obediência, "como uma condição, posta pela autoridade", para fundar a outra obra. Ele sabia disto e via a oportunidade pastoral da obra de 18..e o Instituto em seu pensamento e em suas mãos, mais do que um biombo ou um simples pretexto, veio a ser um meio positivo de incorporar à sua missão espiritual e à maior de suas obras, a mais fecunda para a Igreja" a obra sacerdotal de reparação ao Sagrado Coração e de dedicação ao clero" (9.11.87) ñ seu ponto de apoio apostólico que lhe devia garantir, mesmo na partida, o equilíbrio interior como também o brilho exterior. Sem permitir que se vá muito longe na análise deste particular, as "Notas Cotidianas" não nos permitem jamais esquecer que o superior e o educador do São João é, antes de qualquer coisa, o fundador e o superior de uma jovem Congregação cuja razão de ser, cujo encanto são o amor de Nosso Senhor, o pensamento, a ação reparadora e a dedicação ao clero para o Reino do Coração de Jesus.

Manuscrito inédito encontrado entre as anotações do P. A. Bourgeois.

Tradução Pe. José Calixto Ferreira de Araújo SCJ-BS