Discurso do P. Dehon aos Antigos Alunos do Instituo São João.
Boletim Anual da Associação Amigável dos Antigos Alunos do Instituto São João.

24o Ano, 8 de setembro de 1907, pp. 32-39.

 
 

Em terceiro lugar, o sr. Cônego Dehon concordou igualmente em nos dirigir uma exortação cujo conteúdo diz respeito a nós todos

"Vou restringir-me apenas a desenvolver e comentar os excelentes conselhos que o sr. Rigault acaba de lhes propor. Ele lhes recomenda o zelo, o ardor na prática do bem. Não aconteça que vocês, caros amigos, pertençam àquela categoria de jovens que o Monsenhor d’Hulst, não sei mais em que ocasião, estigmatizava, amargurado, com o qualificativo de jovens velhos. Conservem-se jovens, no coração, nas ações e no zelo!

Poderá acontecer que esse zelo chegue a ser, por vezes, excessivo, temerário descomedido, leviano. A juventude tem os defeitos ligados as suas qualidades e Bossuet mesmo, esse admirável conhecedor da natureza humana, parece falar desses defeitos, com uma secreta simpatia no célebre retrato da juventude traçado por ele, a propósito de São Bernardo. Devo dizer a vocês o que significa ser um jovem de vinte e dois anos? Quanto ardor, quanta impaciência, quanta impetuosidade de desejos! Essa força, esse vigor, esse sangue quente e borbulhando, semelhante a um vinho famoso, não lhe deixam nenhum espaço para a serenidade nem para a moderação".

Todavia, é preferível a exuberância à inércia e à miséria; o excesso indica uma plenitude de vida, uma força, um vigor, de modo que é mais cômodo contê-lo, pôr-lhe um freio do que a sensação de vê-lo não fazer nada.

Ao redor de nós, o que há é um excesso de egoístas, céticos, utilitaristas, e apáticos.

Aqui, educamos e formamos, eu lhes dizia o ano passado, filhos de famílias influentes da circunscrição. Se tivéssemos sabido multiplicar, disseminar, e manter nossas iniciativas e nossos esforços, teríamos em nossas mãos a circunvizinhança de Saint Quantin. A autoridade e a credibilidade da classe a que vocês pertencem diminuíram sensivelmente porém a influência de vocês ainda é apreciável, haja vista a observação que me fazia um deputado da região, algum tempo atrás: "Seus antigos alunos foram decisivos para a minha eleição."

É preciso, pois, caros amigos, fazer essa influência crescer, expandir-se e tornar-se mais firme pois é ela que há de estimular o zelo de vocês.Tomem a decisão de estimular, em vocês mesmos, um corajoso ardor pelas causas justas e oportunas. Em uma palavra, sejam sempre jovens!

-Por que a ação católica teve tão pouco êxito? Porque ficamos, por tempo demais, atrelados, com toda firmeza, a tradições, sem dúvida, respeitáveis, porém superadas pelo tempo, a instituições em desuso, e não soubemos, a tempo, tomar consciência dos nossos compromissos sociais.

As aspirações dominantes, profundas e persistentes do povo podem-se reduzir a três. Deseja, de modo firme e obstinado, que se mantenha um governo representativo que realize (pelo menos em princípio) a igualdade política; - deseja a liberdade de associação e as reformas sociais.

Se o povo percebe que somos sinceros (decididos também), na disposição de apoiar seus anseios e suas reclamações, com o tempo, virá a nós. De outro lado, se suspeita de que somos contrários e até hostis às suas reivindicações, voltará as costa a nós e continuará a maldizer e a desprezar uma sociedade religiosa, que vê apenas como uma estranha aliada dos privilegiados deste mundo e inimiga do progresso social.

A massa não é anticristã. Não seria possível extirpar de uma raça, a alma cravada nela por 1500 anos de cristianismo. A multidão pode ser acristã como é amoral. Ela é as duas coisas em conseqüência de sua ignorância, sua credulidade, sua versatilidade, sua facilidade de se deixar seduzir pelo fascínio dos Merlins do socialismo, pelos profetas de uma felicidade imediata e de uma idade de ouro. Ora! é preciso instruir o povo, desvencilhar seu cérebro de preconceitos, de sofismas de utopias e de sonhos quiméricos e inculcar nele, os princípios do que é justo, honesto, tirados das necessidades objetivas e da natureza das coisas, trabalhar, com ele, nas reformas viáveis e levá-lo a compreender que jamais haverá ordem e paz públicas possíveis, sem moralidade e nem moralidade sem uma religião que lhe sirva, ao mesmo tempo, de fundamento, de norma, de inspiração, e de sanção.

Se os católicos e o clero, nesses trinta anos, se tivessem associado ao vigoroso movimento do progresso social, sem dúvida, teriam a influência e a autoridade que hoje lhes faltam. Esse movimento é legítimo. O povo tomou consciência de sua dignidade e de seus direitos. Quer soerguer-se da condição de humilhado a que esteve reduzido por tanto tampo. E se ao sistema de salário, ele prefere o de cooperação, e, em política, a república, à monarquia, que há de surpreendente nisto? É que na república na cooperativa, o cidadão, no caso, o trabalhador, que antes não era nada, sente que é alguma coisa e sabe que pode ser um agente esclarecido, consciente e livre, da melhoria de sua sorte. Ora, tenhamos a coragem de reconhecer, de reordenar os direitos do povo porém não nos vamos descuidar de lhe ensinar que esses direitos têm seus limites e seu contrapeso nos deveres de justiça, de equidade, de moderação e de fraternidade.

No que concerne à questão religiosa e às relações entre a Igreja e o Estado, posto que a união entre os dois poderes tinha-se tornado, na realidade, intolerável, preferíamos uma separação honesta e verdadeiramente liberal como foi feita no Brasil, por exemplo. A República Federativa do Brasil permitiu aos bispados, aos seminários, às paróquias, às associações religiosas, que ficassem com seus bens adquiridos anteriormente. Contentou-se em fazer este pronunciamento: Doravante, não consideramos a Igreja católica como instituição oficial; já não remuneraremos

os serviços dos oficiais do culto mas lhes concedemos plena liberdade de ação e de propaganda, sob a condição de que não perturbem a ordem pública. E assim procedendo, amigos, não violamos nenhum contrato, nenhuma convenção, nenhuma concordata. Viveremos, cada um em seu "departamento".

Separemo-nos amigavelmente e permaneçamos bons amigos! &emdash; Assim deve-se exprimir uma república verdadeiramente liberal, uma república ateniense. Esse devia ser o estatuto da Igreja católica na França.

Se não foi assim, temos um pouco de culpa. Os católicos sempre foram tratados como suspeitos porque muitos deles, desde 1870, insistiram em formar grupos à parte, em criticar, censurar a república e fechar-se a ela. Não é preciso contentar-se em tolerar o regime republicano com ares de resignação e conformismo. É preciso aceitá-lo- é fato consumado, inelutável- e aceitá-lo com simpatia, confiança e bom humor. Visto que o povo, mais inteligente e mais instruído, pretende participar da ação política e econômica ( e há razões para se reconhecer que está muito interessado), - visto que deseja ser consultado e dar sua opinião sobre as grandes reformas sociais que devem melhorar sua sorte, pois bem, tomemos a tarefa de apoiar seus desejos legítimos, de obter suas conquistas possíveis, eqüitativas e práticas!

Há categorias de trabalhadores cujos ganhos são honestos e desfrutam de prosperidade. De outro lado, há outros, explorados por um capitalismo egoísta, exigente, duro, ávido, e intratável.

Há fábricas em que o trabalho é oferecido a troco de uma remuneração módica e onde a sorte do trabalhador fica à mercê dos caprichos e humores do patrão e tão precária que o próprio Leão XIII não relutou em declarar que alguma situação de servidão operária era mais humilhante e mais dura que a antiga escravidão.

É portanto necessário examinar de perto, as reivindicações da classe operária e as reformas sociais que ela deseja. Os operários elegeram deputados, políticos que puseram suas aspirações em seus programas. Eles nos seguirão se nos mostrarmos dispostos a apoiar suas legítimas aspirações.

Com efeito, os católicos, com certeza, não foram, até agora, em massa, bastante francos, bastante generosos, bastante sensatos. Ficaram presos a formas sociais antigas, ultrapassadas, danosas e decadentes. Em nossa época, a democracia transborda e seria sinal de falta de inteligência e de critério nadar contra essa correnteza.

Aliás, o Papa atual, continuando a política do seu eminente predecessor, dá seu apoio total à ascensão social do povo e às organizações autônomas dos trabalhadores. Aprova e acompanha a criação e o desenvolvimento das obras de caráter econômico, pelas quais se interessava de perto quando ainda era patriarca de Veneza. Ele me dizia, há alguns meses, numa audiência que tive a honra de obter dele: "A melhor diocese da Itália e talvez de todo o mundo, é a diocese de Bérgamo. É muito próspera devido à atividade e à dedicação que os católicos e o clero demonstram às obras populares".

Com efeito, as instituições econômicas e sociais suscitadas pela iniciativa leiga e acompanhadas pelo clero, (auxílio mútuo, caixas rurais, cooperativas) estão maravilhosamente organizadas nesse distrito da Alta Itália.

Leão XIII promulgou os grandes princípios de um tratado ideal de justiça e de solidariedade social. Pio X pensa, antes, na entrada em vigor e na aplicação dessas teorias e nos exorta a assumir esse trabalho.

À sua voz autorizada, junto meu paternal encorajamento, neste momento em que me dirijo a vocês, caros jovens. Não se tranquem em si mesmos, diante da realidade do século, não fiquem fora do movimento moderno. O povo já está consciente de que a religião católica tem posição hostil ao progresso político e econômico. E se não confia na Igreja nem os seus fiéis deve-se à convicção de que são indiferentes à sua sorte. Qualquer um que se tenha aproximado do povo, tenha convivido com a sua condição de vida humilde e sofrida, conhece esse lamentável estado de espírito, esta desconfiança carregada de espanto e de suspeita que marcam seu interior. E de outra parte, desde que tomem conhecimento in concreto e nos pormenores, das aspirações dos trabalhadores, chegam a se convencer de que suas reivindicações são em grande parte legítimas e louváveis.

Cabe aos católicos reconquistar a estima, a confiança, a boa vontade do querido povo da França. E se permanecermos alheios ao movimento social, com certeza, vamos jogar fora definitivamente, toda consideração e toda influência sobe o povo.

É preciso ter a coragem de ser do nosso tempo como os católicos da Itália e mostrar que a religião é um fator poderoso e indispensável do progresso social, impossível sem moralidade firme e bem fundamentada. O clero e os católicos de Bérgamo conquistaram a simpatia da população e nas eleições provinciais, elegeram deputados com larga maioria porque souberam dar apoio, por uma generosa e inteligente competência, à criação e ao florescimento de obras sociais de caráter popular. Todos os conselheiros provinciais de Bérgamo, são católicos convictos e praticantes.

Estaremos aptos a obter o mesmo sucesso, se, de modo aberto e resoluto, nos mostrarmos amigos do povo.

O feudalismo passou; o reino da nobreza esgotou-se; o da burguesia rica e auto-suficiente, amontoa contra si cólera terrível. O poder político e econômico doravante, estará nas mãos do povo. Leão XIII, um aristocrata de origem, de educação e de ... carreira, já entendeu isto. Ele foi ao povo, levou-lhe o Evangelho e lhe disse: "Nós católicos é que somos seus verdadeiros amigos porque possuímos os princípios que são normas infalíveis de toda justiça, os fatores e a garantia da ordem e da paz social,- porque temos conosco a fonte divina da caridade, não somente daquela que consola que amacia, que assiste e alivia os males- mas daquela que previne, que protege, que dá suporte e segurança contra a injustiça e a miséria,- daquela que se esforça para melhorar a sorte dos humildes, daquela que se doa, que se multiplica em empreendimentos generosos e sabe que nada é feito ao ponto de não mais se ter algo a fazer. Foi o Evangelho que introduziu no mundo as idéias de progresso moral, de fraternidade, e de solidariedade e não podereis, a não ser por ele, torná-las realizáveis".

Os que rejeitam o Evangelho e a Eucaristia serão capazes de expor teorias sedutoras porém não terão o segredo de as pôr em prática. Foi o cristianismo que, só pela força da persuasão, soube, não abolir de uma vez por todas a antiga escravidão- o que foi um gesto contra uma política estabelecida, e grandemente danoso aos interessados- mas torná-la suportável, atenuar seus rigorosos efeitos e transformá-la em uma condição de vida melhor, a servidão. Hoje, o sistema de assalariado é também um tipo de servidão, muito duro e pesado e é por isto que os economistas cristãos já deixam entrever aos operários o advento desejável e realizável do regime de participação que virá a ser logo, assim esperamos, um progresso alcançado sobre a condição anterior, suscetível de muitos abusos.

Fora do cristianismo vocês não encontrarão senão pessoas loquazes, que se perdem na abundância de palavras, tribunos interessados em adquirir popularidade, arrivistas exaltados cuja preocupação dominante consiste em encher sua caixa, obter altos cargos lucrativos que lhes garantam o incomparável gozo do orgulho e do diletantismo da superioridade.

Vocês saberão discernir onde se encontram os verdadeiros amigos do povo. Deverão escutar os ensinamentos, estudar a doutrina dos sociólogos e economistas que vocês reconheceram imbuídos do verdadeiro espírito cristão, espírito de solidariedade, de abnegação, e de inteira dedicação aos nossos irmãos sofredores.Eles mostrarão a vocês como se podem extrair dos princípios promulgados pelo Evangelho, projetos modernos de melhoria e de transformação das condições do trabalho e da propriedade. Se o povo chega a compreender quantas reformas salutares estão contidas em germe, na doutrina católica, depositará sua confiança em nós e a França voltará a ser o que era outrora, a generosa e ardente promotora da civilização cristã no mundo.

Durante uma viagem que acabo de fazer à Boêmia, à Rússia, à Finlândia, tive a tristeza de ouvir alemães me dizerem: Se a França desce na estima da Europa, se está reduzida a esse estado lamentável de decomposição moral e social, se seus próprios filhos lhe rasgam as entranhas, deve-se isto a vocês, católicos, a vocês, homens de Igreja! Até o presente, vocês não souberam revelar, aplicar, pôr em prática, o remédio para os males de que estão sofrendo e esse remédio encontra-se numa legislação inspirada no espírito do Evangelho. Os católicos ficaram, por muito tempo, inertes, passivos, entediados, com o espírito e o coração voltados para um passado morto e para um futuro quimérico.

Viveram de lembranças, de lamentações e...de ilusões. Não souberam ser do seu tempo nem discernir o que há de justo, de oportuno, de necessário, e de realizável nos anseios da classe sofredora.

É preciso encontrarmo-nos a nós mesmos, e pôr mãos à obra. A vocês, caros amigos, que pertencem a uma elite da sociedade, a vocês cabe propagar essas idéias que acabo de submeter ao seu julgamento, e agir de modo que retomemos nossa ascendência, que recuperemos a influência que escapa de nossas mãos e que detínhamos em 1872-75, quando tínhamos a honra e a alegria de conduzir uma legião de 10.000 homens em peregrinação a Nossa Senhora de Liesse. Como os tempos mudaram! Era o período das conquistas, dos sucessos, dos triunfos. Hoje nos restam os fracasso, a desordem, o recuo, a debandada. Mas, lembrem-se das generosas palavras de Desaix que, ao chegar ao campo de batalha às 3 horas da tarde, encontra as tropas abatidas e desapontadas: a batalha foi perdida! Mas são apenas três horas. Temos tempo de ganhar outra!

A vida social é semelhante a uma campanha militar; tem também suas marchas e contramarchas, seus envolvimentos, seus combates, suas batalhas. E os revezes, os extravios, as partes perdidas podem-se reparar. Avante, pois filhos da luz, com coragem e confiança, por Deus e pela salvação da pátria! Não deixemos que se cumpram os prognósticos dos profetas da desgraça! A França está em gestação de uma nova ordem de coisas; ela busca, agita-se, trabalha. É sinal de que ela não está decrépita, nem paralítica nem moribunda. Ela vive e viverá. Cedo ou tarde, retomará consciência dos seus deveres, de seu destino, de seu papel de filha mais velha da Igreja.E Deus não deixará entrar em decadência uma nação que tem sido a iniciadora de tantos empreendimentos nobres e foi campeã do direito e da qualidade de vida humana e que ainda é, ousaria dizer, uma das condições da vitalidade da Igreja católica".

Aplaudiram com firmeza esse caloroso discurso, alimentado por fortes idéias, animado pela fé mais generosa e pelo mais puro patriotismo.