Sermão do P. Cottard aos antigos alunos do São João
São Quintino, 8 de agosto de 1907.

A capela onde entramos, às onze horas, conservou sua aparência simples e modesta, destacada por uma ornamentação sóbria. O P. Hector Rigault começou a missa enquanto os antigos alunos se concentravam, de preferência, nos lugares mais à distância.

Após a leitura do Evangelho, o P. Cottard, antigo aluno, tomou a palavra. Ele o fez com simplicidade, desculpando-se, de antemão, das hesitações e da lentidão na pronúncia a que estava preso, desacostumado que estava, uma vez que havia onze anos, estava afastado do uso corrente da língua materna. Tendo apresentado ao R. P. Dehon a homenagem unânime do respeito e do reconhecimento de todos os seus antigos alunos, e tendo renovado , em nome deles, a total e inteira adesão aos princípios que lhes inculcara na mente, entrou no assunto proposto, prendendo nossa atenção com um pequeno discurso do qual reproduzimos, a seguir, o essencial:

"Hoje, caros amigos, quer me parecer que tudo aquilo que, no passado, era a honra da França e lhe servia de glória, aquilo que as nações invejavam em nós, nossos hábitos de fé religiosa, de justiça, de humanidade, de generosidade cavalheresca, é negado, rejeitado e desprezado. Os princípios que faziam parte do nosso patrimônio nacional, isto é, a lealdade, a fidelidade às tradições, o respeito da liberdade de consciência individual e coletiva são agora, combatidos, ridicularizados, pisoteados. É gratificante encontrar-se ainda um grupo de cidadãos honestos e sensatos que souberam conservar o culto do direito e da honra.

E nós somos desse grupo, não é verdade? E queremos conservar as tradições e os princípios que contribuíram poderosamente, para a glória e a prosperidade da nação francesa.

A principal dessas tradições é o espírito religioso. Já se disse: a religião é boa...para mulheres. Afirmação leviana, louca e sem sentido. Não são os homens os atores mais importantes do drama da vida?

Ora, a vida não pode ser regulamentada, bem ordenada, e a sociedade não pode usufruir da prosperidade , da paz e da segurança se não tem moralidade. E quem lhe há de assegurar uma estável e segura moralidade que se imponha igualmente a todos os cidadãos? Só a religião. A experiência de cada dia, declarações de grandes sociólogos imparciais, o testemunho dos criminosos mais sinceros atestam essa verdade.

É aos homens que pertence tomar a iniciativa, instituir e fazer vigorarem medidas indicadas para preservar, manter e promover a moralidade nos grupos sociais sobre os quais podem exercer influência. Visto que estão à frente das grandes empresas industriais, comerciais e financeiras, devem ser capazes de criar ações suscetíveis de formar, de elevar e de sustentar a moralidade pública e serão ajudados eficazmente nessa tarefa se recorrerem às idéias religiosas.

No Brasil onde exerci as funções do ministério paroquial e apostólico, nós padres, encontramos preciosos colaboradores entre católicos de todas as categorias e classes sociais. Lá, há 18 anos, a Igreja vive separada do Estado mas foi uma separação franca, leal que respeita os direitos adquiridos, permitindo aos múltiplos organismos religiosos a liberdade e grandes facilidades de aquisição, de desenvolvimento e de expansão. Para o Estado só existem indivíduos e cidadãos. E esses são estimados se se dedicam a obras úteis ao bem-estar da sociedade; mas se, ao invés, vivem em uma neutralidade inerte, são relegados ao desprezo.

As associações que acompanham a ação do padre são muito numerosas e criativas. Os confrades da sociedade de São Vicente de Paulo, em particular, dedicam-se em manter, multiplicar e estender os benefícios da vida paroquial. Os membros dessa confraria demonstram, para este fim, um senso prático, uma habilidade, uma solicitude e energia dignas de nota.

Cada paróquia compreende três ou quatro sociedades religiosas chamadas "irmandades"que, no correr do ano, esforçam-se para organizar festas, adquirir fundos para a ornamentação das igrejas, para a fundação e manutenção de escolas, asilos, círculos, dispensários, em uma palavra, para o crescimento da vitalidade da paróquia. Vêem-se, entre os membros da Confraria do SS. Sacramento, advogados de renome, diretores de jornais, homens do governo que se gloriam de levar o pálio nas procissões solenes.

As mulheres têm também suas obras particulares de educação, de manutenção e de assistência; mas elas ocupam um lugar de segundo plano embora nos últimos tempos tenham manifestado um desejo obstinado de tomar parte na vida política e a intenção de reivindicar o direito de serem eleitoras.

A situação religiosa do povo brasileiro não foi sempre próspera. No fim do século XVII, o marquês de Pombal, primeiro ministro do rei de Portugal, a que o Brasil pertencia como possessão, tinha tentado subjugar a seus caprichos e disciplinar arbitrariamente a Igreja católica nesse país. Impôs limites, por meio de medidas vexatórias, ao exercício do culto e do apostolado que eram dirigidos por religiosos das grandes ordens, a saber, Jesuítas e Franciscanos. Por ordens suas, restringiu, injustamente, o recrutamento dos padres e missionários e assim a obra da civilização cristã no Brasil perdeu o ritmo e foi consideravelmente retardada pela má vontade e pela oposição dissimulada desse Pombal, homem astucioso e hipócrita que, sob pretexto de servir aos interesses da Igreja e do reino, enfraqueceu a religião, desacreditando-a e abriu o caminho para o naturalismo pagão e para o ateismo. Sua ação política perversa e prejudicial à Igreja fez mais mal ao Brasil do que uma grande revolução.

No início do século XIX, foi estabelecido o Império no Brasil e Dom Pedro I parecia, a princípio, proteger a Igreja e favorecer sua ação mas logo tornou-se evidente que procurava antes servir-se dela do que servi-la, imitando desse modo, Napoleão I que via os vigários como agentes de policiamento moral e os bispos, como prefeitos espirituais da devoção.

Os bispos e o clero brasileiros compreenderam o perigo e se recusaram a servir a essas intenções despóticas. A resistência lhes valeu muitos aborrecimentos, perseguições e até castigos. Viram-se expostos à hostilidade da Franco-Maçonaria, sociedade que gozava de influência e de credibilidade nos conselhos do governo. Bispos e padres foram atacados e odiosamente caluniados nos jornais, depois, destituídos e expostos à indignação pública e, por vezes, castigados com o confisco dos bens, com a prisão e com o exílio. E as paróquias, desprovidas de seus pastores, viram grassar a miséria material e moral.

Esse estado de coisas lamentável, durou até 1889. Nesse ano, ao Império eliminado, sucedeu a república federativa dos Estados Unidos do Brasil que separou a Igreja e o Estado, reconhecendo àquela a liberdade de associação. Daí em diante a Igreja católica se desenvolve maravilhosamente no Brasil, graças à iniciativa e à atividade inteligente, ao zelo ativo e constante dos católicos. E é um prazer para um emigrante trabalhar nesse grande país na evangelização do povo.

Eu permiti a mim mesmo, caros amigos, oferecer-lhes, como exemplo, os católicos do Brasil a fim de que vocês possam comprometer-se a fazer o mesmo. Vocês têm certezas firmes e bem fundamentadas. É preciso traduzi-las em ações concretas. A tarefa é penosa mas a honra de dedicar-se a uma bela causa deve trazer-lhes estímulo para vencerem as dificuldades a fim de que possam contribuir para a preparação de um futuro melhor do que o presente para a França. Talvez vocês não irão ver o resultados de seus esforços e de seus trabalhos mas outros, sem dúvida, hão de bendizer os seus nomes. Tenham todos o empenho de tornar-se úteis à sociedade, mostrando a riqueza e a fecundidade da vida cristã, capaz de desenvolver e de multiplicar o valor das qualidades da nossa raça e de produzir bons frutos.

É doloroso para um emigrante, ouvir dizer, num país estrangeiro, que o povo francês é frívolo, audacioso, inconseqüente, turbulento e de atitude sem lógica.

No Brasil ensina-se às crianças, nas escolas públicas, que a França ocupa, apenas, o sexto lugar entre as grandes nações. Nossos protestos não conseguem destruir essa opinião; pelo contrário, ela é afirmada e corroborada por fatos notórios e por constatações que apontam para a decadência dos costumes e para a decomposição da sociedade na França. Alemães e Ingleses que se estabeleceram na América do Sul têm gestos de desprezo quando alguém lhes fala da França e os funcionários brasileiros que detêm alguma autoridade e influência previnem seus subordinados contra os maus exemplos e os sofismas perniciosos que vêm da França.

Para que nosso caro país retome um lugar de respeito na estima dos outros povos, é preciso que a alma de cada cidadão francês seja desvencilhada e libertada de seus preconceitos, formada na consciência de seus deveres e de suas responsabilidades e que os membros da classe intelectual assumam a tarefa de propagar as idéias sadias, os princípios da justiça e da honestidade.

Oxalá, possam vocês, Senhores e caros amigos, seguir e fazer com que outros sigam a linha reta de conduta e buscar, sem cessar, os meios de prestar inúmeros serviços à sociedade, à pátria e aos nossos irmãos.

Dedicar-se, nos lugares de diversão, à educação moral do povo, a seu reerguimento, é uma ação digna de experimentar a generosidade de vocês e de apelar para sua inteligência e para o seu zelo. A nobreza da intenção e da causa garantirá a vocês profunda alegria de consciência e vocês irão entregar-se à tarefa, por seu amor à causa pública, com as bênçãos de Deus, e a estima de todas as pessoas de bem.

A missa continuou.

"Trait d’Union" 1907, p. 13-18.
Boletim dos antigos alunos do São João.

Tradução Pe. José Calixto Ferreira de Araújo SCJ-BS